Se traduzisse o que já escrevi

À primeira leitura desta crónica de Alexandra Lucas Coelho (ALC), no blogue Atlântico Sul, achei que a autora tinha razão. Só pensei no assunto depois de uma segunda leitura, quando percebi que ALC acredita ter havido uma qualquer alteração que não descortino.
O exemplo da amiga da cronista é notável. Ela ganha 8,5 euros por página traduzida. E comecei a fazer as contas sobre o dinheiro que ganhei com os trabalhos de ficção que me publicaram nos últimos 15 anos: o facto é que não chegou a um euro por página.
Se traduzisse para português o que já escrevi, ganharia oito vezes mais.


ALC esquece na sua crónica que dificilmente um artista ganha dinheiro com aquilo que produz. E outra omissão está na circunstância de que isso sempre foi assim e continuará a ser. Não há mudanças nessa triste condição. O artista pobre, que luta para ser publicado, para ter leitores, faz parte da tradição da civilização ocidental, pois não há mercado para todos e sem a crueldade do esquecimento, sem massa crítica, não existe verdadeira arte. Podia dar aqui milhares de exemplos de poetas que morreram à míngua, de pintores que não venderam um único quadro, de grandes romancistas desprezados pela crítica (e não estou sequer a falar dos grandes romancistas que queimaram a única cópia da sua obra magna).
A cronista pensa que o Estado devia dar uma oportunidade aos artistas indignados e incompreendidos (ela define-os como elegantes), mas não vejo como é que o Estado pode escolher melhor do que o mercado. Aqui só há pescadinhas-de-rabo-na-boca: se o jovem artista tem um grande romance na cabeça, é pena que tenha de permanecer desempregado, mas uma bolsa de criação artística exige uma escolha com critérios, pelo que tenderá a ser seleccionado para esta bolsa um escritor já com nome. Ninguém arriscará num desconhecido. Só uma editora arrisca num desconhecido.
Se o Estado tiver dinheiro (o que não é o caso) deve incentivar a grande arte, mas acontece que não é muito bom a fazê-lo. Quem são os bons? Se nos lembrarmos que 99% dos artistas serão esquecidos ainda em vida, a que propósito um Governo sustentará este e não aquele?
Já o disse: se traduzisse o que já escrevi ganharia oito vezes mais. Observando bem a minha realidade, sou um escritor amador que teve a sorte rara de publicar cinco livros, três dos quais numa editora que faliu, talvez por ter apostado em pessoas como eu, que não vendiam. Tive a minha dose de pouca sorte, nunca ganhei um prémio. Ou antes, ganhei durante alguns minutos. O meu primeiro livro foi escolhido por um júri para prémio revelação da APE, mas recebi um telefonema de alguém que me perguntou se ia publicar ou tinha publicado o livro (o regulamento determinava a publicação em determinada editora). Respondi que sim, que me comprometera, semanas antes, com uma editora que aceitara esse romance. A questão ficou assim resumida: se eu renunciasse à minha palavra, ganhava o prémio.

 

Nunca contei esta história por escrito. Alguns dirão que devia ter aceite, mas julgo que não têm razão. A ideia presume que um romancista só deve escrever quando tiver mil leitores e ganhar dez euros por leitor. Ou dez centavos por palavra. Eu só deveria escrever ficção quando ganhasse com a ficção que escrevo mais do que ganho no jornal onde trabalho, quando ganhasse aquilo que é justo e que me poderia transformar num profissional (deixaria de ser o romancista amador e poderia ter qualidade). Enfim, se traduzisse o que já escrevi, ganharia oito vezes mais, e mesmo isso seria pouco para começo. A alternativa será escrever para os leitores desconhecidos que passam por aqui, escrever para o silêncio, escrever para uma gaveta invisível que alguns podem vasculhar de forma displicente. Continuar porque há algo que deve ser dito, o que não deixa de ser muito pretensioso da minha parte.


Sou um dos 99%, tento não dizer frases floreadas e pretensamente poéticas, sou impertinente e julgo ter ideias próprias, gosto de remar contra a corrente, mas sobretudo não tenho paciência para esperar pelos meus 5 mil leitores (ou serão 10 mil?). Por isso escrevo para mim, para as duas dúzias que passam aqui, para os mil que compraram livros meus (alguns mais do que um título) e escrevo ainda para aqueles milhões e milhões que nunca me lerão, sem perderem alguma coisa de especial. Escrevo sem pensar se vou ganhar mil euros ou mesmo nada. É um trabalho duro e paradoxalmente invejado, esta tarefa inútil de lançar palavras ao vento.

 

A imagem é do pintor Carl Spitzweg (1808-1885), O Poeta Pobre

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publicado por Luís Naves às 19:50 | link do post