Melodrama

Dizem que as pessoas mudam antes de morrerem, mas pode ser mito. Os nervosos mostram-se mais compreensivos e são tomados por uma cúmplice serenidade; os filhos de puta tentam emendar os múltiplos pecados, como se pensassem que ainda é possível a redenção; aqueles que durante a sua vida nunca falaram, querem agora dizer a última palavra. Se isto é verdade, então a mudança pode não passar de uma forma de luta contra o tempo, sendo portanto inútil, pois o tempo vence sempre.
Cometi muitos erros na minha vida e, como qualquer pessoa, sonho por vezes na possibilidade de voltar atrás e de os reparar. Seria um risco enorme, eu sei. Uma pequena mudança naquele ponto da minha vida e tudo teria seguido de forma diferente. Entramos na porta da direita, em vez de entrarmos na da esquerda e a vida muda: e pensamos, por ali era melhor, sem sabermos a história toda, que a um início auspicioso se seguiria a catástrofe prematura.
Olho pela janela. Vejo as pessoas a passarem na rua. Os automóveis. Um vizinho. Este vizinho mora quatro prédios mais abaixo, mas não o via há meses. Caminha com passo incerto, as calças estão mal seguras, o casaco torto. Parece enregelado. Envelheceu de repente. Lembro-me; conheço-o há mais de vinte anos, muito antes de ter ido viver para o sul. Ele era crítico de cinema e imagino que esteja reformado, com uma pensão que mal paga a comida. E havia este filme americano, de Douglas Sirk, não me ocorre o título, e fiquei intrigado por haver tantas cenas em que um vento varria as folhas do chão. Era tão frequente, que se tornava quase uma banalidade; e discuti isso com aquele homem que agora passa na rua (era um festival qualquer e eu era apenas espectador e o grande crítico estava a falar para um grupo de estudante e atrevi-me a dizer aquilo, se ao menos Sirk tivesse usado o truque kitsch uma única vez, então teria sido mais eficaz, e o homem olhou para mim e sorriu com ar superior e explicou-me a natureza profunda do melodrama e que o efeito de repetição, pelo contrário, sublinhava o lado poético da metáfora). Não terão sido estas as palavras exactas, suponho, mas era este o sentido. A minha memória é insuficiente para preencher as lacunas, já nem sei o nome do senhor.
Sei que há um vento cortante e que, na ausência de folhas nas árvores, são as folhas de jornal e outros lixos que o vento arrasta. O homem de passo incerto, as calças mal presas a arrastarem pelo chão, a cabeça descoberta, madeixas de cabelo branco a esvoaçarem, e quatro folhas soltas que passam ao lado do vulto envelhecido, revolteando aos turbilhões, desaparecendo para lá do ângulo da minha janela. E o vizinho também passa, levando às costas a sua metáfora de melodrama, e deixo por instantes de ver pessoas na rua.

publicado por Luís Naves às 21:12 | link do post | comentar