Terça-feira, 27.03.12

A verdade de Casablanca

Passaram 70 anos deste filme*, Casablanca, e mantém-se o fascínio. Não será a melhor obra da época, mas há aqui uma magia curiosa, mistura de romantismo sentimental e fantasia poética. As personagens nem são credíveis e o carácter propagandístico tira consistência à história; os alemães são maus e os marroquinos não passam de figuras do cenário. Os diálogos parecem fantásticos: "Porque veio para Casablanca?"; "Vim pelas águas"; "Mas isto é o deserto"; "Fui mal informado". **
O que sempre me fascinou em Casablanca não foi a dupla de amantes, mas o marido enganado, o combatente da liberdade Viktor Laszlo. Para mim, este continua a ser um dos grandes nomes de uma personagem ficcional, a ponto de não me parecer de todo ficção.
A minha tese é de que existiu um Viktor Laszlo real e atrevo-me a afirmar que ele viveu a essência desta história, ou seja, o conhecimento de que a mulher amada hesita entre amor e dever, escolhendo o dever, que é a prisão do casamento. Que destino mais humilhante se pode imaginar, um homem apaixonado por uma mulher que não o ama verdadeiramente?

A primeira pergunta: "porquê Viktor Laszlo"? Este é um nome tipicamente húngaro, a nacionalidade do realizador e a origem dos dois argumentistas do filme. Todos judeus de Budapeste, portanto, conscientes de que este nome não podia pertencer a um checoslovaco. A Hungria estava com o Eixo, pelo que um herói húngaro seria uma impossibilidade em filme de propaganda de 1942. Um étnico húngaro também não era hipótese, pois estes interpretavam o Tratado de Trianon (a Versalhes para o leste) como uma humilhação.
E, apesar disto, os argumentistas mantiveram o nome. Soava bem, mas não há explicação para não se ter inventado outra identidade. Um nome eslavo ou alemão era complicado, mas o que impedia um nome judeu ou neutro para a personagem?
Podemos andar aos círculos e chegamos sempre ao mesmo: para os argumentistas, Viktor Laszlo era um herói autêntico, que viveu os elementos que constituem as vivências incluídas neste embrulho imaginário. A cena da estação é fantasia, todos os pormenores do café de Rick são inventados, mas a situação da escolha entre amante e marido, essa é a parte que resulta do relato posterior do verdadeiro Laszlo. Um relato feito, talvez, num café de Hollywood.


Penso que a viagem para Lisboa integra também a história vivida. Foi antes de embarcar naquele avião que o Laszlo real percebeu, sem margem para dúvida, que algures no passado a sua mulher o escolhera a ele após hesitar sobre um destino alternativo. A opção exigiu coragem e nunca saberemos  o motivo, mas no coração do marido abre-se naquele momento uma amarga ferida. Não pode ser de outra forma.
Hollywood disfarçou tudo isto numa fantasia onde há um improvável pianista Sam e um ainda mais improvável polícia francês. Pouco importam os nomes da mulher e do amante: foram tirados da lista telefónica de Sunset Boulevard. Nunca existiram daquela maneira.
Por isso, Laszlo é a âncora que nos prende à realidade, o ponto fulcral da história. Tirem-no do filme e aquilo não passa de uma limonada.

 

Esta é a ideia em que se baseou o meu livro O Silêncio do Vento. Como seria o autêntico Viktor Laszlo, personagem que pretende salvar o mundo e não consegue salvar-se a si mesmo? Laszlo sabe que a mulher o escolheu por dever e vive o impasse do amor traído numa Lisboa que paira no limbo do conflito como se fosse uma caravela parada, à espera do vento.

 

* O filme estreou em Novembro de 1942, a verdadeira data do aniversário.

** "Prendam os suspeitos do costume" é uma frase genial que se tornou um lugar-comum.

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publicado por Luís Naves às 14:54 | link do post | comentar
Sábado, 24.03.12

Se traduzisse o que já escrevi

À primeira leitura desta crónica de Alexandra Lucas Coelho (ALC), no blogue Atlântico Sul, achei que a autora tinha razão. Só pensei no assunto depois de uma segunda leitura, quando percebi que ALC acredita ter havido uma qualquer alteração que não descortino.
O exemplo da amiga da cronista é notável. Ela ganha 8,5 euros por página traduzida. E comecei a fazer as contas sobre o dinheiro que ganhei com os trabalhos de ficção que me publicaram nos últimos 15 anos: o facto é que não chegou a um euro por página.
Se traduzisse para português o que já escrevi, ganharia oito vezes mais.


ALC esquece na sua crónica que dificilmente um artista ganha dinheiro com aquilo que produz. E outra omissão está na circunstância de que isso sempre foi assim e continuará a ser. Não há mudanças nessa triste condição. O artista pobre, que luta para ser publicado, para ter leitores, faz parte da tradição da civilização ocidental, pois não há mercado para todos e sem a crueldade do esquecimento, sem massa crítica, não existe verdadeira arte. Podia dar aqui milhares de exemplos de poetas que morreram à míngua, de pintores que não venderam um único quadro, de grandes romancistas desprezados pela crítica (e não estou sequer a falar dos grandes romancistas que queimaram a única cópia da sua obra magna).
A cronista pensa que o Estado devia dar uma oportunidade aos artistas indignados e incompreendidos (ela define-os como elegantes), mas não vejo como é que o Estado pode escolher melhor do que o mercado. Aqui só há pescadinhas-de-rabo-na-boca: se o jovem artista tem um grande romance na cabeça, é pena que tenha de permanecer desempregado, mas uma bolsa de criação artística exige uma escolha com critérios, pelo que tenderá a ser seleccionado para esta bolsa um escritor já com nome. Ninguém arriscará num desconhecido. Só uma editora arrisca num desconhecido.
Se o Estado tiver dinheiro (o que não é o caso) deve incentivar a grande arte, mas acontece que não é muito bom a fazê-lo. Quem são os bons? Se nos lembrarmos que 99% dos artistas serão esquecidos ainda em vida, a que propósito um Governo sustentará este e não aquele?
Já o disse: se traduzisse o que já escrevi ganharia oito vezes mais. Observando bem a minha realidade, sou um escritor amador que teve a sorte rara de publicar cinco livros, três dos quais numa editora que faliu, talvez por ter apostado em pessoas como eu, que não vendiam. Tive a minha dose de pouca sorte, nunca ganhei um prémio. Ou antes, ganhei durante alguns minutos. O meu primeiro livro foi escolhido por um júri para prémio revelação da APE, mas recebi um telefonema de alguém que me perguntou se ia publicar ou tinha publicado o livro (o regulamento determinava a publicação em determinada editora). Respondi que sim, que me comprometera, semanas antes, com uma editora que aceitara esse romance. A questão ficou assim resumida: se eu renunciasse à minha palavra, ganhava o prémio.

 

Nunca contei esta história por escrito. Alguns dirão que devia ter aceite, mas julgo que não têm razão. A ideia presume que um romancista só deve escrever quando tiver mil leitores e ganhar dez euros por leitor. Ou dez centavos por palavra. Eu só deveria escrever ficção quando ganhasse com a ficção que escrevo mais do que ganho no jornal onde trabalho, quando ganhasse aquilo que é justo e que me poderia transformar num profissional (deixaria de ser o romancista amador e poderia ter qualidade). Enfim, se traduzisse o que já escrevi, ganharia oito vezes mais, e mesmo isso seria pouco para começo. A alternativa será escrever para os leitores desconhecidos que passam por aqui, escrever para o silêncio, escrever para uma gaveta invisível que alguns podem vasculhar de forma displicente. Continuar porque há algo que deve ser dito, o que não deixa de ser muito pretensioso da minha parte.


Sou um dos 99%, tento não dizer frases floreadas e pretensamente poéticas, sou impertinente e julgo ter ideias próprias, gosto de remar contra a corrente, mas sobretudo não tenho paciência para esperar pelos meus 5 mil leitores (ou serão 10 mil?). Por isso escrevo para mim, para as duas dúzias que passam aqui, para os mil que compraram livros meus (alguns mais do que um título) e escrevo ainda para aqueles milhões e milhões que nunca me lerão, sem perderem alguma coisa de especial. Escrevo sem pensar se vou ganhar mil euros ou mesmo nada. É um trabalho duro e paradoxalmente invejado, esta tarefa inútil de lançar palavras ao vento.

 

A imagem é do pintor Carl Spitzweg (1808-1885), O Poeta Pobre

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Sexta-feira, 23.03.12

Os homens na Lua

Depois, veio o tempo mágico da conquista espacial. Líamos nos jornais e víamos na televisão as fantásticas proezas da exploração cósmica, mas muitas pessoas não acreditavam que fosse possível. Abanavam a cabeça, num gesto de descrença, e diziam que lhes parecia uma coisa do outro mundo.
O meu primo Miguel era o mais velho de nós e o mais desembaraçado. Um dia, decidiu fazer um foguetão igual aos de Von Braun. Roubámos os cartuchos de caça do avô e extraímos a pólvora, que fomos acumulando, numa quantia assinalável. Não sei onde ele arranjou o tubo e não me lembro dos pormenores da construção. Sei que havia uma cápsula em cima, com uma caixa de fósforos onde colocámos duas baratas.
O foguetão de combustível sólido foi lançado numa tarde de muito calor e sol, de uma rampa que improvisámos num terreno em frente à casa dos avós. Escondemo-nos atrás de umas pedras, acendemos o rastilho e ouvimos um estampido violento, embora breve, e o tubo ergueu-se no ar como se fosse o saturno 5 e julgo que terá explodido de imediato, apesar de não ter qualquer memória disso, pois provavelmente assustei-me e desviei o olhar, ou só olhei para o topo de engenho; o que lembro distintamente foi o voo balístico da cápsula. Não quero romancear, mas vi a cápsula três vezes acima da casa, ou antes, cinco vezes ou ainda mais, a cem metros na atmosfera. É assim que lembro. À volta, ardiam moitas, mas apagámos o fogo e recuperámos a caixa de fósforos, que estava partida e queimada. Lá dentro, as duas baratas incineradas, que sepultámos com honras, numa terra fofa que tinha acabado de ser semeada. Na campa pusemos uma bandeirinha de cinco centímetros, colada a cuspo a um palito, que ainda ali esvoaçou alguns dias.
Dormi na noite em que chegaram à lua, mas lembro-me que nesse tempo não se falava de outra coisa. Recordo, como se fosse num sonho, o passeio nocturno à lua cheia, com a avó e os meus primos. Íamos ver na televisão os homens da Apollo e ao olhar aquela bola pálida que se erguia majestosamente no céu, parecendo sorrir, pensei com nitidez que havia ali pessoas de cabeça para baixo e quando elas olhavam na nossa direcção, estávamos nós de cabeça para baixo. Percebi nesse instante que a realidade era um ponto de vista, que não havia nem baixo nem cimo, que estávamos presos à terra e que, por muito breve que fosse o voo, a ela voltaríamos, como acontecera às duas baratas incineradas, as duas primeiras astronautas da aldeia dos meus avós.

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Casa das Máquinas

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Quarta-feira, 21.03.12

Turno da noite

As horas que nos prendem
têm passada de insónia
são as banais palavras
que nos agarram,
triviais mentiras
que nos confortam,
certezas que nos dão
agonias a desoras
ou talvez a imprecisão
e o torpor do nada.
As vertigens que nos prendem
são prisões de palavras
o que deixamos incompleto
aprisionado nas horas.

 

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Domingo, 18.03.12

A lista telefónica

Quando terminava o seu doutoramento, István Herzog decidiu, por brincadeira, memorizar a lista telefónica de Budapeste. Nesse tempo, já muita gente tinha telefone e a lista de 1935 era, apesar de tudo, um livro bastante grosso.
Os amigos do académico ficavam espantados quando ele acertava nos números e aquela habilidade tornou-o popular nos cafés. Os outros colegas liam um nome e Herzog dizia o número de telefone da pessoa. Aquilo impressionava muito, pois revelava a prodigiosa memória do professor, cujas investigações em física, aliás, começaram por ser promissoras.
Enfim, veio a guerra, depois o regime comunista. A universidade perdera muitos dos seus talentos, mas lá continuava o prodigioso professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste de 1935. Os alunos habituaram-se a perguntar a Herzog se sabia o número de telefone de fulano, morador na rua tal e tal, e espantavam-se quando ele respondia correctamente.


Certa vez, sendo necessário controlar os meios académicos, chegou à universidade um comissário e o homem do partido ouviu falar no caso e não resistiu a fazer ele próprio um teste, porque era desconfiado e queria certificar-se da autenticidade da proeza. Pediu uma lista telefónica de Budapeste do ano certo e escolheu um nome ao acaso. Disse-o em voz alta e Herzog acertou logo no número, mesmo sem necessitar da morada.
   - Como é isto possível? - perguntou o comissário.
   - Não sei -, respondeu o professor.
   - Só é possível porque vivemos num pais socialista -, sentenciou o comissário e, por um instante, ocorreram-lhe várias ideias para usar aquele talento. Percebeu que podia ser uma boa maneira de ele próprio ingressar na comissão central do partido, mas logo se lembrou de que o professor memorizara a lista telefónica de 1935, que pertencia a outra era. Não podiam aparecer em frente aos líderes a ditar nomes de burgueses. Enfim, muitas pessoas já não estavam na lista, outras tinham mudado de número de telefone, algumas até podiam estar presas. E quando pediu ao professor de física que memorizasse a lista telefónica de 1954, este disse que era pena, mas não conseguia. Isso incomodou o comissário e Herzog passou a ser persona non grata. Deixou de fazer investigação, depois deixou de dar aulas, depois perdeu parte do salário e já ninguém lhe fazia o teste dos números de telefone e os seus velhos amigos viravam-lhe as costas.

 

O conhecimento inútil do professor Herzog perdeu-se para sempre quando o académico faleceu, de uma banal pneumonia, aos 81 anos, já no final da década de 70, quando o regime suavizava os seus rigores.
Mas na universidade ainda hoje se fala na fantástica memória do professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste.
As pessoas que contam a história enganam-se muitas vezes no nome e chamam-lhe Herceg, e Ferenc em vez de István. Alguns contam mal o episódio do comissário e transformam Herzog num anticomunista, que ele nunca foi. Não se recusou a decorar a lista telefónica de 1954, apenas disse que não era capaz.

Muitos enganam-se na especialidade do professor e há quem afirme erradamente que era perito em literatura; um mito dominante é de que sabia de cor todas as obras de Shakespeare.

Outros ainda enganam-se no ano da lista telefónica. 1936 aparece na maioria dos relatos. E, em certos casos, 1937.


Herzog nunca descobriu o que procurava. Tentava chegar a uma teoria sobre partículas, mas escapou-lhe sempre algo de essencial e os seus cálculos estavam num dossier que se perdeu num estúpido incêndio, em 1999, onde se perderam também muitos velhos papéis da universidade e uma lista telefónica de 1935.

 

 

(Este conto de 2010 foi publicado no blogue Emoções Básicas, numa versão mais curta)

publicado por Luís Naves às 12:17 | link do post | comentar
Sábado, 17.03.12

Navegações

Luís Filipe Cristóvão é um poeta admirável e tem este projecto de blogue literário que merece visitas regulares.

Num registo diferente, passem pelo magnífico blogue de Isabel Lucas, Puro Acaso. A boa escrita é sempre um prazer.

 

A propósito do formato ainda incerto da blogosfera literária, onde todas as experiências parecem possíveis, queria a vossa atenção para dois textos:

O primeiro, de Manuel Jorge Marmelo, está num blogue que, para mim, é um clássico, Teatro Anatómico. Poucos autores conseguem ter este sentido de humor acutilante, também profunda observação da realidade. "Crónicas do Autocarro nº 115" é uma pequena jóia.

Reparem na simplicidade e força deste curto texto de Bruno Vieira Amaral. Se isto não é boa literatura, não sei o que é a literatura. Cabia facilmente em Contos de um minuto de István Örkény.

 

Finalmente, ficam as ligações a dois textos de João Ventura, sobre Europa, um dos meus temas. A Europa no seu Labirinto e este magnífico A Europa dos Cafés, ambos em O Leitor sem Qualidades, título enganador de um blogue onde se somam as qualidades.

 

publicado por Luís Naves às 12:57 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Sexta-feira, 16.03.12

O perdão é uma ideia difícil

Compreendo os hipócritas, que não perdoam a quem nunca os ofendeu. Conheci um, que se dizia cristão e frequentava missa. Nas horas livres, passava pela igreja e rezava. Fatinho justo, usava um gel no cabelo a denunciar a vaidade. Trazia na cara o pecado do orgulho, que é o mais complexo de todos, porque exige do pecador que se sinta acima dos homens e algures entre estes e Deus, que no seu pensamento está acima de tudo o resto. Pois em certo dia que entrara na igreja antiga para saborear a frescura do interior, passeou os olhos pelas decorações barrocas e sentou-se a contemplar o altar em talha dourada, pensando nos seus problemas, que eram mais ambições do que outra coisa. A existência tem alguma crueldade para com os ambiciosos, já que nunca são saciados, como acontece com aqueles que andam no deserto, sonhando com fontes frescas, regatos límpidos, sonhando com um rio lento, jardins e palácios, algo que fica sempre longe.
Pois antes de entrar na igreja este homem tinha o pensamento à solta. Sonhava com situações do passado, e então surgiu-lhe uma memória mal digerida, que até aí não soubera quanto o perturbava, e isso sucedeu ao passar por uma mulher feia, que tinha os dentes encavalitados e o corpo flácido; foi nesse momento casual que rebentou o caudal de recordações que conseguira suprimir durante vinte anos e sentiu-se esmagado por uma culpa que nunca antes sentira: aquela rapariga que o amara tanto e que ele desprezara como se despreza um cão, perdera-lhe o rasto, que teria feito na vida? E pensou, ainda com mais força: foi aí que falhei.
Ao sentar-se na igreja, a observar a altura do tecto, este homem cujo nome não interessa desabotoou o casaco do fato e desapertou o nó da gravata. De súbito, sentia uma angústia: não ouvira os conselhos do seu pai e sempre se pensara superior aos outros. As palavras agrestes que dirigira, a ingratidão e os amigos perdidos, um casamento de interesse e sem amor, os filhos que não gostavam dele, o trabalho onde se refugiava. E a nave da igreja abriu-se sob os seus pés, num abismo, num vazio. A vertigem assustou-o e pareceu flutuar numa espécie de morte em vida.
Na realidade, ficou sem fôlego por pouco tempo. Os sentidos reanimaram depressa e recompôs-se em segundos. Tinha explicação para tudo. Lembrou-se da sua preocupação humanista, ao romper aquele noivado que agora saía do nevoeiro. Sim, tivera todo o cuidado em dizer palavras, não se podia afirmar que fossem bondosas, mas foram suaves e tranquilas. Sim, era isso, transmitira à rapariga uma certa segurança, de que também ela teria um dia alguém que a amasse como ela certamente o amava a ele. Convenceu-se de que fora assim dito e que a jovem tivera em seguida boas oportunidades para a sua própria felicidade. A relação entre os dois teria sido impossível, e quanto às palavras agrestes e aos amigos que nunca tivera, isso devia-se às invejas. Era um homem muito invejado. E não havia um lugar na obra divina para os que tinham sucesso? Não era isto natural e até desejável, prova da existência do altíssimo? Hipnotizado pelo silêncio contemplativo que pairava, partiu dali para a construção de ideias mais elaboradas. Não lhe era possível perdoar os inferiores que lhe recordavam a todo o momento o acaso em que se baseava a sua influência; e nunca poderia perdoar aos que o oprimiam, as elites improdutivas que ocupavam o lugar que era dele por justiça. E como podia perdoar que não o amassem? Era impossível.


Saiu contente daquela reza íntima e cruzou-se comigo à porta da igreja. Sorria e cumprimentou-me, julgando que eu era um paroquiano. Perguntei-lhe:
   - Pacifica os demónios da alma, não é assim?
   - Ficamos prontos para mais um dia – disse ele.
   - E perdoou a quem o ofendeu?
Ele hesitou com esta minha segunda pergunta. De súbito, ficou desconfiado. Não, eu não era um paroquiano, não era um sacerdote que abordava os cristãos, era sim um louco. Respondeu de forma agreste:
   - Que impertinência, meta-se na sua vida.
   - Os demónios continuam a ganhar - disse-lhe eu.
O homem ficou de repente muito vermelho, percebeu-se a sua fúria, fez um gesto na minha direcção, para me renegar, e seguiu caminho, em passo rápido. E pressenti o que ele pensava: sucesso é fogo-fátuo, o poder não passa de ilusão.
E, depois, a pergunta, tão obsessiva como aquelas melodias que não saem da cabeça: Onde é que falhei?

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publicado por Luís Naves às 11:32 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Quarta-feira, 14.03.12

A Baixa

A Baixa é o coração onde todo o oxigénio se mistura, mas para muita gente funciona apenas como ponto de passagem. Os habitantes sazonais são diferentes uns dos outros: há burgueses e funcionários, homens de gravata, mulheres de salto alto; trabalhadores do comércio; manadas de turistas queimados pelo sol; imigrantes de vários povos; jovens ruidosos; velhinhos levando sacos, ajoujados; polícias desatentos; o banqueiro a sair do mercedes que parou em frente ao banco; um empregado que esvoaça na esplanada, equilibrando a bandeja. A Baixa parece um monumento. Mas ali também vivem pessoas, embora sejam poucas, como se vê depois do crepúsculo, quando a escuridão muda a paisagem; então, surgem umas luzinhas fracas nas mansardas e temos um vislumbre das pobres vidas do topo; procurem um ponto ainda mais alto e poderão observar a raridade das habitações funcionais desta parte do casario; há por ali velhos solitários, alguns dos quais surgem por vezes às janelas para alimentar pombos ou regar vasos, camisola de alças, ventres largos, desmazelo. A pobreza torna-se evidente quando olhamos com cuidado. Nas lojas, estes habitantes pagam com notas amarrotadas que tiram de um porta-moedas gasto; as suas roupas estão coçadas e os sapatos sofreram reparações múltiplas; as mulheres não vão ao cabeleireiro, o que não significa que não tenham a sua vaidade ocasional: pó-de-arroz excessivo para esconder a pele emaciada, olhos já sem brilho. Vejam estes telhados de padrões vermelhos, como se repetem, parecendo mais belos à distância, como aliás acontece com as pessoas, como são elegantes numa visão míope e tão feias vistas de perto. Ou talvez essa seja outra ilusão cruel: os detalhes do mundo são intricados e parecem até algo desagradáveis na sua complexidade e por isso imaginamos que uma visão de águia deva conter a máxima beleza e o ponto de vista de quem rasteja será o mais desalmado. Mas é o nosso preconceito de invejarmos a liberdade de quem voa e desprezarmos quem não sai do solo. Vejam as cores desta cidade quando o sol brilha. Ocre, verde em vários tons, o vermelho dos telhados, alguns reflexos do azul (no rio, no céu), uma espécie de cor de terra rica em argila e ainda tons diferentes de cinza granítica e brancos fulgurantes. Depois, vejam a multidão sem a qual nada disto faria sentido e seria apenas pedra sobre pedra. O rosado da pele humana, a cor mais difícil de descrever (precisa de uns toques de verde quase amarelado, rosa, carmim e um toquezinho de azul, depois muito branco, e não ficará perfeito, pois há todas as cores de pele, umas ainda mais brancas, outras acastanhadas, até ao muito escuro. Depois, as muitas línguas que falam, a ciciar, a chicotear, a gargarejar, do murmúrio até ao grito. Ah, o que estes corpos viram da vida, como foram jovens também e repletos de sonhos! Uns sonharam em partir e ficaram, outros em amar e choraram. Todos tiveram desejos, pois viver é desejar. Na recta final, quando se olha para trás, é o acerto de contas feito com o destino: no porta-moedas antigo, só restam algumas notas amarrotadas. E lá vamos, ajoujados, carregando as memórias num saco que cada vez mais nos custa a levar.

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publicado por Luís Naves às 19:10 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Segunda-feira, 12.03.12

Visitas importantes

A minha escola primária recebeu a visita do presidente. Ele chegou num carro escuro e era um senhor de fato  preto e cabeça branca, careca no topo; tinha uma careca muito polida que o sol abrasador foi avermelhando devagar. O presidente vinha rodeado de seguranças e bajuladores; era um homem atarracado e volumoso, que dava passos extremamente curtos. A viatura seria bentley ou rolls royce, não sei, havendo aqui um pequeno espaço de especulação. Estava de certo modo habituado a ver banheiras escuras formidáveis, de tecnologia mercedes, mas nunca antes vira uma com aquela elegância britânica. Os alunos da escola tinham sido colocados em duas filas e a viatura deslizou com suavidade entre a guarda de honra, como se levitasse à maneira dos veleiros.

Tinham-nos dado bandeirinhas nacionais e agitei a minha com patriotismo, mas o presidente saiu do carro sem me ver, aliás, com olhos só para as autoridades, que saudou com o seu ar enfastiado; ou talvez essa ideia seja posterior, como as memórias nos enganam, e ele até saltara da viatura disposto a cumprimentar com entusiasmo todas as almas que também o saudaram na ocasião; fica para a História a impressão errada, portanto, já que este parágrafo será o único relato que resta do evento; resta-me a sensação de que o presidente não era um homem popular e essa foi a minha primeira impressão política, ou também se trata de ideia posterior, uma partida que me pregou a passagem do tempo; permanece apesar de tudo a memória opinativa de ter vivido um momento histórico; o presidente visitava a minha escola, suburbana e pobre, e era a primeira vez que via ao vivo e a cores uma pessoa que antes conhecera na televisão a preto e branco.

 

Mas nisso de conhecer celebridades, o meu momento de glória foi a visita do guarda-redes Damas, do sporting, que veio à minha escola, enfim, pelo menos às redondezas, mais ou menos na altura do presidente, e ali permaneceu um bocado de tempo, para grande espanto da miudagem que observou o gigante, o qual ficou ali tão sereno como quando estava entre os postes. Ele era um homem a sério, pareceu-me, e ainda hoje penso que corresponde à minha imagem de homem a sério, ao contrário do presidente, que como já disse, e não tendo eu pretensões a possuir credenciais de precocidade política, me pareceu meio atarracado e sem talento para guardar um país, quanto mais uma baliza.

publicado por Luís Naves às 17:43 | link do post | comentar

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