A viagem (1)

Em cada dia de trabalho, antes de seguir para a polícia cívica, Luciano ganhara o hábito de passar num botequim do caminho e beber um bagaço que lhe aconchegava o estômago e tranquilizava os nervos. Fez isso mesmo, desatento, a pensar em sair daquela vida. Lisboa andava agitada, o Verão de 1910 demasiado quente, as discussões políticas e o ambiente geral de conspiração, que não ajudava ao sossego das almas. Uma vez, quase emigrara para o Brasil, chegara a ter o dinheiro para o bilhete do barco, mas fraquejara-lhe a disposição à última hora. Depois, a ideia dissipara-se, devagar, num sonho vago que, não morrendo inteiramente, ia ficando apenas num cantinho escondido das suas ideias.
Não era homem para aventuras e, nessa manhã, tudo lhe pareceu tranquilo. O guarda de serviço explicou-lhe que não se passara nada de especial, apenas rotinas, uma cena de pancadaria, uns meliantes no calabouço, mas nenhum deles com um nome que brilhasse em notícia de jornal. Não, senhor Luciano, não se passara nada de especial, apenas uma noite tranquila. E, de repente, o homem fez um esgar de surpresa, de quem se lembra de algo, assim, há uma mola que estala no crânio e que faz trabalhar a relojoaria delicada da memória, e a pessoa tem de fazer aquele gesto um pouco imbecil que é um misto de pedir desculpa e assumir uma falta grave, apesar de tudo perdoável:

   − Como é que eu me esqueci disto? O caso das mulheres detidas por quererem enterrar um morto…
   − Assim, sem mais nem menos, enterrar o morto…
   − Assim, sem mais nem menos, uma história escabrosa, que deve interessar ao seu jornal, senhor Luciano.
O repórter pensou que os mortos são para enterrar, nem servem para outra coisa, mas fez um ar desinteressado e ao mesmo tempo entendido das subtilezas do crime; afiou o bigodinho fino, molhou os lábios, tentando não revelar a ansiedade (àquela hora já estava um calor das colónias). Tirou o bloco de notas e disse:
   − Mas conte lá isso, senhor guarda.
E o outro narrou uma história confusa de como duas mulheres tinham velado o morto sem chamar as autoridades. Denunciadas e presas, suspeitas de crime, naturalmente.
   − E quem era o falecido?
   − Deixe-me ver… − o guarda consultou um grande livro cinzento, tomou-lhe bastante tempo, leu, numa voz arrastada, que era um tal Major José Neves. Ou das Neves, não ficou muito claro.
   − E morreu de quê? Envenenado?
   − Ah, isso não sei!
   − E posso entrevistar as assassinas em primeira mão?
O cívico aceitou a propina da praxe e facultou-lhe o devido acesso às entrevistas. Subiram até aos calabouços e o repórter começou de imediato a desconfiar do enredo que lhe tinha contado o agente. As mulheres estavam numa das melhores celas, da ala esquerda, ou antes, em duas celas, porque havia duas suspeitas e uma delas era uma senhora, por sinal distinta, a dona Efigénia, chamava-se.

 

(continua)

publicado por Luís Naves às 23:16 | link do post