Loiras de Hitchcock

A actriz loira e sofisticada, cheia de classe mas também de inesperada sexualidade, é uma das mais famosas obsessões de Alfred Hitchcock, autêntica assinatura do grande mestre do cinema. O próprio explicou em entrevista a François Truffaut o sentido deste recurso, numa frase hoje considerada cruel, mas que o francês emendou, ao sugerir que as loiras de Hitchcock resultam do fascínio pelo “paradoxo entre fogo interior e superfície fria”.
Vem isto a propósito de um texto que escrevi onde confundia duas loiras de Hitchcock: Tippi Hedren (na imagem) e Eva Marie Saint, atribuindo à segunda o famoso papel de Os Pássaros, essa distopia ambiental ou fantasia erótica que tem perturbado as gerações. Eva Marie Saint é a espia infiltrada em Intriga Internacional, cujo disfarce está na iminência de ser desnudado por um Cary Grant envolvido acidentalmente numa complexa conspiração de agentes secretos. O filme é o remake de Os 39 Degraus, a obra mais divertida do realizador, feita ainda em Inglaterra. Tippi é diferente de Eva e o próprio Hitchcock a definiu como uma beleza clássica, como já não existia no cinema (falava nos anos 60 e mais razão teria agora).


O tema presta-se a digressões confusas. Podia, por exemplo, referir Ingrid Bergman, mas não acho que seja uma loira de Hitchcock, pelo menos em Spellbound e Notorious, as duas obras-primas do mestre; gosto imenso de Kim Novak, em Vertigo, e menos de Doris Day, em O Homem que Sabia Demais, onde surge muito histriónica; Grace Kelly era a favorita do mestre, tinha beleza incomparável e graça infinita; e nunca saberemos o que levou Hitchcock a torturar duas das suas actrizes; Janet Leigh, em Psico, passou seis dias a filmar a cena do chuveiro; e Tippi Hedren cinco dias a levar com pássaros vivos que eram atirados na sua direcção, também para uma única cena, onde algumas das feridas são reais. Para as suas loiras, o realizador inglês não poderia ter usado actrizes famosas da época, como Marilyn Monroe ou Angie Dickinson, cujo excesso de sexualidade teria estragado o efeito pretendido de enganar o público e criar a ambiguidade em relação à personagem (isto acaba em sexo, ou não?); aliás, para as figuras que o autor tinha em mente, Novak e Leigh parecem ser erros de casting e não encaixam na definição do “fogo gelado”. Sobretudo a actriz de Psico, assassinada com malvadez a meio do filme, na cena mais erótica que o mestre filmou em toda a sua carreira.

No fundo, as personagens de Eva Marie Saint e Tippi Hedren são o arquétipo da loira de Hitchcock, o que justifica a confusão que motivou esta crónica. Com a sua sexualidade oculta à maneira de um iceberg, ambas as actrizes parecem pedras de gelo à superfície, mas aquilo que escondem representa uma ameaça. Os homens não poderão resistir, as mulheres rivais não terão hipótese.

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publicado por Luís Naves às 18:23 | link do post