O perdão é uma ideia difícil

Compreendo os hipócritas, que não perdoam a quem nunca os ofendeu. Conheci um, que se dizia cristão e frequentava missa. Nas horas livres, passava pela igreja e rezava. Fatinho justo, usava um gel no cabelo a denunciar a vaidade. Trazia na cara o pecado do orgulho, que é o mais complexo de todos, porque exige do pecador que se sinta acima dos homens e algures entre estes e Deus, que no seu pensamento está acima de tudo o resto. Pois em certo dia que entrara na igreja antiga para saborear a frescura do interior, passeou os olhos pelas decorações barrocas e sentou-se a contemplar o altar em talha dourada, pensando nos seus problemas, que eram mais ambições do que outra coisa. A existência tem alguma crueldade para com os ambiciosos, já que nunca são saciados, como acontece com aqueles que andam no deserto, sonhando com fontes frescas, regatos límpidos, sonhando com um rio lento, jardins e palácios, algo que fica sempre longe.
Pois antes de entrar na igreja este homem tinha o pensamento à solta. Sonhava com situações do passado, e então surgiu-lhe uma memória mal digerida, que até aí não soubera quanto o perturbava, e isso sucedeu ao passar por uma mulher feia, que tinha os dentes encavalitados e o corpo flácido; foi nesse momento casual que rebentou o caudal de recordações que conseguira suprimir durante vinte anos e sentiu-se esmagado por uma culpa que nunca antes sentira: aquela rapariga que o amara tanto e que ele desprezara como se despreza um cão, perdera-lhe o rasto, que teria feito na vida? E pensou, ainda com mais força: foi aí que falhei.
Ao sentar-se na igreja, a observar a altura do tecto, este homem cujo nome não interessa desabotoou o casaco do fato e desapertou o nó da gravata. De súbito, sentia uma angústia: não ouvira os conselhos do seu pai e sempre se pensara superior aos outros. As palavras agrestes que dirigira, a ingratidão e os amigos perdidos, um casamento de interesse e sem amor, os filhos que não gostavam dele, o trabalho onde se refugiava. E a nave da igreja abriu-se sob os seus pés, num abismo, num vazio. A vertigem assustou-o e pareceu flutuar numa espécie de morte em vida.
Na realidade, ficou sem fôlego por pouco tempo. Os sentidos reanimaram depressa e recompôs-se em segundos. Tinha explicação para tudo. Lembrou-se da sua preocupação humanista, ao romper aquele noivado que agora saía do nevoeiro. Sim, tivera todo o cuidado em dizer palavras, não se podia afirmar que fossem bondosas, mas foram suaves e tranquilas. Sim, era isso, transmitira à rapariga uma certa segurança, de que também ela teria um dia alguém que a amasse como ela certamente o amava a ele. Convenceu-se de que fora assim dito e que a jovem tivera em seguida boas oportunidades para a sua própria felicidade. A relação entre os dois teria sido impossível, e quanto às palavras agrestes e aos amigos que nunca tivera, isso devia-se às invejas. Era um homem muito invejado. E não havia um lugar na obra divina para os que tinham sucesso? Não era isto natural e até desejável, prova da existência do altíssimo? Hipnotizado pelo silêncio contemplativo que pairava, partiu dali para a construção de ideias mais elaboradas. Não lhe era possível perdoar os inferiores que lhe recordavam a todo o momento o acaso em que se baseava a sua influência; e nunca poderia perdoar aos que o oprimiam, as elites improdutivas que ocupavam o lugar que era dele por justiça. E como podia perdoar que não o amassem? Era impossível.


Saiu contente daquela reza íntima e cruzou-se comigo à porta da igreja. Sorria e cumprimentou-me, julgando que eu era um paroquiano. Perguntei-lhe:
   - Pacifica os demónios da alma, não é assim?
   - Ficamos prontos para mais um dia – disse ele.
   - E perdoou a quem o ofendeu?
Ele hesitou com esta minha segunda pergunta. De súbito, ficou desconfiado. Não, eu não era um paroquiano, não era um sacerdote que abordava os cristãos, era sim um louco. Respondeu de forma agreste:
   - Que impertinência, meta-se na sua vida.
   - Os demónios continuam a ganhar - disse-lhe eu.
O homem ficou de repente muito vermelho, percebeu-se a sua fúria, fez um gesto na minha direcção, para me renegar, e seguiu caminho, em passo rápido. E pressenti o que ele pensava: sucesso é fogo-fátuo, o poder não passa de ilusão.
E, depois, a pergunta, tão obsessiva como aquelas melodias que não saem da cabeça: Onde é que falhei?

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publicado por Luís Naves às 11:32 | link do post