Quarta-feira, 30.11.11

Valse Triste (Jean Sibelius)

Há muitas gotas de água a flutuar na brisa, dançam umas com as outras, felizes. A erva alta, de verde amarelado, ondula como um mar de sargaços, entre brilhos, remoinhos e carícias. A planície estende-se para além das folhas de ácer que escondem o horizonte e ao fundo vejo uma casa cor de cinza, mas isso nada significa; as folhas bailam ao vento, com um frufru de vestidos numa agitação alegre, que roda e cintila. Vejo as borboletas que passam, duas azuis, indiferentes, batendo asas ao ritmo do coração embalado. E, pouco depois, talvez muito depois, dilui-se a luz delicada e chega devagar a escuridão imprecisa que anuncia vagas de mil insectos no começo da sua festa nocturna. Há ainda um drama final, do ar que adormece, e sinto ligeiro arrepio de frio, da noite que avança, triste, a segurar nos braços a sua amada branca, a neve que sopra do alto, rodopiando, num ritmo que acelera pela sala toda que é o mundo.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 19:58 | link do post | comentar
Terça-feira, 29.11.11

O velho do Restelo

Tornou-se moda dizer que um "velho do Restelo" é uma figura contra o progresso. Usa-se a acusação com desprezo e em tom sabedor, para atingir um adversário, ridicularizado através da ideia de que não compreende a modernidade. Mas o Velho do Restelo que surge no Canto IV dos Lusíadas é afinal uma figura de "aspecto venerando" que comenta na praia a expedição imperial e as respectivas ilusões. A personagem de Luís de Camões fala da "inquietação d'alma e da vida", também refere a manipulação política: "chamam-te Fama e Glória soberana/ nomes com quem se o povo néscio engana".
Depois, surgem os famosos versos, "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ desta vaidade a quem chamamos Fama"; e no remate do seu aviso aos aventureiros, o velho questiona-se "a que novos desastres determinas/ de levar estes reinos e esta gente?"
Assim, o Velho do Restelo não é nenhum reaccionário, mas o símbolo dos homens prudentes. No mundo em que vivemos, feito de glória de plástico e fama instantânea, esta personagem devia ser mais respeitada. Os populistas usam os métodos da "inquietação d'alma" para enganar as massas hipnotizadas pelo vazio e o progresso tornou-se um simulacro, feito apenas de novidades passageiras, portanto, assente na areia da praia. E a vaidade, de tão estúpida, leva mesmo reinos a novos desastres.

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publicado por Luís Naves às 21:32 | link do post | comentar
Segunda-feira, 28.11.11

Vulgares de Lineu

A solidão da escrita tem um lado de liberdade, pois se ninguém ler isto, então para quê limitar o pensamento? Por vezes, escrever é como caminhar, colocar um passo atrás do outro, procurar o melhor caminho. Mas há uma distinção importante: quando se anda, o corpo funciona de forma automática; por outro lado, encontrar palavras é tarefa que, sem cansar os músculos, exige um sentido.
Uma personagem de Kundera achava as mulheres todas iguais, pelo menos em 999 porções de mil, e dizia que procurara, em todas as mil mulheres que tinha amado, o milésimo de diferente. Não sou tão pessimista, acho as pessoas todas diferentes em maior grau do que um milésimo, sobretudo as mulheres. Existe até uma taxionomia dos seres humanos, na visão de quem os observe a certa distância: há pequenas variações, que se somam umas às outras e formam grandes famílias, como acontece com as flores, divididas conforme a forma das pétalas, dos caules e das folhas, numa profusa variedade, embora não infinita. Aos humanos, tento observá-los à lupa, todos ambiciosos dentro da sua modéstia, esmagados no meio da sua independência, felizes entre as suas muitas tristezas, alguns com esperança outros resignados. Enfim, cada um a fazer o seu caminho, sem saber bem para onde ir, um pouco como fiz neste texto, colocando uma palavra à frente da outra, com muito esforço. 

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publicado por Luís Naves às 19:03 | link do post | comentar

Ideias soltas

Um diário devia servir para contar a parte da vida que não podemos confessar a ninguém, sobretudo a nós próprios. Sempre quis escrever uma espécie de diário, mas nunca o fiz por sentir que isso não é possível. A ficção é uma mentira verdadeira em que ficamos expostos à curiosidade alheia, mas ninguém nos leva a sério; no diário, tudo é pomposamente mentira, ou assim parece, pois o diarista esconde-se atrás de cenários elaborados e ficções complexas. Enfim, o diário é a suprema invenção de uma personagem, o próprio autor, tal como ele se imagina nas suas limitações e sonhos, nas suas fraquezas raramente descritas, nas pequenas invejas e medos. E que interesse pode ter a personagem do autor? Em princípio, pouco, pois aquilo que verdadeiramente importa na literatura é o que está no exterior da esfera íntima de quem escreve, o que se observa, o que se vive e o que se imagina. Raramente ele mesmo, ou é a vaidade que se espalha pelas páginas.

Talvez seja assim, não sei. Isto, de qualquer forma, nunca será um diário, pois a verdade não passa de uma aproximação, um ponto de vista. Leiam estas linhas como peregrinação pelo interior do que está fora de mim, deambulações vagas e textos vários, observações, prosas oficinais, nada para levar a sério, algumas reflexões de que me envergonharei, sempre aquém do que imagino, imperfeito, impreciso e em movimento, também sufocante, como poeira solta no vento...

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publicado por Luís Naves às 16:37 | link do post | comentar

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