Quinta-feira, 26.01.12

Carrinho de bebé

A mulher entrou a empurrar um grande carrinho de bebé, a atrapalhar-se, mas ninguém tentou segurar a porta. Devem ter reparado naquilo que só vi algum tempo depois, que ela tinha o cabelo espetado e sujo, cor incerta e desvanecida, roupa desmazelada, olhares vorazes, próprios do animal anestesiado. Em resumo, era uma louca.
Ela foi empurrando o carrinho de bebé, que tinha cobertura de plástico para proteger da chuva. Fez manobras cuidadosas entre as mesas, como se tentasse não acordar a criança. Sentou-se, pediu um galão e uma torrada e ficou sozinha, a comer em silêncio, com o carrinho ao lado, a tapar a passagem no corredor da direita.
Esteve ali dez minutos, a olhar com severidade para os clientes. Depois, pagou com uma nota de vinte e agradeceu à empregada, como se tivesse tomado chá e bolinhos.
Saiu, de novo em manobras confusas, pedindo desculpa, apesar de ninguém lhe devolver o sorriso.
Pensei que seria talvez uma mãe solteira em desespero. Mulher dos seus trinta e tal. Fiquei incomodado, a meditar naquilo: deixavam uma desequilibrada passear o seu bebé?
Depois do almoço, encontrei a doida na rua. Estava a falar para dentro do carrinho e, não sei porquê, aproximei-me, talvez para lhe recomendar que procurasse ajuda (deu-me para esta hipocrisia). E, quando me aproximei, percebi. Debaixo da cobertura de plástico, havia um pequeno volume de roupa a simular uma forma cilíndrica. E ela mostrava-lhe o dedo espetado no ar, avisando gentilmente um bebé imaginário.

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Segunda-feira, 23.01.12

História do Futuro (volume IV) 2050-2060

Os motivos do colapso generalizado da civilização ocidental têm sido objecto de grande controvérsia entre os académicos. Há centenas de estudos sobre este interessante tópico e destacam-se dois tipos de explicação: os recursos disponíveis eram insuficientes ou foram utilizados até ao extremo; as desigualdades sociais que resultaram da crise do capitalismo e das tecnologias genéticas provocaram o declínio da ordem económica. Sem querer entrar em pormenores, julgo que há bases sólidas para apoiar ambas as teses. Dada a natureza complexa dos fenómenos associados a este período histórico, que é extremamente curto (na realidade, uma simples década) torna-se difícil fazer um resumo eficaz.
A civilização do ocidente dependia em excesso de dois elementos: petróleo, de onde obtinha o essencial da sua energia; e capital, a base de uma ordem económica baseada no mercado livre e que, na primeira metade do século XXI, foi excessivamente desregulado. O petróleo era essencial não apenas para iluminar as cidades, mas para a produção industrial e alimentar, transportes e aquecimento. A queima de combustíveis fósseis tinha forte impacto nas mudanças climáticas e a economia girava em torno do preço do combustível, cujas flutuações demasiado rápidas provocavam crises regulares.


A ruptura ocorreu entre 2050 e 2060. Esta série negra de anos desastrosos correspondeu ao rebentar da pressão de vapor acumulada nas décadas anteriores, consequência da crise energética que se desenvolvera a partir dos anos 10 do século XXI. Existe ainda hoje uma ideia errada de que os poços petrolíferos eram como lagos líquidos formando uma determinada camada geológica. Bastava perfurar e o líquido escorria. Na realidade, o produto estava embebido na rocha e sob pressão, pelo que a sua extracção total era impossível. Os poços começaram a perder força (no sentido literal do termo) e acabaram por tornar-se demasiado dispendiosos, sendo então abandonados. O declínio de produção que resultou do esgotamento das zonas mais ricas do mundo agravou-se nos anos 20 e 30, com aceleração brutal nos anos 40. Calcula-se que o pico petrolífero (máxima produção) foi atingido em 2012. A queda que se seguiu foi suave, mas acompanhada pelo aumento das necessidades de consumo e pelo fracasso das energias alternativas, sobretudo da energia solar, cujas limitações só foram devidamente superadas no século XXII. Herman Roka especula no seu livro Ascensão e Queda da Civilização Ocidental que uma ruptura tecnológica poderia ter resolvido a equação, mas o facto é que não houve esse milagre. Paul Davos escreve algo de semelhante no seu estudo Avanços e Retrocessos. Em 2020, o barril de petróleo atingiu pela primeira vez os 200 dólares norte-americanos (o equivalente contemporâneo a 10 karmas) e, em 2034, no quinto choque petrolífero, o barril de crude passou os 350 dólares, na prática levando à falência inúmeras indústrias em que o uso de energia era intensivo (processamento alimentar, automóvel, siderurgias). Em 30 anos, a produção mundial caíra de quase 100 milhões de barris diários para menos de 40 milhões.

 

 

 

Imagem: Cidade a Arder, 1913, do pintor expressionista alemão Ludwig Meidner (1884-1966)

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Domingo, 22.01.12

Limites da oficina

Um dos aspectos mais difíceis da escrita é definir a linguagem das personagens. Exige-se sentido atento à forma como falam as pessoas, mas também verdade poética. Daí que seja difícil fazer diálogos. Por um lado, estes têm de parecer parte da vida, por outro lado, não podem ser meras transcrições, pois as pessoas reais geralmente só dizem banalidades ou usam interjeições e sons acompanhados de gestos. E as personagens não são pessoas reais, existem na imaginação do autor e, quando estão bem construídas, na do leitor também. Artifício q. b. é como a culinária, o sal vai a olhómetro, mas os verdadeiros cozinheiros deitam tempero sem sequer olharem para o tacho.
Quando existe narrador na primeira pessoa, as dificuldades aumentam, pois os leitores pensam que o texto é necessariamente autobiográfico. No entanto, a primeira pessoa é tanto mais eficaz quanto mais se afasta do próprio autor. Pensem em Lolita, por exemplo.

 

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O rescaldo da incidência

Caminhava a bom ritmo, a descer a rua, a assobiar a melodia de uma canção antiga, J’Attendrai, mas a ritmo de jazz. Quando desemboquei no jardim, vi que muita gente estava a observar um homem em tronco nu, que parecia enervado, e que uma mulherzinha engraçada tentava acalmar. Ela tinha umas maminhas bem feitas e um rabinho assinalável, mas era bizarro estar ali, em pleno inverno, um rapaz em tronco nu, como já disse, observado por três bombeiros, uns trolhas da construção em frente, o senhor do restaurante, uma velhinha que passeava o gato.
Ao comprar o jornal, perguntei ao dono do quiosque o que acontecera e ele explicou-me que chegara tarde para assistir à “porrada”.
   “Agora, é o rescaldo da incidência”, disse ele.
Interroguei-o, para saber pormenores. Dera-se uma luta breve entre aquele matulão e outro que vinha a passar e (especulação) atirara um piropo à rapariga das maminhas bem feitas.
Com a crise, anda muita testosterona no ar, e voaram caixotes do lixo e houve empurrões, murros e gritos. Foi rigorosamente assim, mas mais depressa.
Informado, segui para o meu destino, imaginando que talvez o rapaz em tronco nu conseguisse conquistar a beldade que o tentava acalmar no momento em que abandonei o local, mais ou menos na altura em que destroçaram os bombeiros.
Mas não houve caso nem final feliz. Os escritores sabem estas coisas; umas semanas depois do incidente do jardim, a rapariga escolheu outro paladino, um que não teve nada a ver com este filme.

publicado por Luís Naves às 14:22 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sexta-feira, 20.01.12

O invejoso

Sentia inveja e era isso que o consumia. Produzia-lhe ardor no estômago, da acumulação de ódios  e fluidos. Mas disciplinava-se, embora a custo, pois a inveja não deve ser evidente: o feio fazer pouco do belo é insensato. Assim, usava sobretudo o método da frase implacável, mas lateral, e que se torna eficaz quanto mais injusta. Era raro, mas as pessoas espantavam-se com a sua crueldade e foi ficando com fama de frustrado, sempre adepto de medíocres comparações, teorizando com habilidade que fulano não tinha talento.
Há leis gerais no universo. A vida foi-se apagando. E, depois, morreu. Felizmente, fora cuidadoso nas disposições do testamento. A sua campa era notável no aspecto, esculturas de calcário, tampa em basalto, bem pesada e polida, com o seu nome em letras góticas, douradas. Era bem mais bonita e duradoura do que as restantes à volta, destacava-se com facilidade e via-se de todo o cemitério. As pessoas pensavam que ali estava um morto cuja vida certamente valera a pena.

publicado por Luís Naves às 21:26 | link do post | comentar
Terça-feira, 17.01.12

O império do passado

Sempre adorei banda desenhada e cresci a ler O Cavaleiro Andante (que já não era do meu tempo) e o Tintim, que saía em fascículos semanais e que eu e os meus irmãos corríamos a comprar, antes que esgotasse. A colecção ia crescendo, depois era encadernada. Devo ter lido dezenas de vezes algumas das histórias e, com o passar dos anos, o meu gosto tornou-se mais preciso. Tintim, claro, há ali elementos novos em cada leitura; Blake e Mortimer, que ainda está por ultrapassar. Mas havia muitos outros heróis.
O meu primeiro álbum do Tintim (álbum mesmo) foi oferecido pelos meus pais quando eu estava internado num hospital. Tinha oito anos. É a aventura sul-americana, julgo que agora se chama A Orelha Quebrada, mas conheço por Ídolo Roubado. É o meu álbum favorito. Foi poucas vezes relido, por ter esse lado especial; receio a vaga desilusão que me leve a pensar que não é o melhor álbum (talvez não seja) e eu quero que permaneça na minha memória como o melhor de sempre, por me ter feito companhia naqueles dias de solidão.
As aventuras de Edgar Pierre Jacobs davam para escrever um tratado. Ficção científica da melhor, a meu ver representam o cume da banda desenhada.
Não me refiro apenas ao desenho rigoroso e estudado ao milímetro, a criação de ambientes, as personagens interessantes (o vilão Olrik é fantástico). A força está claramente nas espantosas histórias, pois as sequências sem Jacobs são pobres e banais, completamente irrelevantes. É incrível que Hollywood ande tão distraída. Como é que ainda não existe um filme baseado em O Enigma da Grande Pirâmide ou em A Marca Amarela.

  

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Segunda-feira, 16.01.12

Sobre as obras incompletas

Na edição de sexta-feira do jornal Público (infelizmente sem link), Pedro Lomba escreveu uma crónica sobre os artistas que fazem extensos planos sobre o seu trabalho. O texto, escrito a propósito da biografia de Luíz Pacheco, da autoria de João Pedro George, chega a conclusões estranhas. Segundo Pedro Lombra, Pacheco "sentia que precisava de escrever um romance para ser reconhecido no meio literário. Por isso acumulou projectos e ideias, deu-lhes títulos, trabalhou nas primeiras páginas". Mais à frente, o cronista explica que Pacheco foi sempre um "escritor de pequenas prosas".
Na sequência da crónica, Pedro Lomba afirma que "existem escritores com obra e escritores sem obra". Há também um "terceiro género, os escritores com planos". Depois, é citada a alegada "obra ensaística" de Fernando Pessoa. "O poeta sonha. A obra é que nem sempre nasce", acrescenta o cronista.

 

Julgo que há vários problemas nestas ideias.
Um escritor de pequenas prosas pode ser tão forte como o maior romancista. Os contos de Tchekov são a melhor prova. A arte não está no formato nem na dimensão.
Fernando Pessoa tentou ser ensaísta, mas foi sobretudo poeta. Surge no texto uma confusão entre as abordagens que os autores experimentam e aquelas onde são influentes.
Os planos irrealizáveis e os sonhos são importantes para o método criativo, deles pode resultar uma obra, mas cada autor vale por aquilo que extraiu dessas especulações mentais. O resto é diletantismo.
Além disso, não há "escritores sem obra" e o mesmo se pode dizer de pintores e músicos. Não há escritores sem sonhos ou planos irrealizáveis, mas a arte tem sobretudo a ver com a concretização das ideias, mesmo se a obra é rejeitada pela sociedade e lançada ao esquecimento.

A crónica de Pedro Lomba fez-me lembrar dois exemplos impressionantes que revelam a complexidade do tema.

 

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Domingo, 15.01.12

Danúbio

Não era alguém para sentir nostalgia, mas ficou parado a olhar para a água e a pensar como a corrente impetuosa se parecia tanto com a vida das pessoas. O rio, amálgama das chuvas que a grande planície aprisionava, escondia o borbulhar de muitas almas inquietas. Distraiu-se a olhar para a cidade. Inclinou-se no muro, alheio ao trânsito que passava na estrada atrás, e a sua imaginação vogou pela linha de casas da outra margem. Estava frio. Ajustou melhor a gola do sobretudo, compôs o cachecol e o chapéu fora de moda que trazia à cabeça, e caminhou até à ponte, passou o cruzamento e entrou na praça. A torre da igreja entristecia na sombra da colina, as árvores já tinham perdido as folhas. Nuvens densas pairavam. Eram cinco e meia, hora do crepúsculo.
Depois avançou até um velho café que se chamava Gagarin, viu a sua imagem reflectida na vidraça. Olhou para um lado e outro, mas sem denunciar a tensão; uma visão de águia sobre a praça inteira. Sonolento perigo.
Observou daquele lado: um casal de namorados fingia trocar beijos no banco do jardim (com aquele frio!) Uma carrinha de entregas estacionada, o condutor lá dentro; e o falso jardineiro, a aparar canteiros, mas sem se incomodar muito e, acima de tudo, sem olhar na sua direcção. Havia um homem à porta da igreja; parecia tão autêntico, até tinha sapatos velhos e não se tinham esquecido de lhe sujar as unhas. O homem olhava fixamente na sua direcção, de baixo para cima, e isso atraiu-o: viu a tristeza, meio imbecil, da cara inchada, o saco de plástico onde guardava os tesouros. Sentiu desprezo e tentou recuar, mas o outro não o largava, por isso aproximou-se mais. Não era para lhe falar, mas para se certificar de que não era um deles, um fingidor.
   − Você…
O outro disse aquilo como que acusando, o beiço inferior tremia-lhe.
   − Conhecemo-nos?
   − Roka! Você é Zoltán Roka!
O passado, mais um fantasma, sempre as antigas contas, o fechar do círculo, o regresso dos espíritos, medos adiados, o retorno.
Tentou negar, mas o homem esticou o dedo, não negue, conheço-o bem, e vacilou um pouco; este não era um deles, mas um castigador; e o que lhe fizera tinha de ser feito, queria explicar-lhe isso, protegi-te, mesmo não sabendo quem tu és, pois com outro terias sofrido mais, talvez perdido a vida…


 

publicado por Luís Naves às 15:26 | link do post | comentar
Quinta-feira, 12.01.12

Anatomia da insónia


Rasteja o rumor de fora
Pela casa adormecida.


Sinto pequenos dentes
A escavarem a noite
minando as muralhas
de pedra envelhecida.

 

Movo em vão o corpo
Na bruma doente, humedecida.
Viro-me de novo, lentamente
entre voláteis pensamentos
que deslizam no tempo
da madrugada vencida.


Ouço os curtos passos
Na hora amanhecida.
São outros infelizes
Que tal como eu faço
Esperam o sono docilmente
à espera da própria vida

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publicado por Luís Naves às 11:29 | link do post | comentar
Terça-feira, 10.01.12

Navegações

Um blogue sobre livros, ligado a uma iniciativa de Coimbra, Tantas Páginas. A seguir com atenção.

Um bom post de Hilária Quevedo, em Bomba Inteligente. Sempre gostei deste blogue, mesmo quando discordei da autora. Tem bom gosto, cultura; numa palavra: classe.

O excelente Menina Limão. O grafismo é óptimo e os textos têm grande qualidade.

Outro bom blogue a ler: No Vazio da Onda.

 

Gosto muito da Antologia do Esquecimento. É daqueles blogues de resistência. Pouco citado na blogosfera, o que me parece grande injustiça, dada a qualidade dos textos e o bom gosto das referências.

E atenção ao Ouriço, que estreou recentemente: afirma-se como um óptimo blogue colectivo.

 

Alexandre Borges, em Sinusite Crónica, escreve sobre a publicidade à música clássica. O autor tenta ter graça e esquece que as pessoas que gostam deste tipo de música não ligam pevide à propaganda dos folhetos, embora os programas das récitas, que são pagos à parte, devam ter qualidade (sobretudo na ópera isso é fundamental). Mas é o tempo em que vivemos, tudo é imagem e aparência.

 

 

 

publicado por Luís Naves às 18:35 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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