Domingo, 11.03.12

O tenente Blueberry

Escrevi a notícia aqui: o autor de BD franco-belga Jean Giraud faleceu em Paris. Assinava Moebius e publicou na revista Pilote as Aventuras do Tenente Blueberry, a história de um militar americano no oeste imaginário. O herói é um dos meus favoritos e a personagem é claramente inspirada no actor francês Jean-Paul Belmondo, no nariz rachado, magreza física, até no carácter.
A paisagem do oeste americano, toda ela recriada a partir da memória cinéfila, funciona como uma das personagens das histórias de Blueberry, um oficial que geralmente luta pela justiça, insubmisso e desobediente, que se aventura no território comanche, e uso aqui a expressão para designar a zona inexplorada onde se escondem todos os perigos do mundo.
Esta BD não seria possível sem o realismo brutal e estranhamente poético de Sérgio Leone e parece-me ver ali as cores de Duelo ao Sol, um filme melodramático que deixou na minha memória a sua paleta quente e sensual (a rudeza da terra em contraste com o erotismo do corpo feminino). A abordagem de Moebius não seria possível sem a reminiscência do western no cinema, de Peckimpah a John Ford. Aliás, Blueberry podia muito ter sido um tenente no regimento de She Wore a Yellow Ribbon(não me lembro do título em português) e talvez não se desse mal com John Wayne, com quem tem parecenças.

 
O que explica este nosso fascínio pelos grandes espaços? Talvez o sufoco da vida moderna, a nossa falta de liberdade: em cidades opressoras, vidas incompletas, empregos esmagadores, o quotidiano de vexames. Independentemente da explicação, a imaginação de Moebius captou esse desejo de fazer largar a imaginação pelas planícies inesgotáveis do sonho. Fez isso ainda melhor nas obras de ficção científica, mas apeteceu-me falar do western.

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publicado por Luís Naves às 12:37 | link do post | comentar
Sexta-feira, 09.03.12

Alexander Borodin. Quarteto de cordas nº 2 (III), andante (Nocturne)

Atrasara-se no regresso. Olhou a rua longa, que uma fileira de candeeiros iluminava, e que era quase um campo de trevas, pontuado pelas sucessivas clareiras da frágil luz. Do céu, pairava um luar metálico e as nuvens baixas cobriam por vezes essa impudica luminosidade.
Respirou o ar de Novembro e caminhou, fascinado com o som dos próprios passos a cortarem o silêncio. Em sentido inverso, vinha um homem atrasado e os dois, quando se cruzaram, saudaram-se numa dança de solitários onde houve um breve arrepio de incerteza. Sentiu o mundo vagamente deslassado; nas lâmpadas trementes, nas paredes alteradas, nas janelas distorcidas, nos mínimos sinais que restavam daquilo que antes conhecera à luz do dia.
De uma taberna vinha um ruído quente, canção imperceptível, e a noite tornou-se mais apertada. Teve um pouco de frio e apressou-se, fechando ainda o casaco. Ao andar, criara uma melodia que não era melancólica, mas que lhe fez lembrar o sono tépido dos que adormeciam nas suas casas.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 18:29 | link do post | comentar
Segunda-feira, 05.03.12

Navegações

Novo Mundo, de Isabela Figueiredo: dos blogues que conheço, este é um dos mais bem escritos.

Joana Lopes, em Entre as Brumas da Memória (grande título) escreve sobre o Qatar. Quando por lá passei,em 2003, tive a mesma sensação de irrealidade.

Recomendo a visita a este blogue, A Ronda dos Dias, de Ivone Costa.

E a este, O Inútil, assinado por Ega.

Também gosto muito deste, A Ignorância, de Pedro Guilherme-Moreira.

E deixo um excelente post de Rui Bebiano, em A Terceira Noite, sobre a série dos livros juvenis Os Cinco, de Enid Blyton, mais os seus épicos lanches.  

 

publicado por Luís Naves às 12:58 | link do post | comentar | ver comentários (3)
Domingo, 04.03.12

Da estupidez

Num livrinho chamado Da Estupidez, o escritor austríaco Robert Musil tentou explicar que há uma “estupidez inteligente”,  que corresponde a uma doença mental e que é especialmente perigosa, pois “ameaça a própria vida”. A certo ponto, o autor citou uma frase do seu livro O Homem sem Qualidades que resumia bem a ideia: “Não existe um único pensamento importante que a estupidez não saiba imediatamente utilizar”.
Segundo Musil, a estupidez pode ser uma abdicação da inteligência, algo que o autor conhecia bem, pois escreveu este texto para uma conferência em Viena, em 1937, um dos anos mais produtivos de sempre para a colheita da imbecilidade humana. O autor também refere que todos somos por vezes estúpidos e que essa estupidez desinformada possui utilidade, já que se triunfasse a regra de ninguém julgar ou decidir antes de ter toda a informação sobre um tema, então o mundo ficaria paralisado.


“Como o nosso saber e o nosso poder são limitados, estamos reduzidos, em todas as ciências, a enunciar juízos prematuros”, escreveu Musil, antes de concluir que esse defeito deve ser limitado ao mínimo possível.
Veterano da guerra de 14, o famoso escritor vira a sua dose de dor. Não era propriamente um homem de esquerda, mas na altura em que escreveu este texto, assistia impotente à devastação que o nazismo provocara na inteligência dos seus compatriotas. Aquele era o fim de uma época, o colapso da civilização humanista, o triunfo de uma concepção absurda de poder, que caminhava para a destruição global.
A Áustria foi anexada em 1938 e a obra de Musil proibida. Acompanhado da mulher, o escritor refugiou-se na Suíça, onde morreu em 1942, faz este Abril 70 anos. Tentara em vão emigrar para os Estados Unidos, onde teria mais hipóteses de sobrevivência financeira, mas restavam-lhe poucos amigos e era um homem esquecido. Imagino a amargura que deve ter sentido, ao morrer sabendo que a estupidez triunfara.

 

A pintura Metropolis é de George Grosz e julgo que o expressionismo capta a essência da época.

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publicado por Luís Naves às 20:41 | link do post | comentar

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