Segunda-feira, 30.04.12

O crítico

O crítico passou-se seriamente depois de arrasar um livro que não tinha lido.
Ele era uma figura com quem ninguém falava. Entrava na redacção e sentava-se na mesa do fundo, escrevendo os textos com uma caneta de tinta permanente. Desenhava as palavras com uma letra elaborada que depois os tipógrafos tinham dificuldade em decifrar. Todas as semanas aparecia ao mesmo dia e à mesma hora, a cabeleira comprida sob o chapéu fúnebre, a bengala com topo de marfim, os dedos da mão direita sempre azuis da tinta. Entrava com um gesto vago de cumprimento e saía mudo.
Um dia, notaram que parecia ter enlouquecido de algum mal súbito. Foi depois de arrasar um livro que não tinha lido. Veio na semana seguinte a saber-se destes factos, entrou calado na redacção e sentou-se a escrever jogos de palavras com um montinho de frases que pouco mudavam. Escrevera numa das folhas o seguinte: “O que envelhece devagar quase magoa e na extensa morte que aparece sangram as feridas que não param até que enlouquece a profunda noite e um vento parvo insiste e repisa a adormecida parte. E arrefece. Ao reencontrar a certeza grito de medo e transparece em mim uma solidão cruel que é apenas ausência, alma que se percebe exangue e sem vida, sem dor alguma, na doce amargura perene da espuma que no fim sobra. E quem pede não recebe, é a fugaz sombra do mundo”.


E produziu umas vinte folhas com variações, todas muito bizarras, por exemplo esta: “O que fere no envelhecimento lento é uma morte que aparece em feridas que sangram em grande, até pararem na louca e profunda noite e na estúpida forma de um vento que dorme e se repisa. Está frio. Para encontrar um choro de medo, transparece a minha penosa solidão, que é meramente a ausência da alma sem fôlego e sem vida, ou dor e amargura. E paira uma perene e doce soma de finais. E quem não receber o que pede, será no mundo uma sombra”.
O crítico ia escrevendo estes exercícios, em formas monótonas. Passou o dia naquilo, meio alucinado, e ninguém se atreveu a criticá-lo por ter arrasado um livro que ainda nem sequer tinha sido escrito. Explicaria porventura que não gostava do autor fulano e foi num momento de impasse que um redactor mais afoito gritou no meio da sala: “Mas isto é um escândalo”.


Houve uma pausa solene nas tarefas da redacção. Todos os redactores, compenetrados numa espécie de reflexão íntima, olhavam para o crítico literário, à espera do que iria acontecer. E instalou-se aquele amargo silêncio de que tantas vezes falam os escritores.
Até que o crítico se debruçou de novo sobre a folha em branco e a caneta de tinta permanente recomeçou a dançar sobre o papel, com um ranger muito irritante, que se arrastava como se alguém gemesse. E as letras diziam: “É um escândalo o que quase magoa na lentidão, nas feridas que aparecem ao sangrar...”
Foi só nesse momento que perceberam verdadeiramente. O crítico passara-se muito antes de escrever a crítica sobre um livro de um autor que nem sequer existia. Ainda por cima, uma crítica negativa, a arrasar completamente a obra.
E, confortados com estes pensamentos mais sólidos, regressaram ao trabalho, inclinados sobre as suas vidas pequeninas.

 

 

(Este conto de duas páginas foi publicado em Novembro de 2010, no blogue Emoções Básicas. Uso aqui a mesma sugestiva imagem de um velho jornal).

publicado por Luís Naves às 19:53 | link do post | comentar
Terça-feira, 24.04.12

Quando acabou a pasmaceira

As aulas de história eram as minhas favoritas porque no ano em que acabou a pasmaceira, tive um professor que não era daquele filme. O velho trazia tudo escrito à mão numas folhas soltas e devia saber toneladas sobre a época medieval, pois fiquei com a pancada de ler sobre esses tempos remotos e ainda hoje me lembro como lhe bebia as palavras. Infelizmente, tínhamos poucas aulas, pois havia reuniões gerais de alunos dia-sim, dia-sim. Os professores tinham medo, devo dizer. A Amadora era uma zona revolucionária e o liceu estava dominado por grupos de extrema-esquerda; não recordo os nomes, sempre confundi aquelas siglas todas iguais, de partidos revolucionários que se dividiam em pentelhos ideológicos, julgo que a facção albanesa era a dominante.
Lembro um episódio: numa discussão que se tinha desviado para a política, a professora de português chamou-me mentiroso. Eu afirmara que os soviéticos e os nazis tinham feito um pacto antes da segunda guerra mundial e os meninos viraram-se contra mim, chamaram-me provocador e apelaram ao desempate da professora. Ela tinha duas opções: ou confirmava a informação e arriscava-se a arranjar um sarilho com a polícia ideológica que controlava a escola, ou negava e mudava de tema. Escolheu a segunda e ainda hoje penso nisso. O que é melhor, a verdade ou a mentira piedosa? Em 75, os professores tinham medo dos alunos e dos grupelhos políticos que vigiavam o que era ensinado, tinham medo das patrulhas dos professores revolucionários. No fundo, era um fascismo ao contrário. Numa reunião de alunos que se descontrolasse, podiam ser saneados. Era assim, embora isso não possa ainda ser escrito. A verdade é coisa complicada.

 

Pois, tocou a campainha quando ouvia o velho professor de história, que era um dos poucos que dizia o que pensava. Tomavam-no por tolo e não lhe faziam muito mal, só se riam dele.
Havia um código dos toques e três significava perigo iminente, como nas sirenes dos bombeiros. Ao chinfrim da campainha, os putos saltaram como pipocas e correram aos postos de combate. Eu preferia continuar a aula e fiquei sentado; o professor, cuja cabeça estava um pouco caída, ficou a olhar para mim com ar severo, como se fosse eu o culpado, e olhava para as carteiras abandonadas, algumas delas tombadas no chão. E também acabei por seguir os outros, mas antes de sair endireitei algumas das cadeiras e o professor agradeceu-me, numa voz que, segundo recordo, tremia um pouco.
O liceu era recente, com pátios e recreios entre os pavilhões, muito espaço e um pavilhão central onde os revolucionários fizeram uma reunião rápida, para organizar a defesa. Nessa tarde não houve mais aulas. Corriam rumores contraditórios, mas a história era de que os fascistas do liceu de Queluz iam atacar o nosso liceu, numa expedição punitiva que pretendia acabar com as nossas liberdades. Aquilo, para mim, não fazia sentido e ainda pensei em ir para casa, mas fiquei ali a ver o que acontecia, acompanhado pelo meu amigo Mário, que hoje pode servir de testemunha sobre o que aqui escrevo. Rapidamente, foram definidas as tarefas defensivas e a revolução avançou com patrulhas na vedação, armadas de paus, e que vigiavam eventuais infiltrações, além de patrulhas empoleiradas nos portões azuis, que meticulosamente anotavam as matrículas dos carros que passassem por ali. No pavilhão central, estava instalado o estado-maior, onde os agitadores profissionais juntaram as meninas, obviamente para protecção. O liceu fora transformado numa espécie de castelo e assim o imaginei: a ponte levadiça, as populações assustadas, aquém das muralhas, os cavaleiros armados, prontos para rápidas incursões no exterior, capazes de defender a honra revolucionária. Mas não era assim grande castelo, faltavam as seteiras, as torres, as ameias, a pedra dura e a água mole, bem como o azeite a ferver.
E, durante algumas horas, vivemos aquele impasse de nada acontecer, de não se confirmar o cobarde ataque do liceu fascista. Os professores tinham desaparecido e fizeram bem, pois quem sabe o que acontece num ambiente de histeria descontrolada? Eu limitei-me a passear por ali e não participei: aquilo parecia-me uma espécie de sonho, um acontecimento artificial que não me dizia respeito, que me era alheio. Ao longo da vida, isso aconteceu-me muitas vezes: estar a ver algo que se passava em frente aos meus olhos, sem me importar, sem a mínima vontade de interferir, como se fosse possível ser apenas espectador dessa vivência; mas a palavra está talvez mal utilizada; não era vivência, mas um facto que podia ou não ser testemunhado; era indiferente, nada mudava em mim, por isso não era vivido, estava apenas ali.

 

Quando se puxa um elástico, a certo ponto ele parte-se. O momento em que isso acontece é inesperado, mesmo para quem está a puxá-lo sabendo o que vai acontecer. É impossível prever o momento exacto do estrondo ou o instante da dor, quando devido à tensão acumulada o pedaço partido choca com a pele da mão que segurava a ponta.
Assim sucedeu na guerra do liceu. Tudo se precipitou de repente. Na rua limítrofe apareceram duas motorizadas e ouviu-se um forte grito e saiu pelo portão uma turba de infantaria armada de varapaus a pedras (a minha imaginação acrescentou uma bandeira vermelha à frente). Correram dezenas de miúdos para lá e ainda vi as duas motos a voarem pelo ar e dois rapazes que fugiam, num pânico incrível, e alguém regressou, explicando que a guarda avançada deles, a patrulha de reconhecimento, tinha sido interceptada pelos nossos e estava a ser perseguida na Reboleira, que como sabem tem uns prédios bastante altos. Junto aos portões, os putos gritavam: “NATO fora de Portugal, Portugal fora da NATO”. E dentro do liceu, havia uma indescritível excitação, com grupos a correrem, falsos alarmes, toques de campainha em pânico.
Chegava entretanto o grosso do exército com dois prisioneiros e correram histórias de que tinham sido capturados na torre mais alta da Reboleira, com 25 andares. Era uma força bêbeda de vitórias, confiante e altiva, que fizera a sua devastação; levantava densa poeira, ao atravessar o descampado, erguendo os paus como se fossem espadas, os elmos às cabeças brilhando, pois o sol já se inclinava, o que pareciam armaduras ferozes e todos marchando em alta grita. E, lá no meio, os assustados prisioneiros, chorando os seus rocinantes mecânicos, que agora jaziam no caminho.
Esclareceu-se mais tarde que aqueles fascistas eram dois namorados que vinham buscar as suas amadas, mas isso não alterou o essencial. Foram levados para dentro e, mais tarde, muito a medo, apareceram alguns polícias para levar os invasores ao seu destino de calabouço. E, junto aos polícias, vinha um jipe com quatro comandos; quando começaram os insultos de fascistas e outros mimos (erro táctico) os soldados saíram do jipe e espancaram uns putos que não fugiram a tempo. Enfim, não foi bem fuga, foi mais uma retirada estratégica, pois a revolução às vezes tem de dar um passo para trás para mais tarde poder dar dois para a frente.

E este foi mais ou menos o momento em que tudo acabou. Para mim, era a hora de regressar a casa. E assim fiz, ainda desconhecendo o meu futuro insucesso escolar. Mas posso dizer que foi um dos dias mais divertidos da minha vida.  

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Segunda-feira, 23.04.12

Tudo se mistura

Este não é apenas o rio que se arrasta nas suas contradições contra-a-corrente, mas também a força selvagem, de mistura com a suave brutalidade dos homens civilizados. Está inundado de medo e hesitação, desumanidade e desistência, algumas cobardias e traições. Este não é apenas o rio que escorre, invisível, nas noites de angústia, mas igualmente o espectáculo de gente inquieta, pois tudo o que nos rodeia é fogo-fátuo, luzes artificiais e espuma de vidas imperfeitas. Vejo uma mágoa da matéria deslassada, a atmosfera sufocada, os dias cheios de pena, despedaçados. Brancura de cinza, paredes esfoladas como pele, os farrapos de algodão sujo nas nuvens cansadas, tão cheias de chuva que nada cai do céu. Este é o rio que acredita que o mundo é todo seu, feito de subtis mudanças, quando abranda junto à foz e chega à planície. Parece impossível, mas é ali que morre, ao espraiar-se na distância, e fica ali pasmado, como que num impasse da vontade, como se a terra abrisse os braços e engolisse aquela força toda, num gesto de falsa ternura.
Observo o rio das misérias precoces, dos prédios semi-abandonados. Creio que ali ainda vivem alguns velhos, escondidos como baratas atrás das paredes podres. Estamos a envelhecer. Somos cada vez mais numerosos, os que se escondem nos prédios decadentes e nas ruas desocupadas. Ninguém fala disso, porque nunca falamos verdadeiramente dos nossos problemas, sempre com as mesmas justificações pouco convincentes, que não passam de meias-mentiras, o mesmo que meias-verdades. As casas vazias são semelhantes a nós, esperam o milagre que as possa encher outra vez de vida.
Lá fora, de súbito, guincha um gato assustado. Vou à janela. No pátio, entre o arvoredo, cinco andares abaixo da minha janela, passeiam três gatos e presumo que um deles se tenha assanhado com outros dois, por uma qualquer crueldade frívola típica dos gatos, o que pode ser inocente. Os horrores, esses, são relances da realidade. Está tudo cheio deles, mais além, só aqui houve um breve sinal, mas volúvel como um bicho, já passou, não foi nada. Os gatos parecem tranquilos, acalmaram-se, estão no seu ambiente e nem reparam que os observo, lá ao alto, ou talvez não se importem.
Ao fundo, numa fileira de prédios pobres, destaca-se um que está pintado de verde cor de vómito. Isto é o que podemos ver da dissolução do concreto. A realidade corpórea vai perdendo a sua consistência, o que se pode observar nos velhos que passam os dias escondidos nas suas casas moribundas e no gato que silvou assustado e logo fingiu a tranquilidade, pois aquilo que vemos nunca é o que vemos, e se a frase não parece fazer qualquer sentido ou se é contradição, estamos no vasto rio imóvel cheio de correntes antagónicas.
Vejo um homem que vai pela rua arrastando a sua bicicleta velha, uma arrastadeira preta, e surge-me a memória fugaz de pedalar uma bicicleta igual àquela, até nas latarias soltas e no cone da lanterna. E pedalava numa estrada antiga, numa vila da infância e sentia a força do vento no cabelo e havia uma curta descida onde a pesada bicicleta acelerou e foi nesse instante, que agora recordo com exactidão, que senti a máxima liberdade do meu corpo, algo que até esse dia nunca tinha sentido ou talvez a memória não tivesse fixado a alegria pura do momento. E essa memória regressa, quando vejo o homem levando pela mão a velha bicicleta arrastadeira da minha infância. Leva pela mão a bicicleta que, segundo sei, está semi-morta.
Tudo flui num rio, tudo se mistura.

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Domingo, 15.04.12

Navegações

Rui Bebiano, em A Terceira Noite, sobre o caso Gunter Grass.

Pedro Correia, em Delito de Opinião, publica mais um texto da sua excelente série sobre os grandes contos.

Tempo Contado, de Rentes de Carvalho, nem vale a pena seleccionar posts: é tudo excelente.

João Ventura, em O Leitor Sem Qualidades, escreve sobre Herberto Helder.

Encontrei este texto em Uma Mulher não Chora. É extraordinário, leiam.

E ainda uma ligação à Antologia do Esquecimento para mais poesia.

 

 

publicado por Luís Naves às 13:20 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sexta-feira, 13.04.12

Crónica do Toca-Toca

O riso de Amadou Baldé foi a primeira impressão que tive dele. Um riso de tal forma sincero que fazia da Guiné, na aparência, a terra mais feliz do mundo. O motorista era uma daquelas pessoas que riem com facilidade, por tudo e por nada, com alegria tão visível que podia servir para ilustrar um postal, dos que fixam a recordação de breves paraísos. Mas, naquele domingo de manhã, na paragem de Brá, o sorriso de Amadou desaparecera. No seu olhar surgira a velatura da preocupação.
A paragem é uma espécie de centro de transportes que fica num espaço vazio, entre a mesquita e a embaixada da Rússia, hoje semi-arruinada, junto ao Poilão de Brá, local simbólico para os habitantes de Bissau. Durante o levantamento de 98, esta zona ficava na Linha da Frente, área difusa, em forma de arco, que atravessava a parte mais elevada da cidade, sensivelmente a meio caminho entre a base aérea, onde estavam os rebeldes da Junta Militar, e o centro, onde resistiam os fiéis do Presidente Nino Vieira e os seus aliados de Conacri e  do Senegal. Ali ocorreram os combates mais violentos entre as duas forças.
Estas memórias dolorosas reapareciam no espírito das pessoas que, como Amadou, vieram até à paragem no dia 4 de Abril. Na véspera, o taxista tentara tirar de Bissau a sua filha de quatro anos e as restantes crianças da família próxima. A tentativa fracassou, não por falta de dinheiro, mas por falta de transporte. O objectivo era levar as crianças para a segurança da horta dos avós, em Bambadinca. Os preços tinham duplicado e um bilhete de saída custava agora 1250 francos CFA por cabeça, cerca de dois euros. Mas no centro de camionagem não havia carros. Quase sentia, ao meu lado, as dúvidas deste homem: ao volante do seu táxi azul, podia esquecer os dois jornalistas, embarcar as crianças e ir ele próprio levá-las para a segurança de Bambadinca; mas o aluguer do toca-toca (este é o nome popular dos táxis de Bissau) fora uma sorte imprevista; Amadou Baldé não teria dinheiro para mandar transportar as crianças se não andasse connosco há uma semana.

 

 

 

publicado por Luís Naves às 20:17 | link do post | comentar
Domingo, 08.04.12

Um livrinho de previsões

Numa feira de velharias comprei por um euro um pequeno livro dos Cadernos do Século com o sugestivo título “Como Viveremos em 1980”. O volume foi publicado em 1970 e inclui ensaios escritos por diferentes autores, abordando vários temas do futuro próximo. Um dos textos é do escritor e ensaísta Arthur Koestler, uma das figuras mais interessantes do século XX, um homem cheio de contrastes e defeitos, que escreveu um dos romances mais poderosos que conheço sobre o totalitarismo, O Zero e o Infinito.


O livrinho de previsões que refiro no início do post está virado para o futuro mais distante (sobretudo o ano 2000), mas Koestler reconhece a aceleração da História e escreve para 1980, prevendo que nos espera “trabalho, família, mediocracia”. As pessoas continuarão a ser monogâmicas, conservadoras, bastante medíocres, considera o autor, com a monarquia a velar pelo país (o Reino Unido, onde ele vivia desde a Segunda Guerra Mundial). Ou seja, o futuro teria tudo mais ou menos na mesma quantidade e forma: “É a minha vózinha que me murmura que, em 1980, depois do jantar, estarei calmamente ocupado a fazer as minhas palavras cruzadas, como de costume”, escreve Koestler.
Esta última frase deixou-me boquiaberto. Em 1976, Koestler foi diagnosticado com Parkinson e, em 1980, com leucemia. A sua saúde degradou-se nos anos seguintes, a ponto do autor ter decidido suicidar-se em 1983, acompanhado pela mulher, que era relativamente jovem na altura. Até na morte o escritor anglo-húngaro foi uma figura controversa e ninguém compreendeu o pacto suicida, sobretudo como foi possível Koestler não convencer a sua mulher a desistir da morte prematura. Alguns dizem que o escritor era uma pessoa brutal. Tinha poucos amigos e, devido ao que escreveu, era odiado pela esquerda pró-comunista e pelos sionistas.


A ideia de que a vida dos indivíduos não muda assim tanto é interessante e julgo que se trata de uma observação verdadeira na maior parte do tempo. Mas não parece válido para as grandes acelerações da História. Em 2012, não me atrevo a dizer que daqui a dez anos estarei tranquilamente a fazer as palavras cruzadas. E, no entanto, o autor de O Zero e o Infinito sabia como a vida pode ser incerta: no romance, um alto dirigente comunista, Rubachov, vai sendo interrogado durante as purgas de Estaline e tudo o que fez torna-se inexplicável. As suas certezas são destruídas, uma a uma. Koestler esteve no corredor da morte, em Espanha, e escapou por pouco. Isso deve ter marcado a sua vida. Tinha 78 anos quando se suicidou: este homem de suprema inteligência não viveu o suficiente para assistir ao fim do sistema comunista, que aconteceu apenas seis anos depois da sua morte. Acho que nem sequer lhe passou pela cabeça que isso fosse possível.

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publicado por Luís Naves às 11:49 | link do post | comentar
Terça-feira, 03.04.12

Mutações

Faltavam vinte números e já não sabia o que fazer. Tentei concentrar-me na leitura do artigo, mas o barulho das pessoas distraía-me. O texto era sobre um cientista que desenvolvera em laboratório mutações de um perigoso vírus da gripe. Até aí, este não se espalhava com velocidade, mas com as mutações tornou-se mortal, capaz de destruir uma percentagem elevada de todas as pessoas vivas. Artigo interessante, mas denso. A vida é como um jogo de casino e os cientistas subiram a parada: foi preciso fabricar um mutante que passasse de humano em humano com um simples aperto de mão, e era preciso fabricá-lo antes que a natureza o fizesse.


As pessoas passavam, olhavam os pequenos ecrãs, metade deles avariados, e levando nas mãos as pequenas senhas brancas, conferiam longamente os números, que lhes pareciam sempre longínquos. Ao meu lado, estava uma pretinha linda, entretida a pintar as unhas de cor-de-rosa, tonalidade que lhe ficava mal, num contraste agreste com a pele fortemente castanha. Conversava com a mãe, mas sempre a olhar para as mãos e meio distraída da conversa. Uma senhora gorda estacionara em frente, tirando-me parte da vista; dois paquistaneses palravam em urdu; sentada nas fileiras do outro lado, estava uma mulher triste, com ar aflito e a suspirar profundamente em cada cinco minutos; no átrio, como quem passeia entre vinhedos, fazia umas piscinas um homem com ar de camponês, ainda de boina na cabeça.

Crianças e velhos, negros e brancos, uns mais raros de fato e gravata, toda a humanidade concentrada, todo o cheiro da humanidade também; e passou um velhote a tossir e tossiu para cima de mim e pensei naquele vírus que estava guardado a sete chaves no cofre de um laboratório de alta segurança e que os políticos queriam destruir e os cientistas com dúvidas, a insistirem que a natureza era melhor do que a ciência a produzir vírus perfeitamente mortais, tão mortais que poucos de nós escapariam para contar a história se o bichano andasse por ali a cumprimentar as pessoas.
Talvez escapasse a jovem que a meu lado disse de súbito para o namorado:
   - De que me serve saber o que a tua mãe faz? Em que é que isso contribui para a minha felicidade?
E riu-se. Ele lá balbuciou qualquer resposta e a lógica morreu no burburinho dos que subiam e desciam as escadas e dos que ficavam plasmados em frente ao ecrã, para conferirem bovinamente o número da senha. Era assim, aquele mundo.
Faltavam 15 números e o relógio avançara um ano-luz.
Havia tempo à nossa frente, mas melhor seria a namoradinha espreitar desde já as manias da futura sogra, aprender a fazer os mimos certos ao rapaz que, como todos os rapazes da sua idade, era carente. Dessa forma, ela poderia contribuir, e muito, para a sua felicidade futura. No fundo, tudo se resumia a misturar bem uns genes e rezar em relação às mutações que viessem na lotaria: que nada fosse pior do que unhas encravadas, pestanas a crescerem para dentro do olho, dentes encavalitados, caspa, acne.
 
E aqui está a humanidade resiliente à minha frente, uns mais brancos, os outros mais pretos; uns mais bonitos, outros mais feios; uns melhores, os outros piores; mas todos parecidos na sua humanidade. Todos eles com defeitos, volúveis, inconstantes; alguns, tão raros como os que usam gravata, talvez capazes de resistir ao vírus no cofre do cientista. O artigo é denso, já passei de meio. Eu ficarei talvez morto, também a beldade das unhas cor-de-rosa, e o bebé de colo; e a velhinha da bengala a quem ninguém dá o lugar; e o cinquentão armado em fanfarrão, risco de cabelo alinhado como a auto-estrada norte-sul; e o brasileiro e o paquistanês, os dois disciplinados, à espera de vez.
Faltam três números e eu aqui a perder as poucas horas que me restam, isto se o mutante sair do cofre ainda hoje ou se uma estrela das vizinhanças explodir em supernova, para não falar dos asteróides, terramotos e tsunamis que espreitam a sua oportunidade. Certo dia, li um jornal do tempo da pneumónica: tinha poucas páginas; durante semanas, morriam diariamente centenas de pessoas, incluindo os redactores. O banal nunca é notícia, mesmo que seja desgraça.
De súbito, assusto-me. Desce as escadas, elegante, uma mulher parecida com Maria Callas. Todos a olham, como se entrasse em palco, o nariz perfeitamente imperfeito, o penteado fora de moda, um corpo magro e frágil. Parece atarantada por não ter aplausos unânimes, bravos e pedidos de casamento. Eu próprio casaria com ela, mas chamam o meu número. Corro. Sento-me. Entrego a minha senha amarrotada. Todo eu sou mesuras para a funcionária:
   - Queria um cartão de cidadão, por favor.
   - Trouxe algum documento de identificação?
   - Para dizer a verdade, não trouxe.
   - Sem documento de identificação, não lhe posso passar o cartão de cidadão.
   - Mas o cartão de cidadão é um documento de identificação…
Ela, muitos anos a virar frangos, já ouviu a deixa mais de cem vezes:
   - É o sistema...
Sim, nada a fazer contra isso. O sistema ordena e regula, sem o sistema não há disciplina. O sistema é cruel: a senha seguinte é da rapariga das unhas cor-de-rosa. Toda ela mel com a funcionária. Afasto-me, em derrota, passo pela sósia de Maria Callas, que ainda espera os aplausos, meio irritada com aquele público ingrato. E lá longe, submerso num laboratório, um vírus mutante sonha com a liberdade.

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publicado por Luís Naves às 18:37 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Segunda-feira, 02.04.12

O Príncipe Falso

O Príncipe Falso era um pequeno bácoro rosadinho e histérico, de orelhas arrebitadas e pele muito lisa. Tinha aspecto apetitoso. Lembro-me que lhe fazíamos sevícias constantes e ele (porque os porcos são espertos) fugia de nós sempre que nos via, incapaz contudo de evitar a captura, distraído com qualquer coisa, esquecido dos diabretes. Nas sessões de tortura protestava a sua inocência, mas a nossa persistência era mais forte. Tal como os bons polícias, desconfiávamos de confissões apressadas, rendições incondicionais. Todos se dizem inocentes e assim era também com o Príncipe Falso.
Uma vez fizemos um buraco no chão, uma cova ainda funda e tapámos a armadilha com folhas de fetos gigantes. Depois, tentámos que o porco avançasse sobre as folhas para cair no fundo da cova, que teria uns palmos de profundidade, mas palmos de menino. O porco olhou para aquilo com a desconfiança inata acumulada em milhões de anos de evolução e recusou-se a pisar o que provavelmente lhe parecia um buraco tapado por fetos gigantes. Seguiu-se um conflito de vontades entre as duas espécies, nós a insistirmos que o porco pisasse a armadilha e ele recusando-se a aventurar-se em solo instável. Então, fizemos batota, empurrámos o príncipe falso e ele bateu com o focinho no fundo, muito indignado, aos gritos, talvez a dizer-nos que não se deixara enganar e que a invenção, assim, era bastante injusta.
A vida de porco, naturalmente, não era brincadeira. Esperava-se que deixasse de ser bácoro e ficasse um grande animal de ancas fartas e dorso robusto. Era alimentado com restos de comida e vivia numa pocilga especial, onde devorava quantidades de batata e couves e feijão e tudo o mais que lhe aparecesse à frente do focinho. Comer era a sua vocação e assim cresceu o nosso porco, o único que a minha avó teve, que eu me recorde.
Não tenho bem presente o resto da cronologia do Príncipe Falso, mas no ano seguinte já era um ser enorme e pesado, que se arrastava dificilmente, estupidificado pelo pecado da gula. Ou talvez tenha passado mais de um ano. Só sei que a avó o vendeu por 250 escudos e o Príncipe Falso foi embarcado com dificuldade numa camioneta que o levou para um destino que ele sabia ser horrível. Protestou a sua inocência ao subir a rampa, olhou para nós, com aqueles seus olhinhos minúsculos e assustados, tentando talvez convencer-nos de que fora nosso companheiro de brincadeiras e que o fizera sempre sem maldade e se, um dia, resistira a cair no buraco tinha sido para dar mais sabor às diversões, para que a galhofa fosse mais interessante. E nós, garotos, ficámos a olhá-lo a subir a rampa do cadafalso, um belo fim para um príncipe.

publicado por Luís Naves às 13:18 | link do post | comentar

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