A verdade de Casablanca

Passaram 70 anos deste filme*, Casablanca, e mantém-se o fascínio. Não será a melhor obra da época, mas há aqui uma magia curiosa, mistura de romantismo sentimental e fantasia poética. As personagens nem são credíveis e o carácter propagandístico tira consistência à história; os alemães são maus e os marroquinos não passam de figuras do cenário. Os diálogos parecem fantásticos: "Porque veio para Casablanca?"; "Vim pelas águas"; "Mas isto é o deserto"; "Fui mal informado". **
O que sempre me fascinou em Casablanca não foi a dupla de amantes, mas o marido enganado, o combatente da liberdade Viktor Laszlo. Para mim, este continua a ser um dos grandes nomes de uma personagem ficcional, a ponto de não me parecer de todo ficção.
A minha tese é de que existiu um Viktor Laszlo real e atrevo-me a afirmar que ele viveu a essência desta história, ou seja, o conhecimento de que a mulher amada hesita entre amor e dever, escolhendo o dever, que é a prisão do casamento. Que destino mais humilhante se pode imaginar, um homem apaixonado por uma mulher que não o ama verdadeiramente?

A primeira pergunta: "porquê Viktor Laszlo"? Este é um nome tipicamente húngaro, a nacionalidade do realizador e a origem dos dois argumentistas do filme. Todos judeus de Budapeste, portanto, conscientes de que este nome não podia pertencer a um checoslovaco. A Hungria estava com o Eixo, pelo que um herói húngaro seria uma impossibilidade em filme de propaganda de 1942. Um étnico húngaro também não era hipótese, pois estes interpretavam o Tratado de Trianon (a Versalhes para o leste) como uma humilhação.
E, apesar disto, os argumentistas mantiveram o nome. Soava bem, mas não há explicação para não se ter inventado outra identidade. Um nome eslavo ou alemão era complicado, mas o que impedia um nome judeu ou neutro para a personagem?
Podemos andar aos círculos e chegamos sempre ao mesmo: para os argumentistas, Viktor Laszlo era um herói autêntico, que viveu os elementos que constituem as vivências incluídas neste embrulho imaginário. A cena da estação é fantasia, todos os pormenores do café de Rick são inventados, mas a situação da escolha entre amante e marido, essa é a parte que resulta do relato posterior do verdadeiro Laszlo. Um relato feito, talvez, num café de Hollywood.


Penso que a viagem para Lisboa integra também a história vivida. Foi antes de embarcar naquele avião que o Laszlo real percebeu, sem margem para dúvida, que algures no passado a sua mulher o escolhera a ele após hesitar sobre um destino alternativo. A opção exigiu coragem e nunca saberemos  o motivo, mas no coração do marido abre-se naquele momento uma amarga ferida. Não pode ser de outra forma.
Hollywood disfarçou tudo isto numa fantasia onde há um improvável pianista Sam e um ainda mais improvável polícia francês. Pouco importam os nomes da mulher e do amante: foram tirados da lista telefónica de Sunset Boulevard. Nunca existiram daquela maneira.
Por isso, Laszlo é a âncora que nos prende à realidade, o ponto fulcral da história. Tirem-no do filme e aquilo não passa de uma limonada.

 

Esta é a ideia em que se baseou o meu livro O Silêncio do Vento. Como seria o autêntico Viktor Laszlo, personagem que pretende salvar o mundo e não consegue salvar-se a si mesmo? Laszlo sabe que a mulher o escolheu por dever e vive o impasse do amor traído numa Lisboa que paira no limbo do conflito como se fosse uma caravela parada, à espera do vento.

 

* O filme estreou em Novembro de 1942, a verdadeira data do aniversário.

** "Prendam os suspeitos do costume" é uma frase genial que se tornou um lugar-comum.

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publicado por Luís Naves às 14:54 | link do post | comentar