Segunda-feira, 09.01.12

Questão de gosto

Na experiência, foram usados violinos antigos, Stradivadius e Guarnieri, bem como dois instrumentos fabricados recentemente, um deles com semanas. Os violinistas entravam numa sala de hotel de olhos vendados e tocavam, sem tirar as vendas, com o requinte de ser colocado perfume na madeira, para que não se reconhecesse o antigo pelo cheiro. No final, os músicos foram incapazes de distinguir os Stradivarius e os contemporâneos. Conclusão: a preferência dos especialistas por instrumentos antigos é induzida pelos próprios. A experiência tentava provar que os humanos são incapazes de distinguir entre dois objectos semelhantes e que escolhem um deles por factores emocionais, por exemplo o estatuto conferido pela compra de um objecto caro.
A experiência tem um problema óbvio: os violinistas tocaram numa sala pequena, onde desaparecia a vantagem dos violinos antigos. Com má acústica, a sala até lhes podia ser prejudicial. Ficaria mais convencido se os cientistas também tivessem testado pessoas a ouvir numa sala de grande acústica. Há ainda o problema do tempo: neste caso, faltou a complexa adaptação entre o homem e a sua ferramenta, que exige anos.
A nobreza do antigo pode até ser mito, mas bastará o facto de o músico acreditar que está a tocar num violino excepcional para se superar. O Stradivarius é a alavanca que o leva às altitudes, mas sem aquele violino o salto seria mais curto. A experiência descrita em cima matou a magia, conteve a tradição e as crenças, transformou uma obra de arte em simples objecto, retirou-lhe a alma. Até o perfumou, para o tornar banal, escondendo-lhe a poeira do tempo. Mas tomando as conclusões por válidas, ainda bem que somos subjectivos nos gostos. Incorporamos nas nossas escolhas factores indetectáveis, pois temos horror a que a experiência humana seja constituída apenas por rotinas sem imaginação. Sobretudo, desprovida do esplendor e prazer que retiramos daquilo que é raro ou único. 

 

Na imagem, Violino e Guitarra, 1913, pintura de Juan Gris (1887-1927) 

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Sábado, 07.01.12

A falésia

Houve outra expedição importante e que exige um preâmbulo, para descrever a Amadora desse tempo.
Como todos os subúrbios, aquele tinha no seu centro a estação ferroviária. O comboio já ali passava nos tempos da monarquia e julgo que a paragem principal era em Queluz, por causa do palácio. A Amadora devia o seu crescimento antigo à estrada de Sintra, ao restaurante da Porcalhota, que atraía o turismo burguês, e ao campo de aviação, que mais tarde se transformou na academia militar e no regimento de comandos. A certo ponto (e quem sabe o que criou o fenómeno?) começaram a construir novos prédios na vasta planície junto à estação, a rasgar ruas e ruelas, avenidas e estradas, acessos e pátios, pequenos jardins e escolas.
Quando casaram, nos anos 50, os meus pais pertenciam à nascente classe média sem dinheiro para alugar casa em Lisboa mas que também não queria emigrar para África. Julgo que o meu pai chegou a ponderar a hipótese de ir para Angola, mas não era homem para aventuras e, certamente, a minha mãe não era mulher para aventuras. Optaram por ficar: o meu pai era bancário, tinha emprego seguro; a minha mãe, professora primária, com tempo para tratar das suas próprias crianças. Foram criando três filhos (mais tarde viria um quarto), com salários modestos, mas que chegavam para a situação ir melhorando.
Voltando à história que queria contar: a Amadora crescera exactamente na sua parte plana, até à academia militar. Do lado de Queluz, parava nas ravinas e, do outro lado da estação, ainda não subira as colinas sobranceiras ao vale; depois, do lado de Lisboa, acompanhava a estrada de Sintra, que começou a ser conhecida por estrada de Benfica, pois o ponto de vista de quem vai, o que baptiza, mudara de um lado para o outro. Eu teria cinco anos (ou teria quatro?). A minha mãe pediu-me para ir comprar fósforos (lembro-me assim, mas talvez não fossem fósforos) à mercearia em frente à casa. Ainda me arrepia a ideia; naquele tempo, as mães mandavam as crianças à mercearia em frente.
Enfim, sei que me mandaram à mercearia e fui por ali fora, esquecido da missão, a explorar o vasto mundo. Subi a rua toda e (agora, tenho presente o mapa do percurso), atravessei duas ruas e entrei na última. Sei que fui até à falésia e ali vi toda a cidade que nascia pelo vale. A minha memória é precisa sobre isto: como era enorme a nova cidade! Conhecia o caminho, porque uma das últimas casas dessa rua sem saída era da modista da mamã. Já lá tinha ido. Foi aliás a modista que me viu passar e me apanhou na falésia, a contemplar o mundo. Levou-me para casa e entregou-me à minha mãe, que nunca mais me mandou comprar fósforos.

publicado por Luís Naves às 10:26 | link do post | comentar
Sexta-feira, 06.01.12

Um dia na vida, 1 (História do Futuro, vol. VI, 2080-2120)

I

 

O velho pediu para sair do carro. A estrada continuava, com o asfalto já em muito mau estado, mas ele disse que ficava ali.
   − Ainda é um esticão para voltar.
Saiu. Disse que só os tinha acompanhado para ter a certeza de que seguiam na estrada certa. O amigo Afonso tinha péssima orientação. Por isso, apontou em frente. Pediu-lhe que não parasse até chegar ao destino, 200 quilómetros mais a norte. Despediram-se, comovidos:
   − Adeus engenheiro, cuida de ti.
   − Adeus, tenham cuidado.
   − Devias vir connosco.
   − Era peso a mais.
E o carro eléctrico arrancou pelo caminho, desapareceu na curva, silenciosamente. Iam três a bordo (Afonso, a mulher e o filho, que já tinha 12 anos); muito peso, dificilmente fariam todo o percurso, pensou o velho.
Tinham levado cinco semanas a reparar o carro e a encher as baterias gastas e regastas, mas os seus amigos tinham boas hipóteses: se conseguissem pelo menos 150 quilómetros, o resto do caminho para a aldeia seria relativamente fácil, mesmo a pé. Talvez ainda ali estivesse a casa antiga de que tinham falado durante meses e meses. Em mau estado, era certo, mas porventura habitável. Havia terras para agricultura e levavam sementes. Podiam improvisar, levavam livros de agricultura. A grande incógnita era saber quem se teria instalado na aldeia? Muitos, sem dúvida. Que género de gente? Não sabiam. O certo é que alimentar três pessoas numa cidade já não parecia possível.
A família Afonso era a última que restara do prédio. A velhinha do segundo andar morrera nas cheias de inverno, por uma estupidez, arrastada pela inundação quando tentara chegar à feira no dia errado. Era preciso não cometer esse tipo de imbecilidade, juntar tudo o que era necessário e só sair quando não havia perigo. Agora, sem a ajuda dos vizinhos, teria dificuldade em estender os oleados para recolher água da chuva no telhado. A manobra precisava de força de braços, mas se conseguisse colocar os plásticos na posição certa, também teria mais água. Se chovesse, claro, o que não se atrevia a prever.

 

publicado por Luís Naves às 20:16 | link do post | comentar
Quinta-feira, 05.01.12

História do Futuro (Volume VI), 2080-2120

1

Para muitos autores, o período que se seguiu ao recuo generalizado foi semelhante à Idade Média europeia no que respeita à violência geral e à fragmentação das unidades políticas. Julgo que o termo idade média, usado no século passado por um eminente historiador, é conveniente para a explicação destes quarenta anos marcados pela turbulência e a instabilidade. Não se pense, no entanto, que havia um padrão de feudalismo. As classes dirigentes não tinham laços de família e a rivalidade política era uma constante. Não havia lealdades extra-fronteiras. Pelo contrário, apenas conflito.
O leitor tem de se esforçar um pouco, fazer um exercício da imaginação, para compreender o estado a que tinham chegado as sociedades. Nas zonas urbanas, onde viviam 70% das populações, as infra-estruturas estavam parcialmente arruinadas e, no fundo, a vida quotidiana transformou-se numa luta diária pela simples sobrevivência. Por todo o lado, deixara de haver empregos e uma situação de desemprego em massa é simplesmente insustentável. O sistema fiscal ruíra. Os serviços básicos, de água, energia, saúde, policiamento ou transportes, eram lentamente reconstruídos nas cidades que tivessem recursos, mas essa reconstrução nunca era suficiente para abarcar toda a gente e o padrão geral foi de abandono; nuns locais de forma rápida; noutros, saída gradual, com resistência dos núcleos duros das comunidades. Três exemplos: o Cairo chegara a ter 22 milhões de habitantes, mas em 2080 tinha só 4 milhões e, dez anos mais tarde, apenas 250 mil pessoas; a cidade de Atlanta, com 2,5 milhões de habitantes em 2070, tinha 7% desse valor em 2100; e Munique, em 2082, estava reduzida a 10% da população contabilizada 8 anos antes.

 

publicado por Luís Naves às 18:10 | link do post | comentar
Terça-feira, 03.01.12

Prélude, Cinco Peças p/ dois violinos e piano (Dmitri Chostakovitch)

A terra está ferida em ruínas cor de cinza. Aqui viviam famílias, havia casas modestas, o caminho de lama que as carroças percorriam, rodas de madeira rangendo como veleiros no gelo. O vento era uma melodia distante e ainda vejo aquela camponesa à porta de sua casa, a olhar-me porque eu era um intruso na aldeia.
E à noite, na festa, as raparigas dançaram e a alegria humana encheu de tal forma o meu coração que ainda ficou um pedaço de mim no que resta.
Ouço o ritmo das botas, os cantis a baterem nas coronhas das espingardas à bandoleira, os homens silenciosos a olharem as casas esventradas. O regimento atravessa a aldeia morta, mas ninguém diz uma palavra, como se estivéssemos numa igreja.
A guerra espera-nos depois da colina, do outro lado da memória. A estrada quase desapareceu, mas os campos estão de novo cheios de flores que podiam sorrir-nos das janelas.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 11:00 | link do post | comentar
Segunda-feira, 02.01.12

A Era do Explícito

Os críticos literários ficam surpreendidos quando vêem textos de autores estrangeiros que usam um estilo “pão, pão, queijo, queijo”. Perante estes autores, os especialistas falam em “depuração”, “contenção”, “eficácia”.
Esta escrita sem subterfúgios faz sentido nos dias que correm, marcados pela exposição dos leitores a toda a espécie de vivências impossíveis. Estamos na Era do Explícito e não parece fazer sentido esconder a realidade atrás de uma linguagem floreada e politicamente correcta. Mas ir ao ponto sem digressões não é fácil em Portugal, por não estar na moda. Para muitos não é suficientemente “literário”; por outro lado, a moda é sentimental e parece bem usar um certo tom delicodoce, com lirismo vagamente poético que não traduz o mundo cão e feroz em que vivemos.
A realidade à nossa volta é muitas vezes brutal. Podemos ver na televisão e na internet situações escabrosas. Por vezes, poupam-nos a excessos, mas agora há os telemóveis. Tornou-se uma banalidade assistir à tortura e morte em directo. E a realidade pode ser um lucrativo espectáculo, com vidas à mostra (neuroses, nudez, sofrimento, sexo, banalidades).
Aliás, como escrever sobre sexo quando somos inundados por imagens pornográficas? Com paninhos quentes e metáforas? A falar de borboletas? Pois se são “mamas” porquê escrever “seios”? Podemos optar por não escrever, mas isso ainda é mais absurdo. Estaríamos nos velhos tempos da literatura com tabus, mas rodeados por uma sociedade sem inibições. Que literatura seria esta? Uma imitação da pintura vitoriana em cima, que pretende representar uma orgia no tempo de Roma.

 

No início do século passado, os escritores tinham uma dificuldade: como escrever no tempo do cinema? E surgiu uma literatura mais visual, também subjectiva e fragmentada. Os temas tornaram-se mais duros. Hoje, a dificuldade é diferente. Onde está a verdade nas imagens que vemos? Os espectáculos da realidade são como física quântica, pois a câmara altera o objecto filmado. O escritor americano Philip K. Dick compreendeu bem o princípio da incerteza aplicado às sociedades humanas.
Ocorre-me uma imagem recente: quatro rebeldes sírios disparam contra veículos que avançam numa estrada a 150 metros de distância. Vemos tudo do ponto de vista deles (do mesmo ângulo) e sabemos que estão a atingir a coluna. Uma voz explica-nos que os rebeldes estão a disparar contra tropas governamentais, mas os veículos não parecem militares e são todos brancos. Os rebeldes sírios querem liberdade e o lado governamental terá praticado as maiores barbaridades, mas quem nos garante que aquilo que vimos era o que foi descrito? Um dos veículos podia levar crianças de escola e nunca o saberíamos. A voz disse que eram quatro rebeldes e eu acreditei. Dou outro exemplo: um cirurgião plástico retalhava uma mulher americana; a certo momento mostrava um pedaço retirado dela e parecia um pedaço de um porco.
Temos assim que o explícito acompanha o incerto. Tudo é manipulável. E o politicamente correcto impõe certos eufemismos, havendo palavras que nem podemos usar (Mark Twain foi depurado da palavra nigger). Existe pois liberdade e falta dela. Leitores que viram tudo no conforto dos seus sofás, mas que não gostam de o reconhecer. A realidade torna-se aceitável em romance, mas só se estiver devidamente embelezada, melhorada com frases de belo efeito e que pareçam mais literárias. Assim, em papel de embrulho, tolera-se melhor.

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publicado por Luís Naves às 20:42 | link do post | comentar

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