Sexta-feira, 30.12.11

(Europa) Água, sedução e mito

As histórias da mitologia são complicadas, mas é interessante como o DN, na sua edição de aniversário, escolheu o "Rapto de Europa" como imagem para ilustrar o ano. O mito tem várias fontes e não vale a pena entrar em controvérsias sobre as interpretações, mas Europa seria filha de um rei fenício e julgo que descendente de Poseidon, senhor dos oceanos. Encantado com a sua beleza, Zeus tomou a forma de um touro e levou-a pelo mar. Esta sedução (na realidade, trata-se de uma violação) é o ponto crucial do mito. A força não resiste à sedução da água.
Agora, é de novo um touro a seduzir e raptar Europa. O touro simboliza a fúria dos mercados, esse poder insensato do capitalismo que domina a nossa civilização e lhe conquista a beleza.
Europa, nome de uma lua de Júpiter que pode conter sob a camada de gelo todo um oceano, sendo Júpiter o deus supremo dos romanos, equivalente a Zeus grego. O satélite tem o tamanho da Lua e, na superfície, são visíveis riscos escuros que correspondem a fendas nas espessas placas geladas. Possui uma camada de atmosfera abundante em oxigénio e a gravidade de Júpiter produz marés e calor que talvez permitam a existência de um oceano líquido. A gravidade, essa sedução irresistível cujo poder pode fundir gelo.

 

A imagem é um pormenor da pintura de Noel-Nicolas Coypel (1690-1734) sobre o rapto de Europa

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Quarta-feira, 28.12.11

Desencontros

Mal tivera tempo para tapar a boca com a mão. A rapariga recuou do espirro e olhou para ele, com uma expressão assassina. Sentiu-se trespassado por mil agulhas de angústia alheia. Os outros passageiros tentavam virar as costas e, de facto, ficaram só os dois a olhar-se um ao outro, num confronto, como amantes zangados, cercados pelas costas ostensivas dos passageiros, que tinham criado um muro de betão para a privacidade deles.
O autocarro deu um súbito solavanco e imaginou que alguém tivesse atropelado um cão solitário, ou algo assim, mas tinham passado por dentro de um buraco cheio de água, formando uma onda que vergastou o passeio onde duas velhinhas tentaram ainda, com os seus frágeis guarda-chuvas, impedir a chapada de água. Um dos guarda-chuvas era amarelo, o outro encarnado. Ficaram ambas as velhinhas a pingar e a gritar para os passageiros da traseira do autocarro, que tinham contribuído para a temível onda. Lembrou-se da história da borboleta: o seu peso ajudara a provocar um mini-tsunami urbano.
As costas dos passageiros oscilavam para cima e para baixo, das gargalhadas que se ouviam sem se ver. Era um pouco como o espasmo antes do espirro, mas só com riso.
Distraído no seu casulo, sabia que se transformara num pária, a enfrentar a sua amada assassina, que não se conseguia virar de costas, presa entre os corpos comprimidos. Ela tinha caracóis louros e um olhar doce, agora transtornado. Os germes da constipação tinham voado por toda a cabina. Era inverno e estas coisas propagam-se, pensou, filosoficamente.
Em breve, a gripe estaria em todas as cabeças e ainda sentiu uma espécie de formigueiro, ao aperceber-se do museu de silêncio que cobria a eternidade. Uma mulher gorda olhou-o com fúria, mas ele sorriu-lhe em resposta, no exacto instante em que rebentou num imparável impulso de tosse cava. Tossiu, tossiu, libertando-se das entranhas. E a rapariga por quem se apaixonara deve ter sentido um pouco do bafo quente da sua respiração, moveu pobremente o braço, desalentada, e inspirou profundamente, embora não o quisesse fazer.
Por vezes, as pessoas fazem o contrário do que querem.
O autocarro chegou à paragem inundada e travou com estrondo. Os passageiros tombavam uns em cima dos outros, mas é o mesmo que acontece com os pinguins (vira isso num documentário) protegem-se uns aos outros com os corpos, amparam-se e não caem. Imaginou: se os pinguins caírem, será uma queda em dominó.
Saiu do autocarro e sentiu o vento refrescado. Era inverno e encheu os pulmões com ar impuro da cidade. A rapariga também saiu naquela paragem, dirigindo-lhe um insulto de despedida. Nunca mais a veria. Um amor morrera à nascença. Observou-a melhor, olho de perito: não perdera nada de especial, tirando os caracóis louros e a expressão doce.
E em passos cada vez mais febris, largou as solas dos sapatos molhados no chão escuro e endurecido da estrada. Alcatrão do melhor, lisinho e lixado.

 

 

Este continho absurdo e um bocadinho nojento (mas que me diverte) foi escrito em Dezembro de 2010 e publicado em Emoções Básicas. Estava tão constipado e fungoso como estou agora.

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Segunda-feira, 26.12.11

A casa e o pinhal

Passávamos o verão com a avó, mas antes dessa época ela vivia numa aldeia. A casa tinha dois andares, o primeiro de cave servia para os animais, e só ocupava metade do comprimento. Como era professora primária da aldeia, a minha avó não tinha muitos animais, só uns coelhos e algumas galinhas e julgo que um porco, mas nem sempre tinha um porco. No andar de cima viviam as pessoas e a porta de entrada principal aproveitava uma zona mais elevada do terreno e que tinha acesso do lado da estrada. Tento explicar melhor: a casa era isolada e ficava junto a um pinhal, que se prolongava pela colina suave. Na entrada, estava a escadaria curta e, lá dentro, um longo corredor com quartos de cada lado; ao fundo, a cozinha, que tinha vista sobre um campo de cultivo, que pertencia a alguém, mas onde nunca vi gente a trabalhar; e, ao lado da casa, via-se a pedreira que tinha servido para a construção, um buraco no terreno, cheio de silvas e espinhos.
O que mais me interessa neste exercício de memória é o pinhal. Era enorme e estava cheio de fetos do tempo dos dinossauros. As árvores cheiravam a resina e cada uma delas tinha uma ferida no tronco e corria um sangue transparente para pequenos potes de barro. Metia-se lá os dedos e aquilo era pegajoso. Nós vínhamos da cidade numa camioneta da carreira, com a minha mãe e os meus irmãos, a viagem durava sete horas e eu adormecia quase logo no início. Só acordava ao chegar, mas tinha a noção de quanto mediam as zonas habitadas do mundo, de que como eram grandes as cidades e como havia tanta gente. Já tinha visto o mar, tudo isso era demasiado natural para mim e nunca pensara na distância.
Mas um dia, era mesmo muito pequeno, talvez com quatro anos, perdi-me no pinhal ao lado da casa (sem me perder da casa) e ouvi o barulho de gente além da floresta, uma voz, sem que se percebesse o que dizia. Era uma ameaça desconhecida, grunhido, lamento, um vago suspiro, grito a resmungar ou a marcar um ritmo ou apenas uma alma em conversa. E aquilo vinha de tal forma para lá do fundo, depois das árvores, que acreditei na existência de seres fabulosos nos confins daquela floresta, que me parecia do tamanho de uma catedral, com os seus pilares elevados a sustentarem o céu. Esse foi um dos dois dias em que aprendi que o mundo era interminável e que havia nele demasiados mistérios para descobrir.

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Sábado, 24.12.11

A literatura do presente

No romance tradicional, os autores tentam fazer a literatura do futuro, mas existe uma literatura do presente que me parece ser um novo género ainda por definir. Concisa, breve, não tem os elementos da crónica jornalística, mistura ficção com realidade, mas não é novela nem conto, antes junta diferentes formatos numa amálgama feita em cozinha amadora e demasiado improvisada. Está para a literatura como a música está para o jazz. É totalmente oficinal e desprovida de intermediários, de editores, de revisão, de crítica. Só tem o autor e os seus leitores, que passam por ali distraídos.
A literatura do presente fala da realidade, mas discorre pela reminiscência e o passado, pelo sonho e as ambiguidades, pela imprecisão casual e a observação despreocupada. Os narradores quase sempre escrevem de forma inacabada sobre as suas vidas, mas funcionam muitas vezes como cronistas instantâneos de pequenas cenas de agora e de outras imaginadas. Esta literatura passa à frente dos nossos olhos, escrita em blogues que se estão nas tintas para as audiências e usam a linguagem de hoje. Não é bem diário íntimo, porque se encontra exposto e, por isso, não tem autobiografia pura, embora possa incluir as incertezas de memórias escritas trinta anos depois dos acontecimentos.
A literatura do presente está embrulhada em mentiras subtis que não lhe retiram um milímetro da autenticidade. Nela, há fantasia e olhares originais, colagens e fotografias pirateadas, histórias curtas do quotidiano, erros de facto e exageros grosseiros, ideias fixas e passos em falso, tudo muito efémero, exposto em fragmentos e arrumado em pequenos livros futuros, alguns possíveis, quase todos impossíveis, cada um com a sua etiqueta.

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publicado por Luís Naves às 12:58 | link do post | comentar | ver comentários (5)
Sexta-feira, 23.12.11

Dia cruel

Procurava, patética, que alguém lhe desse atenção. A voz ligeiramente esganiçada, Peito alçado, a dar com o nariz empinado, e começava cada frase com a palavra Eu. Mas acumulara muitos anticorpos e sabem como funcionam estes ambientes de empresa. Não é bem crueldade, mas uma espécie de justiça popular que não se compadece da solidão alheia. E ela prosseguia nos monólogos, a beleza já um pouco envelhecida, o cabelo sem o brilho de antigamente, a pele a enrugar na cara e no pescoço, um certo peso dos anos a acentuar a vibração da voz, hesitação de incerteza, um toque de agudo. As pausas eram sempre um alívio. Sentia-se de tal forma bonita, que usava Eu em cada frase e não conseguia perceber a indiferença fria dos outros, na qual detectava um pedacinho de desprezo. Iam saindo de cena e despediam-se entre si, com abraços e beijos. Todos a ignoraram e ela ficou ali a tarde inteira a pedir que lhe dessem atenção e, depois, desistindo, foi passar o Natal sozinha.

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Quinta-feira, 22.12.11

Metafísica de algibeira

Na história universal da filha-de-putice há mais episódios do que personagens, mas as personagens são todas originais e bem imaginadas.
Já o amor é igual em todo o lado e bastante monótono.
Há quem pense que a humanidade tem um problema de construção ou talvez de concepção e desenvolvimento, enfim, no mínimo uma avaria séria. Terá sido da qualidade do material utilizado no fabrico? Havia defeitos? Andaram a poupar, a queimar etapas? Foi falta de financiamento e os pormenores finais não foram bem tratados? Excesso de pressa nas entregas devido à impaciência do expedidor? Devia ter escrito Expedidor com caixa alta?
Se havia todo o tempo do mundo, para quê o desleixo?
Também já li a teoria de que os seres humanos possuem cérebros demasiado grandes, sendo o cérebro um órgão desnecessário, à semelhança da cauda do pavão, embora se possa dizer que há mais pavões entre os homens do que homens capazes de usar os cérebros. Será que os deuses ponderaram outrora colocar uma cauda de pavão nos homens e cérebros desenvolvidos no pavão, tendo havido uma lamentável troca de última hora, fruto de excesso de pressa em povoar o jardim do éden? E foi por isso que ficámos parcialmente inteligentes, enquanto os pavões ganharam aquelas caudas ridículas?
Desculpem lá estas inquietações metafísicas, mas também já li a teoria de que a humanidade está a ficar mais bondosa, conclusão a que se chega facilmente se pensarmos um pouco nela, pois o amor tem vantagens evolutivas evidentes, enquanto ninguém deseja interagir sexualmente com um autêntico filho-da-puta. Já sei que estão a pensar em mil excepções e também a mim me ocorrem algumas…
Tentemos reformular a teoria. Ora, a filha-de-putice está em vias de extinção porque sabemos que os filhos-da-puta não têm sentido de humor e as nossas parceiras dão importância a quem saiba contar anedotas, pelo que eles tendem a não se reproduzir.
O pior é se isto não é genético, mas está antes ligado a um órgão defeituoso, o fígado, por exemplo, até se diz de uma pessoa má que tem maus fígados. Ou a próstata, que dizem não servir para nada, o que é suspeito.
Ou talvez aquela ideia mais complexa a que chamamos amor seja uma incómoda cauda de pavão. Isso pode explicar os problemas colocados nesta pequena análise do microcosmos que é o ser humano. Assim, o autêntico defeito deve estar no inútil comportamento do altruísmo. Não há outra explicação para a estúpida serenidade do homem civilizado a tentar inutilmente fugir da barbárie.

 

Nota: e só temos duas pernas para fugir, o que nos torna lentos, ao alcance fácil de qualquer mediano chupador de cérebros.

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publicado por Luís Naves às 00:12 | link do post | comentar
Segunda-feira, 19.12.11

Primeira memória

A memória mais antiga é a de uma casa, de um corredor; há luz lateral, das janelas à minha esquerda e o aparador, daqueles móveis velhos cheios de objectos expostos, mas imprecisos na forma. Esta memória não tem nada de especial. Ao fundo do corredor há um quarto e neste quarto de mansarda existe a janela, das que estão no tecto e se abrem para fora, ou seja, para cima, e dá para passar para o telhado.
Lembro-me de estar no telhado e lá em baixo era longe. Um sol esplendoroso. O meu irmão está em pé, sobre as telhas, mesmo à beira do abismo. Não me recordo se estou muito perto ou muito longe do fim do telhado, mas devo ter passado para o exterior da janela, certamente com sensação de perigo, ou não teria qualquer recordação do acontecimento.
A memória deve ser falsa, pois os meus irmãos mais velhos garantem-me que nunca saí para o telhado. Que eles, sim, o fizeram, até à minha avó os descobrir e, com uma incrível calma, sem entrar em pânico, os chamar para a segurança. A mansarda ficava num quarto andar, mas eu não cheguei a ir para o telhado, embora me lembre de passear ali, de pé, caminhando sobre as telhas, pois já devia caminhar nesta altura. Em que ano aconteceu? Digamos que foi talvez 1965, mas nunca andei sobre as telhas, nunca estive naquele telhado da mansarda de quarto andar, nem vi nada de especial, excepto o sol brilhante e quente. Lembro-me de ouvir falar, pois o episódio aconteceu mesmo, os meus irmãos mais velhos estiveram naquele telhado e podiam ter caído do quarto andar e, ao assistir a tudo (mas dentro do quarto) fiquei com memória do incidente como se também eu lá estivesse.
Foi o que me ficou do ano de 1965, ou talvez de 1964, algo que nunca aconteceu, andar sobre o telhado, de resto não me recordo de como as pessoas vestiam, de como eram, o que diziam, o que faziam. Como eram os carros e os gelados, o regime e as televisões, os jornais e os cafés. E as crianças ou as cidades.
Na minha primeira memória, falsa como ela é, recordo o dia em que invejei os pássaros, porque podiam voar para além da plataforma do telhado e ver o mundo lá do alto, sem esforço algum. De certa forma, na minha primeira memória, falsa como ela é, fui um pássaro e as pessoas lá em baixo eram minúsculas, em vez de serem grandes.

publicado por Luís Naves às 23:01 | link do post | comentar

Navegações

Um grande texto de Manuel Jorge Marmelo, cheio de humor. Teatro Anatómico é uma referência da blogosfera.

Um bom texto de André Abrantes Amaral, tirado de O Insurgente. Concordo no essencial com a ideia do autor, mas acrescento o seguinte: a diversidade da Europa foi de facto vítima de um longo processo de limpezas étnicas e uniformizações de teor nacionalista, mas o processo foi travado pela União Europeia, que tem o efeito inverso. Há assim duas Europas, a antiga, que é anti-cosmopolita, e a nova, por enquanto uma espécie de utopia universalista.

Um texto da minha autoria, sobre a morte de Kim Jong-il.

Outro texto sobre o tema, de Rui Bebiano, em A Terceira Noite.

 

 

 

publicado por Luís Naves às 18:38 | link do post | comentar
Domingo, 18.12.11

Um mundo novo

Quando o barulho do vaporetto se dissipou e ficou no ar uma espécie de inércia surda, pairou entre os passageiros um momento mágico de silêncio. Foi uma sensação breve, enfim, pois logo se ouviu o rumor da água, das pequenas ondas agitadas que batiam no cais e nas paredes do canal, que pareciam querer abraçar a terra e puxá-la para o fundo da lagoa. Veneza escondia-se atrás de um manto brumoso. No frio, percebiam-se as vagas manchas de cor dos telhados acima da neblina, as janelas recortadas na cinza húmida do nevoeiro pesado, os sons abafados do resto da vida. A velha cidade ocultara-se do sol, tapada por um véu nebuloso e triste.
Nessa primeira manhã em Veneza, fui colocar a mala num quarto sombrio que alugara num hotel decrépito, apesar de tudo caríssimo. Naquelas primeiras horas, percorri vielas e deambulei pelas ruas estreitas, subindo e descendo pontes, por duas vezes atravessando canais em pequenas embarcações instáveis.
À tarde, umas fímbrias solares atravessaram o nevoeiro e percebia-se melhor a altiva grandeza dos palácios meio submersos e a solenidade das igrejas e a imponência dos mais pequenos pátios. A cada esquina uma surpresa e não me cansei de as descobrir, num passeio a pé que me levou a uma fadiga repleta de contentamento. Quase não comi nesse dia, ia parando em sítios sem turistas, que havia poucos, e petiscava um doce ou algo salgado, para enganar a fome, pois estava com apetite de registar em imagens os edifícios assombrosos que me rodeavam.
Regressei ao hotel, ao quarto acanhado e acordei na manhã seguinte com os ruídos da pessoa que dormia no quarto ao lado. Calhou que saíssemos os dois ao mesmo tempo: era uma mulher jovem, sorrimos, ela cumprimentou-me em italiano, buongiorno, e procurámos ambos a sala do pequeno-almoço, que estava vazia. Era tão acanhada como o resto do idoso hotel. Sentámo-nos em mesas diferentes, mas eu podia observá-la. Uma mulher jovem, mas não demasiado; reparando melhor, parecia mais nova do que era; baixa, magra; tinha cabelo negro, comprido, a boca pequena, olhos expressivos e um sorriso enigmático. Reparei que era fumadora e que o nariz desproporcionado lhe dava um ar de nobreza mediterrânica, que ela assumia ainda mais usando o corpo de forma elegante, como uma bailarina, a enfrentar o mundo com a cabeça ligeiramente levantada. Ela saiu primeiro, cumprimentou-me, ciao, e reparei que levava na mão uma pequena máquina fotográfica. Pensei que era uma turista a tentar falar a língua dos nativos.

publicado por Luís Naves às 17:26 | link do post | comentar
Terça-feira, 13.12.11

A viagem (5)

O comboio ficara parado na estação do Rossio e o major Neves, que sentira uma pequena pontada de dor no peito, sorriu com tristeza para as duas amigas, que continuavam a tagarelar alegremente, alheias à catástrofe que os rodeava. Muito pálido, estranhando a ausência de passageiros, levantou-se discretamente, pediu licença, e saiu à procura de um ferroviário que pudesse esclarecer o enigma. Encontrou um homem com ar de responsável pelas operações, que deambulava pelo cais, em uniforme; saiu da carruagem (por um momento, ocorreu-lhe que o comboio poderia começar a andar naquele exacto instante e não se afastou). Nem se apercebeu do tom impertinente e autoritário que usou com o responsável:
   − Ò faxavor, a composição está atrasada. No horário dizia 10 e 30. É inadmissível, este serviço africano. Paguei bilhete e não foi barato.
   − Este é o comboio das 10 e 40. Faça favor de embarcar. E se pagou bilhete, já o veremos.
O outro respondera com ar de quem lhe dava pouca relevância e o major sentiu-se vexado com a insinuação de desonestidade. Estava tão pálido, que ao corar de forma abrupta quase se sentiu mal. Mas lá subiu, com dificuldade, e sentou-se junto às duas amigas, ainda alheias ao drama, e que conversavam, belamente iluminadas pela luminosidade sombria da magnífica estação.
O major não descansou enquanto o maldito comboio não saiu, também ele vagaroso, na direcção do túnel. Começara entretanto a aperceber-se melhor dos detalhes que o rodeavam, o veludo elegante dos assentos na carruagem, num vermelho cor de vinho que fazia contraste perfeito com o cabelo louro da enfermeira Ângela Maria. E pensou, numa espécie de susto, que nunca a vira assim vestida: ela trouxera, naquela manhã, um decote mais aberto que deixava adivinhar o esplendoroso peito, muito branco e largo. Ângela usara sempre vestidos cobertos até ao pescoço, muito pudicos, e era espantosa aquela metamorfose, afinal uma alteração tão insignificante que mudara completamente a percepção da pessoa. De súbito, o major foi atacado por uma onda horrível de calor, cuja única solução seria abrir a gravata e o colarinho da camisa, libertar-se do colete e despir o casaco, que era tudo o que não podia fazer. Sentiu-se oprimido pela própria roupa, que lhe picava a pele e fazia ferver o sangue.
Neste ponto surgiu o ferroviário, que era afinal o cobrador do comboio e que pediu os bilhetes às senhoras, muito amável, com um sorriso amplo, descobrindo a cabeça, erguendo o chapéu redondo com um gesto distinto. E o major reparou que o funcionário lhe pedira também a ele o bilhete, mas em maus modos.
O major tirou do bolso os três bilhetes, entregou-os, e o biltre ficou longo tempo a observá-los, como se houvesse uma irregularidade. Depois, num tom de voz policial, disse:
   − Então, compras três bilhetes de segunda classe e ocupas a carruagem de primeira?

 

(continua)

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publicado por Luís Naves às 11:28 | link do post | comentar

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