Terça-feira, 28.02.12

Um escritor esquecido

Gábor Vész nasceu a 1 de Janeiro de 1900 e a sua mãe achou que isso tinha um significado profundo. Ao amamentar pela primeira vez, a boa senhora disse que depositava as maiores esperanças naquele bebé débil, que a parteira, sem o confessar em voz alta, considerou ter escassas hipóteses de sobrevivência.
Mas aqueles foram anos de certa abundância, e isso ajuda a explicar a circunstância de o rapaz assentar raízes no mundo, primeiro periclitante, depois espigadote e franzino, finalmente esguio e magricela, sempre com ar de quem não iria durar nem mais uma semana, muito delicado, protegido pela mãe, dado aos livros, alheado das outras crianças.
Considerando a fragilidade do menino, a mãe recusou enviá-lo para um colégio interno, pelo que lhe ficaram vedadas algumas profissões nobres, como a das armas, onde se distinguiram os primos direitos. Crueldades do destino, supremo desperdício: esses robustos rapazes foram ceifados na guerra de 14, para a qual Gábor chegou a ser mobilizado, já no desespero do império, apesar de nem ter força de braços sequer para segurar na espingarda.
A confusão que se seguiu à derrota militar permite explicar em parte a obra de Gábor Vész. A família estava dizimada, ele transformado na última esperança de que o nome persistisse. A mãe morrera na pneumónica, deixando-o órfão (a questão do pai não está esclarecida, era um segredo amargo, havendo fontes que situam a sua morte escassos meses antes do nascimento do jovem Gábor, outras segundo as quais o autor era filho ilegítimo, o que constituía uma desgraça). Enfim, com o colapso da sociedade, o escritor não tinha herança, excepto algumas terras na Voivodina, que as novas autoridades sérvias confiscaram, a título de imposto devido.
O período universitário foi doloroso e triste. Gábor não tinha recursos para concluir o curso de direito (chegou a ambicionar a carreira política), sendo forçado à escrita ocasional em jornais, tais como Ocidente, Novos Tempos ou Gazeta de Budapeste, onde publicou os seus primeiros contos e novelas curtas, incluindo muitos textos esquecidos.
Em 1926, publicou o seu primeiro romance, A Vida das Lágrimas, onde já revelava um estilo de observação acutilante, ao narrar a tragédia de um funcionário banal, apanhado na revolução e incapaz de enfrentar os poderes cruéis. A obra quase foi chumbada pela censura, mas passou no crivo político, sendo mal recebida pela imprensa, que lhe criticou a excessiva humanização dos algozes. Nas redacções, havia muitas invejas.
Gábor era um modernista e tinha influências expressionistas (Berlim Alexanderplatz, sem dúvida, mas também o minimalismo de Chekov e a sua observadora imparcialidade). Nessa época, o escritor frequentava um círculo de artistas e foi aí que conheceu a primeira mulher, Julia, que teria enorme impacto na sua vida. Isto coincidiu com o estalar da crise económica mundial.

 


 

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Domingo, 26.02.12

Alegria

Escreveu a última frase e teve uma breve sensação de alívio. Depois veio a dúvida que o atormentara desde o início: seria lido? Por isso, repetiu cada uma das palavras que escrevera, para ter a certeza do efeito. Sim, convenceu-se de que a leitura provocaria primeiro espanto, depois irritação e, no final, a impotência da vítima. Já estava a ver o inimigo a abrir o envelope, a ler a mensagem, a empalidecer, depois corando de fúria e medo, em busca de um autor. Teve pena de não estar presente, mas podia imaginar a cena. Talvez o outro fizesse uma loucura e seria o triunfo. A facada de vingança, embora não pudesse falar de vingança, pois o alvo não lhe fizera mal algum.
O seu coração encheu-se de uma excitação inflamada. Como ousara o outro julgar-se superior? Ao pensar isto, reconciliado com o mundo, concluiu o gesto sem que lhe restasse qualquer ódio na alma. A raiva ficara toda nas palavras. E foi assim, quase em paz, que largou a carta anónima na caixa do correio, sem duvidar de que o veneno chegaria ao destino.

publicado por Luís Naves às 23:27 | link do post | comentar
Sexta-feira, 24.02.12

Em que estaria a pensar Beethoven?

Fiquei a detestar o Für Elise. Em que estaria a pensar Beethoven quando escreveu aquela pirosa bagatela? Certamente em paisagens amorosas, arrebatamentos e exaltações, mas ocorrem-me apenas monótonas insistências.
Os meus finos dedos infantis não suportavam o peso das teclas e a minha mão era demasiado pequena para as amplitudes, mas o pior eram os acordes, conseguir manter um ritmo que permitisse à melodia ser inteligível. Lembrar aquilo tudo. Ainda hoje me faz confusão olhar para um piano e para uma pauta de música. Não conseguia descodificar aqueles símbolos suficientemente depressa e admira-me que haja pessoas que leiam pautas como quem devora romances.
A professora de piano chamava-se Odete e era uma de duas irmãs quase iguais, que pareciam tias-avós solteiras, bebedoras de chá, friorentas e caladas. Odete era simpática e paciente, tendo em conta a minha notória incapacidade. Explicava o solfejo com o dedo no ar a conduzir o ritmo ausente.

Nunca consegui tocar o Für Elise, mas gosto de trautear a musiquinha em estilo de jazz. Já tinha dificuldade nas leituras com letras latinas, mas procurei sempre queimar etapas. Ia pelos bonecos e tentava em vão esconder a dislexia. Ora, o método dos bonecos era improvável em questões musicais. O insucesso escolar prolongou-se durante anos, depois fracassei na carreira militar, fiquei aquém do potencial nos amores, mas tudo isso vem numas páginas mais à frente e não cabe nesta parte da autobiografia romanceada.


Naquele tempo, a vida era serena e decorria com felicidade alheada. Os problemas seriam numerosos, mas para uma criança esses eram universos distantes. Julgo que ainda não havia alterações climáticas, pois lembro-me sempre de fazer bom tempo. A luz era mais luminosa e o vento soprava como veludo. Os jornais e a televisão eram a preto e branco, as histórias simples vinham em fotonovelas e envolviam sempre amores contrariados, havia quem telefonasse para a rádio a pedir os êxitos do momento (sempre as mesmas canções românticas). E cresciam labirínticas cidades suburbanas para acolher as famílias da classe média, que nesse tempo ainda tinham criadas.
E as memória fluem em catadupa: lembro-me de uma criada que se chamava Hilda, que na nossa terra é um nome pouco vulgar, mas a rapariga também era pouco vulgar. Rapariga? Agora, que penso nisso, já deve ser avó.

publicado por Luís Naves às 12:13 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Terça-feira, 21.02.12

Loiras de Hitchcock

A actriz loira e sofisticada, cheia de classe mas também de inesperada sexualidade, é uma das mais famosas obsessões de Alfred Hitchcock, autêntica assinatura do grande mestre do cinema. O próprio explicou em entrevista a François Truffaut o sentido deste recurso, numa frase hoje considerada cruel, mas que o francês emendou, ao sugerir que as loiras de Hitchcock resultam do fascínio pelo “paradoxo entre fogo interior e superfície fria”.
Vem isto a propósito de um texto que escrevi onde confundia duas loiras de Hitchcock: Tippi Hedren (na imagem) e Eva Marie Saint, atribuindo à segunda o famoso papel de Os Pássaros, essa distopia ambiental ou fantasia erótica que tem perturbado as gerações. Eva Marie Saint é a espia infiltrada em Intriga Internacional, cujo disfarce está na iminência de ser desnudado por um Cary Grant envolvido acidentalmente numa complexa conspiração de agentes secretos. O filme é o remake de Os 39 Degraus, a obra mais divertida do realizador, feita ainda em Inglaterra. Tippi é diferente de Eva e o próprio Hitchcock a definiu como uma beleza clássica, como já não existia no cinema (falava nos anos 60 e mais razão teria agora).


O tema presta-se a digressões confusas. Podia, por exemplo, referir Ingrid Bergman, mas não acho que seja uma loira de Hitchcock, pelo menos em Spellbound e Notorious, as duas obras-primas do mestre; gosto imenso de Kim Novak, em Vertigo, e menos de Doris Day, em O Homem que Sabia Demais, onde surge muito histriónica; Grace Kelly era a favorita do mestre, tinha beleza incomparável e graça infinita; e nunca saberemos o que levou Hitchcock a torturar duas das suas actrizes; Janet Leigh, em Psico, passou seis dias a filmar a cena do chuveiro; e Tippi Hedren cinco dias a levar com pássaros vivos que eram atirados na sua direcção, também para uma única cena, onde algumas das feridas são reais. Para as suas loiras, o realizador inglês não poderia ter usado actrizes famosas da época, como Marilyn Monroe ou Angie Dickinson, cujo excesso de sexualidade teria estragado o efeito pretendido de enganar o público e criar a ambiguidade em relação à personagem (isto acaba em sexo, ou não?); aliás, para as figuras que o autor tinha em mente, Novak e Leigh parecem ser erros de casting e não encaixam na definição do “fogo gelado”. Sobretudo a actriz de Psico, assassinada com malvadez a meio do filme, na cena mais erótica que o mestre filmou em toda a sua carreira.

No fundo, as personagens de Eva Marie Saint e Tippi Hedren são o arquétipo da loira de Hitchcock, o que justifica a confusão que motivou esta crónica. Com a sua sexualidade oculta à maneira de um iceberg, ambas as actrizes parecem pedras de gelo à superfície, mas aquilo que escondem representa uma ameaça. Os homens não poderão resistir, as mulheres rivais não terão hipótese.

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Sexta-feira, 17.02.12

Secção de xadrez

A derrota faz parte da minha vida, mesmo da romanceada. Passo a explicar: não sendo desportista capaz de enfrentar sofrimentos físicos, mas desejando imenso fazer parte de qualquer coisa, inscrevi-me na equipa de xadrez do Estrela, que era um clube operário entretanto falido (como acontece ocasionalmente aos clubes operários). O núcleo de xadrez era competitivo e juntei-me a um grupo de ambiciosos atletas de palmo e meio. Seria breve, essa minha carreira.
O meu problema foi sempre a memória, sobretudo conseguir decorar mnemónicas; ainda hoje tenho problemas na tabuada dos nove, mas sobretudo na dos sete. No que respeita ao xadrez, há sequências de jogadas que os mestres já testaram sob todos os pontos de vista e que fazem avançar o jogo. Não vale a pena estar a inventar; a um determinado movimento do adversário, segue-se uma jogada previsível e assim sucessivamente até chegarmos ao âmago do conflito, onde ocorrem as divergências. Essa parte fácil tem de sair com fluidez, para não se perder tempo, mas no meu caso tornou-se um horror.


Dou outro exemplo. A minha avó, a certa altura (isto passou-se na aldeia) achou que eu daria um excelente menino de coro e entregou-me às aulas de catequese do padre Aníbal, da Graça, que ela própria definia como padre animal, para sublinhar o aspecto grunho e pouco polido do sacerdote. E lá tive uma derrota assinalável, levando com uma cana no topo do crânio por pecado de distracção infantil (fui castigado, portanto deve ser pecado). Como não me conseguia lembrar das ladainhas, a ponto de ainda hoje sentir dificuldade extrema em recitar o padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome e a partir daqui só sei a música, que é mmmmmm-mmmm-mmm, o facto é que chumbei na catequese, o que deve ser um caso bastante raro; e garanto que não foi negligência da minha parte, houve até certa aplicação de estudo, mas não me entravam aqueles mistérios, nem pareciam ter grande sentido lógico, pelo que optei pela estratégia de decorar as rezas, à maneira das madrassas, fracassando famosamente neste meu plano.
E assim foi no xadrez. Como não conseguia decorar as sequências de jogadas, e apesar da minha habilidade estratégica em perseguir o rei adversário, era sempre penalizado por um erro de palmatória, daqueles muito simples, de expor um bispo à gula de uma rainha, e já sabemos como elas são gulosas, tema que reservo para um capítulo posterior. Assim ficou muito ligada à minha infância a ideia da derrota e do total fracasso e da falta de talento e mesmo ausência absoluta de vocação. Falhei no xadrez e na catequese, viria também a falhar no piano, nunca fui atleta, mas ainda hoje sinto admiração quando vejo dois mestres em duelo mental e fascina-me aquele gesto abrupto de carregar no botão do relógio, para congelar o tempo. Isso sim, é desporto.

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Quarta-feira, 15.02.12

O explorador polar

O explorador polar Robert Falcon Scott morreu durante uma tempestade, em Março de 1912, junto a dois dos seus companheiros, quando se encontrava a escassos 20 quilómetros de um depósito de comida e combustível. Os ingleses estavam desidratados, esfomeados e com graves queimaduras, morreram do frio e fadiga, nada garante que se pudessem salvar, mesmo chegando ao depósito de uma tonelada. Os corpos foram descobertos por incrível sorte, em Novembro, e com eles o diário de Scott, publicado no ano seguinte em Inglaterra. Ainda hoje a Última Expedição se lê com admiração e espanto. O oficial da marinha britânica tornou-se herói nacional, roubando na morte a glória da conquista do pólo sul ao norueguês Roald Amundsen, que o batera na corrida por algumas semanas.
A história não costuma ser benévola para o segundo melhor, mas durante décadas, o capitão Robert Scott foi a excepção. Afinal, pagara com a vida e o texto que deixou provava a sua coragem. Isto foi assim durante duas gerações mas, nos anos 70, em tempos mais cínicos, surgiu uma história alternativa: Scott falhara miseravelmente, por estupidez, arrogância e mau planeamento. Amundsen era o verdadeiro herói da Antárctida, o primeiro a chegar ao pólo sul, devido à sua boa preparação, flexibilidade e sobretudo à simplicidade com que abordara o problema. De um lado, o marinheiro colonialista sem competência para chefiar um couraçado, do outro o homem moderno e pragmático.


Entretanto, veio a revisão dos revisionistas. Scott cometera erros, mas estes não explicavam o desastre. Também fora forçado a uma corrida ao pólo devido a uma atitude menos cavalheiresca do norueguês, mas o rival surgia no diário com referências do maior respeito. O feito do oficial britânico era extraordinário sob qualquer ponto de vista, sobretudo no plano científico. Esta argumentação é hoje convincente, lendo as últimas entradas do diário de Scott. Os três homens que se podiam ter salvo foram atrasados por um dos companheiros, que estava ferido na perna; na realidade, sacrificaram a sua vida ao não abandonarem o ferido. As temperaturas que enfrentaram (por duas vezes, no caminho de ida e na volta) foram invulgarmente baixas para a época e para a região. Scott teve um azar incrível e, em condições normais, teriam sobrevivido pelo menos três dos cinco homens, talvez quatro.
Os membros da expedição deixaram os corpos no local onde os exploradores faleceram. Já estavam sob dois metros de neve e hoje calcula-se que estejam a uma profundidade de mais de 30 metros. O glaciar desliza lentamente para o oceano e, num prazo de 300 anos, os três britânicos estarão no interior de um bloco de gelo que irá separar-se do continente. O gigantesco iceberg flutuará então no mar e o capitão Scott terá finalmente o seu couraçado.

 

A imagem foi tirada a 17 ou 18 de Janeiro de 1912, quando os cinco britânicos descobriram que os noruegueses tinham chegado um mês antes ao pólo sul. Scott está de pé, no meio. Só depois de escrever este post reparei que faz agora cem anos. Por esta altura, há exactamente cem anos, quatro sobreviventes estavam a começar a sua agonizante derradeira marcha, tentando chegar ao grande depósito seguinte. Atingiram os objectivos secundários, mas nunca chegaram ao último. O tempo, com temperaturas vinte graus inferiores às da época, impediu a continuação. Depois, não havia mais nada a fazer, excepto esperar o fim. Scott ia escrevendo. A sua última entrada é de 29 de Março, uma frase comovente: "por amor de Deus, tomem conta dos nossos". 

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publicado por Luís Naves às 19:18 | link do post | comentar
Terça-feira, 14.02.12

O guarda-redes de negro

Foi Gyula Grosics quem inventou o estilo dos guarda-redes vestidos de negro. Era um homem baixo, mas parecia um gato a saltar; e o equipamento, o cabelo escuro, intimidavam. Foi o primeiro guarda-redes a jogar com os pés, saía da baliza como se fosse defesa e ia por ali fora, a fintar avançados.
O resto é conhecido: pertenceu à equipa dourada. Esteve no jogo do século, na batalha de Berna e na final de 54. Ali, contra os alemães, sofreu um golo a seis minutos do fim, por ter escorregado na relva húmida. Culparam-no pela derrota, mas em 1956, quando os outros jogadores fugiram da equipa, ele regressou; não que fosse comunista, pelo contrário, apesar de ser filho de mineiros.
Humilharam-no, mas isso era normal na época. Foi guarda-redes em Tatabanya, essa cidade de fumos e caixotes de betão, quando queria jogar no Ferencváros, o clube que as autoridades odiavam.
Passaram décadas e um dia fizeram-lhe uma homenagem, vinha nos jornais. Inscreveram-no como jogador aos 85 anos e ele apareceu vestido de negro, cabelo de neve, e assim cumpriu o sonho de jogar oficialmente pelo Ferencváros, que reservou para o seu nome a camisola número um do clube, onde afinal ele nunca jogara. Grosics tocou na bola, saiu em ovação, cumprindo o velho sonho. E, ao acenar para a bancada, viu-se na mística névoa a lenda em filme cor de cinza, e parecia fintar avançados, vestido de preto, rigorosamente, como se vestisse de casaca.

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publicado por Luís Naves às 19:27 | link do post | comentar
Segunda-feira, 13.02.12

O caso Tintim

O caso surgiu em 2007, mas só agora houve um veredicto do tribunal. Afinal, Tintim não está fora da lei, embora o advogado do queixoso pretenda apelar da sentença.

O envelhecimento de uma obra de arte como Tintim no Congo não devia ser crime, mas um dia os cigarros serão tirados da boca dos detectives matadores dos anos 30, a linguagem extirpada de todas as palavras como "nigger", será proibido ver um homem a mandar um piropo a uma mulher e a nudez ficará tapada, para não ofender minorias religiosas. É como os beijos tirados dos filmes em Cinema Paraíso

A cultura politicamente correcta que invadiu o quotidiano é um dos evidentes sinais de declínio da civilização ocidental. No seu livro A Study of History, Arnold Toynbee fala do colapso como a perda do poder criativo das "minorias criativas" que têm a capacidade de influenciar "as massas sem criatividade". (Desculpem as repetições, mas é assim que ele explica a questão).

Há outras teorias sobre a natureza cíclica da história e recomendo a leitura de um livro sobre este tópico: Civilização, o Ocidente e o Resto, de Niall Ferguson. O autor cita várias ideias sobre "sistemas complexos", admitindo, por exemplo, que é impossível fazer previsões com base em dados sobre o passado. Muito interessante a informação de que algumas civilizações desapareceram em pouco tempo, escassas décadas.

 

Se Toynbee tinha razão, então a misteriosa crise de criatividade dos nossos dias ganha outro peso. Não há explicação para os livros, a música e a pintura incompreensíveis. A ponto do compreensível ser desprezado pela crítica, gerando uma auto-censura nos artistas, que tentam fazer o "mais literário", o "mais contemporâneo", o "mais conceptual" (na pintura, "pictórico" é negativo; na literatura, "uma história" é a morte do artista; na música, ter "melodia" é anátema). Compare-se a própria música pop actual com a que era feita há vinte anos e vemos o fenómeno no seu esplendor. O declínio é evidente. Olhe-se para os filmes de Hollywood: contam-se pelos dedos os minimamente decentes feitos nos últimos vinte anos. Compare-se por exemplo a frescura do primeiro Guerra das Estrelas com a patetice do quarto episódio. Tintim escapou a ser fora da lei, mas não se livrou de uma adaptação hollywoodesca.

Estou apenas a dar exemplos, mas parece haver uma crise de ideias criativas ou estas parecem estar ao serviço exclusivo da sociedade de consumo.

Ao mesmo tempo que se esgota o poder criativo, a sociedade questiona-se sobre a validade dos seus clássicos, inclusivamente com a sua rejeição (o caso Tintim). O teatro faz reinterpretações e pastiche dos grandes textos, as orquestras sinfónicas são dispensáveis em tempos de crise (para quê ouvir Brahms?) e o estudo da língua, pelo menos para as massas, inclui textos de televisão. A arte tende para fogo de artifício, o estilo é tudo. Até na política a criatividade é defeito. Uma universidade americana fez a análise linguística do discurso do estado da nação de Barack Obama e concluiu que tinha sido um dos mais fracos de sempre, com nível de apenas sexto ano. O grande orador usou linguagem mais do que básica, pois o mínimo denominador comum dá votos e aponta o futuro.

 

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publicado por Luís Naves às 18:18 | link do post | comentar
Sexta-feira, 10.02.12

Diario sem horas (4)

Hoje, o tempo alargou-se para além do sentido. E no entanto, atravessando as horas, as palavras ganham outras distâncias, passando fronteiras como aquelas que antigamente nos transportavam até às cidades cujos nomes já não existem; umas demasiado distantes outras extintas na poeira dos séculos. Por vezes, talvez demasiadas, as palavras aproximam-nos de quem está longe e afastam-nos de quem nos espera. Percurso esse cuja circularidade só existe na mente mais distante, a mesma que aguarda o todo que é suposto existir, no prato direito da balança que pesa o verdadeiramente dado. Assim é, mas com uma certeza porém: Aquele que tarda e fala as todas as línguas, tanto as próximas como as mais distantes, caminha no precipício da ausência. Desnecessário dizer mais do que isto: Hoje, as horas estendem-se sem que as palavras encontrem um intervalo onde viver...ou uma cama onde repousem para sempre.

publicado por João Villalobos às 04:24 | link do post | comentar
Quinta-feira, 09.02.12

Ângela da guarda observa pessoas a comer

Desceu às catacumbas e havia um átrio longo com mesas a todo o comprimento. As mesas eram brancas e o tecto baixo amplificava o barulho. O local era um vasto refeitório interior, igual aos das grandes fábricas, mas este na cave de um edifício de escritórios e acesso democrático. O mapa de evacuação dos bombeiros dizia “zona de restauração”. Dos lados da parede, fileiras de cubículos, cada um ricamente decorado com letras coloridas; todos diferentes, bem iluminados: eram as vendas da comida, como se fossem tabernas em torno de uma praça com a feira ao centro. Roma seria assim, só que as multidões comiam na rua. Sentou-se numa mesa, a um dos cantos, para poder ver como se estivesse no anfiteatro. Mas não trouxera comida consigo. A mesa branca estava vazia e isso era contra as regras, pois quem passava olhava para ela, alguns com severidade; os que se sentavam traziam um tabuleiro e sustentavam um prato. Queria explicar-lhes: procuro a minha identidade e não consegui escolher a comida e, de qualquer forma, não trouxe dinheiro. Estou aqui para aprender.
Com cérebro de velho e corpo de rapariga formulou a seguinte frase no interior do seu pensamento: “se o dinheiro parasse, estariam perdidos”.


Estava calor, não tirara o casaco, descontraiu-se e sentou-se com conforto na cadeira de plástico, atingida por uma tenra sonolência. O seu traseiro, aliás, deslizava um pouco e descaía (ainda não se habituara ao corpo), e teve de sentar-se mais direita, o que a acordou para o exterior. Observou as mandíbulas que esmagavam comidas suaves e cheias de molhos gordos que as pessoas pareciam achar deliciosos, pois algumas sujavam os dedos e lambiam-se o mais discretamente possível para absorver toda aquela delícia. E a princípio comiam sem abrir muito a boca, mas logo um prazer as saciava e ficavam faladoras e falavam com a boca cheia e via-se em cada boca a massa mais uniforme da comida que as suas mandíbulas esmagavam e trituravam e misturavam. Os lábios, à volta, luziam da gordura.
Todos se observavam uns aos outros, pois nas mesas corridas sentavam-se lado a lado desconhecidos. As mulheres comiam saladas e sopas, os homens tinham paladares robustos e a pouco e pouco instalou-se uma barafunda de conversas e grupos animados; mas os grupos grandes eram raros. A maioria dos habitantes da zona de restauração viajava sozinha ou com mais um parceiro ou mais dois. Sucediam-se as vagas de comensais mais apressados, burocratas, consultores, advogados, financeiros, seguradores, e espantou-se de quantas pessoas podiam viver só de darem conselhos uns aos outros. Formou-se na sua cabeça outra fase clara: “É magnífico este mundo” e esse pensamento tão simples encheu-a primeiro de felicidade, pois sentiu que já não sonhava, que vivia de novo; depois, surgiu a inquietude, pois a frase em si, o conteúdo, já não lhe parecia tão apropriado, pelo contrário, sem que o soubesse formular, havia problemas de construção de até de raiz, e ficou ali em pensamentos circulares, num impasse.


Quando se acalmou, decidiu absorver toda a informação sem formular conclusões apressadas. E porque não existe gesto mais autêntico do que mastigar, ficou ali sentada umas horas em busca da verdade. Exige esforço fingir que não se gosta de uma comida; e, distraído com o seu prato, o humano tem a maior dificuldade em mentir. Tirou do casaco o bloco de notas que lhe dera Jeremias e, com esforço intenso, decidiu anotar o que de mais importante observava. A letra ainda lhe tremia. Quando tentava escrever a palavra palavra, deu-se um pequeno incidente ambíguo. A seu lado, tinham-se sentado três rapazes jovens, que enquanto comiam e conversavam, a tinham observado todo o tempo. A certo ponto, estavam a falar de raparigas, mas em voz demasiado alta, e um deles (terá sido de propósito?) disse de repente “mas essa é maluca” e olhou na sua direcção. Aliás, os três rapazes olharam todos na sua direcção em simultâneo e uníssono, talvez com curiosidade, só para testarem o que iria fazer.
Formou-se então, no frágil gelo do seu pensamento, uma nova ideia nítida e escreveu-a imediatamente no bloco: “Isto é parcialmente a realidade e a outra parte o delírio de quem não acorda”.


 

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publicado por Luís Naves às 19:55 | link do post | comentar

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