O samurai

Ainda hoje, no meu bairro, é recordada com muita saudade a progenitora da Alice, a Dona Felismina, que deu em herança à filha o pequeno estabelecimento, uma leitaria entretanto modernizada em pronto-a-comer, que fica ali à esquina das escadinhas que dão para uma rua escondida. A mãe da Alice era uma mulher daquelas chamadas de armas, ou seja, mais dominadora do que se poderia presumir pelo seu corpo franzino. Parecia a Edith Piaf e sei que, em jovem, incendiou numerosos corações galantes e outros menos cavalheirescos; mas, enfim, só a conheci bastante gasta e passado o antigo esplendor. Parte da história também será bordada a lenda, pois sabemos como tudo nesta cidade acaba sendo um pouco romanceado, generosamente apimentado com venenos e intrigas.

   Quem verdadeiramente interessa neste relato é a Alice, que terá essas origens curiosas, embora pertençam a um passado que já nem imaginamos. E quem sabe o que se esconde em gerações ainda mais remotas? O facto é que ela tem lábios grossos, nariz achatado, o traseiro algo proeminente, caracóis enrolados num cabelo cor de azeitona escura.

   Na aparência, a Alice é uma mulher não muito diferente das outras: talvez um pouco mais redonda de carnes, o que faz sonhar alguns homens, entre eles o Carriço, discreto apaixonado e lugar-tenente do estabelecimento; o seu homem oficial, digamos assim, macambúzio e soturno, mas também ciumento, sobretudo quando vê possíveis rivais a cobiçarem o seu naco de carne com olhares famintos, nem que seja macho de passagem ou um zé-ninguém que jamais voltará.

   Alice não é alta nem baixa, não é velha nem nova. Anda sempre desmazelada, sem pinturas ou jóias; veste avental com nódoas. Mas não precisa de ornamentos, tendo aqueles olhos verdes, esmeraldas reais, embora a cor já esteja esbatida, enfim, porque o tempo passa.

 

  

Será ela bonita, verdadeiramente bonita? Penso que não, pelo menos do ponto de vista do gosto dominante nestas matérias, a preferência que podemos ver em qualquer revista de moda, corpos a tira-linhas, sem a redondez que pessoas como eu acham mais nutritiva. Alice não serviria para modelo de pele retocada a photoshop. Ela tem cintura anafada, pregas de carne em torno do umbigo, o que pessoalmente acho muito de cobiçar; e, no seu peito subido e largo apetece encostar a cara, para se ouvir aquele coraçãozinho palpitante, a respiração acelerada; sim, confesso, sei bem como podem aqueles seios enlouquecer um homem. Conheço Alice há dez anos, por dentro e por fora, andámos enrolados por alguns frenéticos meses (não contem ao Carriço), embora ela não tivesse qualquer ilusão sobre as minhas intenções, que eram inteiramente desonestas. Talvez por isso tenha sido possível mantermos esta relação amigável que perdura nas vicissitudes da vida. Ela sabe que me faltam alguns parafusos, talvez suspire por mim, num ou noutro pensamento, mas nunca o mostra. É apenas afável comigo. E não tenho dúvidas de que Carriço, que apareceu depois deste caso, saberá intuitivamente do nosso passado comum, embora não tenha provas e nada possa conhecer sobre os segredos murmurados, as frases de amantes que trocámos, ela e eu. E não deve imaginar as lágrimas que ela gastou comigo. Sim, lágrimas de amor e despedida, de que me arrependo com algum orgulho.

   Podia evitar a leitaria, pois quase não suporto a desconfiança e a inveja de Carriço e talvez seja cruel alimentar dessa forma as lembranças de Alice daqueles momentos sublimes. Mas acabo por me sentar todas as manhãs no estabelecimento, numa rotina preguiçosa, a olhar o pequeno mundo que por ali passa, a rabiscar pobres poemas; bebo um ou dois cafés, leio os jornais especializados em economia e em futebol, mordisco uns salgadinhos, vou bebericando imperiais ou, ocasionalmente, uma aguardente. Enfim, medito.

  

Naquele dia, também não tinha nada para fazer e transformara, como de costume, em escritório a mesa do cantinho. Já agora, para que percebam a razão de tanto tempo perdido, informo que sou uma espécie de inútil: queria ser poeta, mas falhei na vocação; o meu pai era industrial; deixou fortuna assinalável, investida atempadamente em bolsa. O meu trabalho, digamos assim, é estar atento ao sobe e desce das cotações, vender em alta e comprar em baixa, o trivial, que dava para viver modestamente, até que chegou esta maldita crise.

   No restante da minha vida, não faço descontos nem loucuras, sou solteirão. Vivo no limbo feliz da decadência, numa casa antiga, com vista para o passado e também para o rio e o seu estuário azul. Os meus investimentos são modestos, e falo metaforicamente. Pode parecer estranha, esta ideia de alguém querer apenas viver o dia-a-dia, ao ritmo de um mercado em queda constante, despreocupado em relação a quase tudo e na perspectiva de não possuir qualquer futuro. Mas antes assim, viver sem ligações, sem amar algo em particular, olhando melancolicamente o que podia ter acontecido, se por hipótese improvável tivesse mesmo acontecido.

   Dizia eu, estava sentado no meu cantinho, quando apareceu aquele homem minúsculo. Era velho. Um turista japonês, via-se. Olhou para o interior da leitaria e entrou. Só reparei porque o meu próprio olhar passeava à bolina por coisa nenhuma. O japonês era antigo, mas contraditoriamente moderno. Como se ele não conseguisse determinar em que época estava. Pele encarquilhada, ténis Nike e máquina fotográfica minúscula. Sem falar no boné de basebol, que lhe dava um toque de improvável juventude. De resto, era de uma banalidade arrasadora, semelhante a qualquer turista japonês. Também polido, ou seja, fazia gestos poupados, como se pedisse licença à mão direita para mexer a esquerda. Sentou-se na mesa bem no meio do estabelecimento, talvez fascinado com a iluminação e a limpeza. Ainda não o referi, mas o pronto-a-comer da Alice é de uma limpeza exemplar e atrai clientela de funcionários do comércio das redondezas, sobretudo às horas de refeição; a partir do meio-dia, começa o corrupio; é a essa hora que parto para outras deambulações, pois raramente tenho fome e vou comendo ao longo do dia, a fintar a fome.

   O velho sentou-se e cumprimentou os presentes com uma curta vénia, como se estivesse em casa. Mas, para quem observasse melhor, parecia confuso. Aproximou-se o brasileiro, que é o empregado do estabelecimento, muito útil quando se organiza o bufete. Digressão desnecessária: o bufete é o grande truque da Alice, o cerne do negócio. Teoricamente, as pessoas podem tirar a quantidade de comida que desejam, mas na realidade é menos em conta comer assim, já que os humanos têm mais olhos que barriga. Julgam estar a pagar pelas enormes quantidades que pretendem devorar, mas acabam por pagar um valor que à partida supera o custo daquilo que é efectivamente devorado.

   E foi num certo momento, num ponto do universo em que não acontecia nada de especial, que se deu o extraordinário caso. O japonês ergueu-se, com dignidade, num gesto solene. E, transformando o braço direito numa espada imaginária, rompeu a atmosfera com a lâmina do pensamento, gritando: “I’m Samurai”.

   Não o fez com irritação, ou algo assim, era antes uma afirmação feliz. Um anúncio, como se tivesse gritado, “vou casar”. A palavra samurai foi dita num tom de chicote, mas igualmente com volúpia, pois prolongava-se o “a” e também o “i”. E todos ficaram a olhar para aquela espantosa figura que irrompera assim, sem aviso, pelas nossas vidas banais. O brasileiro encolheu-se. Apesar de não haver senão uma espada imaginária e um velho digno, embora pequeno; apesar de tudo, inofensivo, de pé ao lado da mesa vazia. No resto da sala pairava o espanto, como se fosse perfume de comida. Com a excepção de Carriço, que tratava do fumegante bufete, ao fundo, e nem se apercebera da comoção.

   Alice foi a primeira a reagir:

   “Está a sentir-se mal?”, perguntou ela ao japonês, de trás do balcão, na esperança vaga de que o velho compreendesse a pergunta.

   O turista olhou para Alice e, de súbito, fez uma vénia, acrescentando algo incompreensível, dito na própria língua, mas que podia muito bem ser “Oh! Encantadora musa que encontro aqui neste antro de ciclopes!”.

   Senti-me na obrigação de agir. O brasileiro afastara-se, com medo, e eu aproximei-me. Dirigi-me em inglês ao idoso:

   “Good Morning, sir”, disse, de modo algo incoerente, pois já passava do meio-dia.

   O japonês ficou impressionado com a minha intervenção. Observou-me. Percebi, por um instante que se prolongava, que ele perdera a confiança inicial. Claudicava

    “I’m samurai”, balbuciou, desta vez num tom de voz que se sumia. Apagava-se, rendia-se. E, depois, num lamento: “I’m samurai”.

   Só então se sentou, mas com elegância, num gesto quase comovente.

   Iniciei conversação, fiz perguntas, sempre num inglês que tentava pronunciar com cuidado, para que ele percebesse. Perguntei-lhe se queria comer, se precisava de ajuda, se estava doente. Ele respondia em japonês, em frases curtas, baixava a cabeça no final de cada afirmação. Sorria imenso ao falar. Era evidente que não percebia inglês, mas era fluente na sua língua.

   Fui traduzindo, embora não percebesse nada do que ele dizia:

   “É um nobre japonês, íntimo do próprio imperador”, expliquei, quando Alice se aproximou.

   Aquela minha explicação interessou a toda a gente. Trocava umas palavras com o samurai e ia construindo a história dele, feita de pagodes imaginários, jardins suspensos no tempo, levitação zen. Falei de mundos inventados, um pouco em busca daquilo que autenticamente me interessa nas pessoas, ou seja, a sua vida interior fantasiada. E o velho turista transformara-se numa espécie de instrumento da minha divagação, habitante de territórios da utopia.

   Sentara-me na mesa do velho e Alice sentara-se ao nosso lado. Os outros (o brasileiro, Carriço, a clientela habitual) rodeavam-nos, de pé, boquiabertos perante o mundo que eu lhes abria através daquela personagem, que todos já viam de quimono florido e espada trespassante. Então, Alice fez um gesto imperial, cortando-me a palavra:

   “Desde quando é que falas japonês?”, perguntou-me.

   Fizera aquele seu movimento de torcer o nariz, que eu tão bem conhecia. Era quase mesmo o nariz a torcer-se, embora não fosse assim exactamente. Os olhos verdes cintilavam de cepticismo. Era o mesmo exacto olhar que me deitara naquela tarde de Verão em que finalmente percebera as minhas manobras defensivas, que as palavras de amor não passavam de pequenas armadilhas, tão imaginárias como os pagodes e os jardins e o samurai, ainda jovem, em busca da sua massacrada família, a passear pela cidade incinerada que uma bomba atómica devastara tão completamente.

   “Pois, efectivamente, não falo japonês”, confessei.

   Na sensual boca de Alice tremia um sorriso. Ela olhou-me, com censura na expressão, a lamentar a minha loucura, mas com sinais de brando carinho e suave amizade. “Então, o samurai é apenas um velho perdido da sua excursão”, sentenciou ela.

   O japonês envelhecera subitamente aos nossos olhos. As rugas de pergaminho eram mais fundas, como mapas de ilhas lendárias. E os olhos baços, através das grossas lentes dos óculos, pulsavam de espanto, surpresa, solidão. Então, Alice tirou o telemóvel de um bolso no avental. Depois, removeu o avental, colocando-se em roupa civil. E surgiu a nossos olhos em blusa com decote e uma minúscula corrente de ouro ao pescoço, a santinha de alguns centímetros dançando entre as clavículas salientes. E o busto dela, que respirava, e onde fixámos os olhos, eu e também Carriço, e o velho samurai e igualmente um afortunado de um cliente, que estava de pé atrás dela e espreitava ainda mais um pouco do que todos nós.

   Alice chamou a esquadra, atenderam, ela explicou tudo, desligou o aparelho e ordenou rapidamente que preparassem um prato para o japonês.

   “Coitadinho”, disse, “deve estar cheio de fome”.

   Finalmente, sorrindo, segurou a mão do velho, segurou-a entre as suas próprias mãos e como que o embalou assim, num maternal veludo.

   “O pobre do samurai, perdido dos seus!"

   A polícia chegou pouco depois, dois agentes, incluindo uma rapariga nova (também nova no bairro, devo acrescentar, eu que adoro mulheres de farda estava a vê-la pela primeira vez); e era bonita, com o cabelo enrolado debaixo do boné de pala, o uniforme que lhe disfarçava as curvas do corpo. Depressa as duas mulheres, Alice a polícia, combinaram uma acção, tiniam pequenos telemóveis, interrogavam-se hotéis e grupos excursionistas, enquanto nós, os homens, entretínhamos o felizardo agente, pois devia ser duro andar na ronda com aquela magnífica colega novata; era preciso arranjar temas de conversação que não parecessem forçados, manter a postura de herói sem parecer demasiado protector, porque as mulheres tendem a rebelar-se quando somos demasiado protectores, embora gostem disso, o que parece paradoxal, como aliás quase tudo é paradoxal nas mulheres, que exigem amor em exclusividade, carinhos e mimninhos, mas sem sufoco ou exagero. Sabe-se lá qual é a dose certa para cada uma? O agente compreendeu a nossa solidariedade e emborcou uma pinga que o Carriço desencantou de propósito. Demos também um copo ao velho samurai, que tinha já comido parte da comida no prato e, ao beber vinho nacional, se mostrou contente, dizendo algo num japonês que nos pareceu adequado elogio.

   Vieram buscá-lo daí a meia hora, outro japonês que partilhou connosco os motivos de tanta aventura: o velho perdera-se da excursão, tal como adivinhara Alice. Era idoso e ficara confuso, não falando a língua local. E ficámos a matutar como deve ser difícil viajar assim. E, ao sair do estabelecimento, o velho olhou para toda a gente, com largo sorriso, os óculos embaciados. Fez uma vénia e disse, num agradecimento:

   “I’m samurai”.

   E também inclinámos a cabeça, por respeito à única frase que ele sabia dizer fora da sua língua.

   Assim partiu o samurai, a descer as escadinhas, amparado no compatriota, para regressar à sua excursão e a esse outro país que é o autêntico.

 

publicado por Luís Naves às 18:54 | link do post | comentar