A porta fechada

Por todo o lado, a mesma sensação de decadência. A ruína não apenas nas fachadas dos prédios, mas no interior apodrecido. A caminhar para casa, vejo uma porta fechada e sinto um arrepio que me trespassa, que me faz lembrar a gélida precariedade do destino. Dá-me a sensação de que vivemos no fio, nas nossas lentas manhas, sempre infrutíferas, a pequena sonolência, o tropeço sempre tão rápido.
O que recordo estava além desta porta sombria. A mercearia do Gonçalo era um buraco, descíamos por uma escada e entrávamos numa cave escura, mal iluminada. O Gonçalo era possante, parecia indestrutível, mas só o conheci quando alugou a cave do prédio ao lado do meu. Lembro-me com exactidão: ele estava no exterior, a observar a rua; eu ia a passar, e foi ele a meter conversa; pareceu-me um tipo meio alucinado e fui percebendo um pouco dos seus problemas, aliás quase me contou a sua vida toda. Imaginem: um homem alto e grande, dos seus quarenta e tal, precocemente envelhecido. Tratou-me por doutor e explicou que tivera tudo e tudo perdera. Força de expressão, por certo, pois ninguém é assim tão rico. Mas pessoa que agora nada tenha, mais parece que o que tinha era um tesouro. Desempregado em cinco minutos, tratado como se trata um cão, foi a expressão que ele usou, e a mulher deixou-o nessa mesma semana. Apesar de tudo, ainda a defendia: disse que era boa rapariga, desculpou-se, que o casamento já não ia bem, que não fora culpa dela. Desaparecera da sua vida, era tudo. As mulheres têm ambições, explicou, sem amargura.
   - E aqui me encontro sozinho, doutor, na minha última oportunidade.
Juntara as poupanças para alugar a cave e comprar os produtos necessários para uma mercearia de bairro. Pensei que não seria bom negócio, com a concorrência das grandes lojas (e que problemas já têm os grandes, quanto mais os minúsculos), mas fiquei calado. Qual era o sentido de perturbar o sonho de um iludido ou de um visionário?


Nos meses seguintes, comprava no estabelecimento, parava sempre para falar um pouco com Gonçalo (juro que não me lembro do apelido dele), porque era uma pessoa simpática. Pareceu-me cada vez mais pálido, também mais curvado. Emagrecera. Notei essa degradação e não havia clientela, tal como eu previra, de forma que não sei como podia ele flutuar na economia de mercado.
Um dia, notei-lhe a tosse, a tristeza, e fiquei ali um bocadinho a animá-lo. Contou-me que não podia continuar, as dívidas tinham acumulado, fechava a porta nessa mesma semana. No sábado, desamparou a loja, com a ajuda de uns primos. Eu descia a rua, em passeio matinal, ofereci-me para carregar caixotes, mas ele recusou. Sorriu com a minha oferta. Não o voltei a ver.
Por vezes, penso nas tragédias comuns da humanidade, que são muitas em tempos difíceis, cada uma devastadora para quem a sofre. Certas pessoas parecem atrair o infortúnio e aquele Gonçalo era um desses desgraçados, cuja miséria se confunde com a própria pele. Por muito que tentem, só encontram desaires. Nós, os outros, sentimos pena, mas também um vago alívio por não sofrermos desse fado invisível. A catástrofe não nos pode atingir a todos e já tem as suas vítimas bem escolhidas. É isso que significa esta porta fechada.

publicado por Luís Naves às 19:56 | link do post | comentar