Desencontros

Mal tivera tempo para tapar a boca com a mão. A rapariga recuou do espirro e olhou para ele, com uma expressão assassina. Sentiu-se trespassado por mil agulhas de angústia alheia. Os outros passageiros tentavam virar as costas e, de facto, ficaram só os dois a olhar-se um ao outro, num confronto, como amantes zangados, cercados pelas costas ostensivas dos passageiros, que tinham criado um muro de betão para a privacidade deles.
O autocarro deu um súbito solavanco e imaginou que alguém tivesse atropelado um cão solitário, ou algo assim, mas tinham passado por dentro de um buraco cheio de água, formando uma onda que vergastou o passeio onde duas velhinhas tentaram ainda, com os seus frágeis guarda-chuvas, impedir a chapada de água. Um dos guarda-chuvas era amarelo, o outro encarnado. Ficaram ambas as velhinhas a pingar e a gritar para os passageiros da traseira do autocarro, que tinham contribuído para a temível onda. Lembrou-se da história da borboleta: o seu peso ajudara a provocar um mini-tsunami urbano.
As costas dos passageiros oscilavam para cima e para baixo, das gargalhadas que se ouviam sem se ver. Era um pouco como o espasmo antes do espirro, mas só com riso.
Distraído no seu casulo, sabia que se transformara num pária, a enfrentar a sua amada assassina, que não se conseguia virar de costas, presa entre os corpos comprimidos. Ela tinha caracóis louros e um olhar doce, agora transtornado. Os germes da constipação tinham voado por toda a cabina. Era inverno e estas coisas propagam-se, pensou, filosoficamente.
Em breve, a gripe estaria em todas as cabeças e ainda sentiu uma espécie de formigueiro, ao aperceber-se do museu de silêncio que cobria a eternidade. Uma mulher gorda olhou-o com fúria, mas ele sorriu-lhe em resposta, no exacto instante em que rebentou num imparável impulso de tosse cava. Tossiu, tossiu, libertando-se das entranhas. E a rapariga por quem se apaixonara deve ter sentido um pouco do bafo quente da sua respiração, moveu pobremente o braço, desalentada, e inspirou profundamente, embora não o quisesse fazer.
Por vezes, as pessoas fazem o contrário do que querem.
O autocarro chegou à paragem inundada e travou com estrondo. Os passageiros tombavam uns em cima dos outros, mas é o mesmo que acontece com os pinguins (vira isso num documentário) protegem-se uns aos outros com os corpos, amparam-se e não caem. Imaginou: se os pinguins caírem, será uma queda em dominó.
Saiu do autocarro e sentiu o vento refrescado. Era inverno e encheu os pulmões com ar impuro da cidade. A rapariga também saiu naquela paragem, dirigindo-lhe um insulto de despedida. Nunca mais a veria. Um amor morrera à nascença. Observou-a melhor, olho de perito: não perdera nada de especial, tirando os caracóis louros e a expressão doce.
E em passos cada vez mais febris, largou as solas dos sapatos molhados no chão escuro e endurecido da estrada. Alcatrão do melhor, lisinho e lixado.

 

 

Este continho absurdo e um bocadinho nojento (mas que me diverte) foi escrito em Dezembro de 2010 e publicado em Emoções Básicas. Estava tão constipado e fungoso como estou agora.

publicado por Luís Naves às 19:09 | link do post