Terça-feira, 29.05.12

De como o gato Iskra salvou a Humanidade

O velho Mikhail Petrovitch olhou para a brancura da neve, lá fora, e suspirou profundamente. Pareceu perder-se nos seus pensamentos, e só então me dei conta da importância da minha pergunta sobre o que realmente acontecera naquele dia confuso de Maio. Depois, bebeu um pouco do chá que tinha sobre a mesa (notei os seus dedos extremamente finos) e sorriu com uma recordação qualquer. Era como se eu já não estivesse ali.
   - Em que está a pensar, Mikhail Petrovitch? -, perguntei.
O velho sorriu ainda mais. Quase ria:
   - Num gato! Chamava-se Iskra e fazia justiça ao nome, parecia uma faísca a correr pela dacha do secretário Korillov. E a sua pergunta anterior sobre aqueles dias da transição de poder fez-me lembrar aquela bola de pêlo ruivo que corria pela casa. O gato que salvou a Humanidade.
E ao dizer isto, largou uma genuína risada. Depois, ficou em silêncio, e ouvia-se a imensa tranquilidade do mundo. A floresta, do outro lado da estrada, um vento que se erguia sobre a neve, a madeira que estalava no calor da casa.
     - O que não percebo, Mikhail Petrovitch, é a ligação entre o gato Iskra e a transição de poder. E como é que o gato salvou a Humanidade? -, disse eu, meio incrédulo, a pensar que estava perante o delírio de um idoso.
    - Onde é que íamos? -, perguntou Mikhail Petrovich. - Ah, a transição! Portanto, depois do secretário-geral ter morrido, houve um vazio de poder durante duas semanas. Os membros do Politburo estavam em luta uns com os outros, excepto Korillov, que teve a liderança durante a transição e, portanto, o poder de escolher o sucessor... Enfim, você já sabe isto tudo... O que não sabe é que houve uma noite de pânico no dia 29 de Maio de 1961. Korillov estava na dacha. Eu também, já que era o secretário pessoal dele. Deviam ser uma cinco da manhã quando chegaram três outros membros do Politburo, acompanhados de vários generais. Traziam a mala dos códigos nucleares e pareciam agitados, sobretudo o marechal Getmasov, que era meio paranóico e extremamente incompetente. ‘Temos de atacar antes que eles nos esmaguem’, vociferou o marechal, quando todos entraram no gabinete de trabalho de Korillov, que ainda estava de pijama e parecia patético no seu espanto com aquele alvoroço. Já nem me lembro bem qual era a questão, mas parece que houve um erro de avaliação sobre o que se passava nos silos atómicos dos americanos. Enfim, os generais estavam convencidos de que haveria um ataque nuclear dos Estados Unidos no prazo de uma hora. E gastaram esse tempo a discutir se aquilo era assim, a pedir mais informação. Faltavam dez minutos para o alegado ataque e o clima na sala era de histeria. Todos gritavam, Korillov hesitava. Então, houve uma espécie de intervalo e os espíritos pareciam ter acalmado, como se houvesse ali a iminência de uma grande decisão. Em certo ponto, o secretário Korillov não aguentou mais e vacilou, aceitando um ataque preventivo contra os Estados Unidos... Naquela altura não sabíamos, mas uma guerra nuclear seria equivalente ao extermínio da Humanidade... Enfim, alguém se esquecera da mala dos códigos em cima de uma mesa, procuraram-na com o olhar, e lá estava Iskra, a bola de pêlo ruivo, como um diabinho, em cima da mala, a dormir refastelado. O marechal Getmasov precipitou-se para a mala, decidido a enxotar o gato, mas foi nessa altura que as coisas se tornaram verdadeiramente alucinantes. Alguma coisa irritara Iskra, que se eriçou contra o marechal, bufando-lhe, furioso com a interrupção do sono ou com algum gesto brusco que o militar fizera. Estávamos nove pessoas na sala e ficámos estarrecidos. O marechal fez o movimento de quem procura a pistola e teria disparado, mas os militares entravam desarmados nas dachas dos membros do Politburo, cuja segurança pertencia à KGB. Eram regras de segurança do tempo de Stalin. O marechal tinha estado em Estalinegrado, não era uma gatinho inofensivo que o ia travar. Iskra levou um valente safanão e o Getmasov abriu a mala dos códigos, virou-se para Korillov e disse: ‘Tem de dar a ordem, Stepan Stepanovitch”. Korillov ficou a olhar para ele, muito branco, sentado, ainda no seu pijama, com ar indefeso, mas rendido, pronto a dar a ordem. De súbito, Iskra saltou-lhe para o colo e todo o movimento se suspendeu na sala. O gato esticara-se, com as patas de trás sobre as pernas do dono, as da frente no peito dele e o focinho avançado sobre a sua cara. E Iskra começou a lamber a cara de Korillov, a lambê-lo freneticamente, como se pedisse para esperar mais um pouco. ‘O gato não tem medo’, disse Stepan Stepanovitch Korillov. E segurou Iskra, segurou-o com suavidade, dando-lhe festas no dorso, depois recostando-se na cadeira. ‘Esperamos’, ordenou. O marechal ainda tentou convencê-lo, implorou durante alguns minutos e, então, chegou aquele telefonema que esclarecia todo o mal-entendido. Tinha sido uma ilusão, não havia nenhum ataque americano, apenas más interpretações de informação electrónica. Dias antes de morrer, Korillov disse-me que no momento em que Iskra lhe saltara para o colo tinha pensado em mil coisas diferentes, mas lembrara-se da sua neta e sentira, por um instante, uma presença superior naquela sala. Mas repare que ele não chegou a usar a palavra Deus... Como é que os americanos chamam a isto, Guerra Fria, não é? Pois bem, digo-lhe, meu caro, se nessa Guerra Fria houve autênticos heróis, aquele gato foi um deles”.
Mikhail Petrovitch calou-se. Ficou pensativo um bom bocado. Olhou para a rua, distraído. Talvez pensasse na sua carreira falhada, no seu futuro breve, no poder dos acasos ou na loucura dos homens. Então, quebrando a pausa, concluiu:
    - A propos*, escreva o seu livro, mas você nunca poderá contar esta história!

 

* em francês, no original

nota: este é um conto antigo, alterei a data, um suposto 29 de maio de 1961, o dia em que nasci. Iskra, em russo, significa faísca

publicado por Luís Naves às 15:05 | link do post | comentar
Segunda-feira, 28.05.12

Delação

Tibor era o rapaz invejado, aquele que os outros miúdos odiavam por saberem que pertencia a uma família influente. Era denunciado por pequenos sinais: os bonitos cadernos que a mãe lhe comprara na cooperativa do partido; a roupa e os sapatos estrangeiros; a deferência calculada do professor. Sobretudo, o orgulho dos poderosos, esse pecado que o povo detesta. É incrível como uma simples criança sabe quando os seus pais têm posição elevada. Tibor era um miúdo franzino e agradável, capaz de fazer amigos, mas ingénuo ao chegar àquela escola onde eram maioria os filhos de operários; deve ter pensado que os outros miúdos o veriam como líder, mas a sua expectativa era infantil. Eles viam-no como um marciano.
Não me lembro com exactidão de como tudo aconteceu, mas a nossa amizade resultou de um episódio que hoje acredito ter sido uma das grandes lições na vida de Tibor. O professor saíra da sala de aulas por minutos e, como era típico na época, colocou um dos alunos como responsável pela disciplina, dizendo-lhe que esperava um relatório completo do que teria acontecido na sua ausência. Tibor era o favorito do professor e foi nomeado na espinhosa missão. Tratava-se de uma simulação, claro, uma falsa atribuição de poder, mas era preciso ter consciência dessa ficção geral que regulava o nosso mundo (ali, numa versão esquemática da política), para compreender que o professor não esperava qualquer tipo de informação sobre o que acontecera na sua ausência. Por isso, foi espantoso o indignado silêncio dos alunos, ao ouvirem Tibor a denunciar cada um dos que se portara mal, incluindo algumas meninas, o que lhe valeria uma vergonha ainda maior aos olhos da turma. Acusou cinco de nós, fazendo um cuidadoso relatório numa voz nervosa e estridente, e o professor, visivelmente espantado (até que ponto estaria com medo?) foi obrigado a punir os infractores. Eu fui um deles, embora não me lembre do que tenha feito.
No intervalo, Tibor enfrentou a fúria dos colegas. Foi emboscado numa zona pouco vigiada da escola e encostado a uma parede. Lembro-me do ar infeliz dele, da forma como de súbito compreendia o erro, talvez da dúvida que passava pelo seu espírito, de que era correcto cumprir a missão que o professor lhe tinha atribuído, mas que havia algo de profundamente errado. Talvez tenha imaginado, com horror, que iria viver o resto da vida sozinho e sem amigos. E o resto da vida, para uma criança, é a eternidade. Na perspectiva de levar mais estaladas, encolheu-se, e por qualquer razão tive pena dele, impedindo os outros rapazes de lhe baterem mais.
“Não voltes a fazer aquilo”, disse eu. E o miúdo indefeso disse que sim com a cabeça, a tentar em vão conter as lágrimas. A nossa sede de vingança estava saciada. Os outros miúdos dispersaram e eu fui o último a deixar o campo de batalha, deixando nítida a autoria de uma clemência que ainda hoje não entendo. Estaria a tentar ser amigo dele? É provável, já que também eu invejava a boa fortuna de quem pertenciam à classe social certa. Vendo bem, sempre o invejei.

 

Nas semanas seguintes, ou meses, já não recordo, tornei-me amigo de Tibor. Durante algum tempo, fui o seu único amigo, o primeiro a esquecer o episódio da delação. Ele levou-me a sua casa, para estudarmos juntos, e isso aconteceu mais vezes. Conheci a mãe dele, Edite, que nos servia um chá a meio da tarde; e, um dia, apareceu o pai, Joszef Varga. Nada tinha a ver com o homem curvado e empobrecido dos seus últimos dias de vida. No início dos anos 70, era alto e magro, direito, uma bela figura, com nobreza no porte, mas também uma faceta algo inquietante que não sei definir, mas que se revelava no azul profundo do olhar interrogativo e agudo. Tinha barba mefistofélica, precocemente embranquecida, e na memória da primeira vez que o vi estava vestido com camisa branca, portanto devia ser um dia quente, talvez de Junho, e ele interessou-se pelos nossos estudos, pois deviam estar próximos os exames. Ouviu as explicações do filho sobre um problema de matemática, sorriu para mim, observando-me com interesse: “E tu deves ser o Lajos”, disse.
E é tudo o que lembro, os bolinhos de Edite e o caminho para a casa deles, uma mistura na minha memória, e a casa antiga, de rés-do-chão e cave, a ocupar o fundo do quarteirão, com uma parte virada para a rua onde havia algum trânsito. Tinha o estuque da pintura pelado como um pêssego podre. Depois, um muro ao longo da rua e esse dava para o pátio deles e para um jardim onde havia nespereiras (julgo que eram nespereiras) e do jardim entrava-se na casa pela cozinha e na sala tinham a grande salamandra e lembro-me também de um quadro, uma cena de camponeses a ceifarem o trigo, e encantava-me aquele movimento dos ceifeiros, o impulso congelado na tela, que era como a própria vida, feita de ímpetos que transformamos em gestos, numa batalha eterna contra o que cresce da terra para nos sufocar e que devemos tentar cortar depressa, antes que nos agarre as pernas e nos prenda ao violento solo.
E parecia-me que os camponeses não cortavam suficientemente depressa e que se afundavam devagar naquele chão voraz, que subia e subia.

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Domingo, 27.05.12

O amor é cruel

Nesse tempo, morava a um quarteirão do Danúbio, numa das melhores zonas de Pest, na esquina da Pozsonyi com a Radnoti, num prédio antigo que foi dividido em apartamentos minúsculos. Se descermos a rua, direcção sul, estamos no boulevard de Szent Istvan e, se caminharmos para ocidente, a meio da ponte, na Ilha Margarida. A casa fora uma sorte, mas tudo o resto era enganador; um ano antes perdera o emprego na rádio. Felizmente, recebia uma bolsa literária de 50 mil forint e a casa tinha renda barata, camarária, julgo que não passava dos dez mil, o que era uma ridicularia. Enfim, o suficiente para uma vida de escrita, mas com os centavos todos contados. Sem os biscates, provavelmente tinha sido forçado a mudar de profissão. A minha mãe, que ainda era viva, dizia-me sempre que um canalizador fazia mais dinheiro, e era verdade, mas não me importava com estas censuras: não deixa de ser respeitável ver um tipo seguir o seu sonho.
O inverno desse ano acabou num murmúrio, que tinha a suavidade de um tempo a escoar-se ao ritmo de manhãs translúcidas. Durante semanas, quase não saí de casa, porque estava a acabar a tradução de um livro francês e a começar um conto que só viria a publicar anos depois, mas que me ocupou bastante tempo. Construí rotinas simples: levantava-me cedo e escrevia; parava ao fim da manhã, fazia umas compras básicas e comia qualquer coisa num bistro da rua; regressava e trabalhava até à noite na tradução (...).


O bistro era um estabelecimento acanhado, que fazia bolos e tinha no canto uma área para se comer de pé. Ao centro, havia uma fileira de tabuleiros com comida a preços acessíveis e porções pequenas, para os trabalhadores dos escritórios. O lugar tinha uma clientela fixa e ficava bastante confuso às horas das refeições, embora não houvesse barulho de conversas, pois os húngaros não falam enquanto comem. Eu ia ali porque o orçamento chegava e o lugar era acolhedor e quente, a comida simples; a certo ponto, esperava encontrar uma das empregadas, com quem tinha um começo de namoro. Primeiro, foram umas conversas, depois uns sorrisos e olhares mais continuados, até ao convite para ir ao cinema ao domingo, mas isso tinha sido ainda antes do inverno. Ela era uma rapariga banal e, a princípio, os nossos encontros foram inocentes. Agora, que já passaram anos desde esse período da minha vida, posso dizer que sinto uma dose de culpa, pois sabendo à partida que não iria apaixonar-me por Anna (assim se chamava), continuei a iludi-la, embora ela fosse para mim apenas objecto de estudo, uma personagem material do que imagino ser a vida autêntica, daquelas personagens que por vezes os escritores levam para dentro dos romances falsos que escrevem.
Anna era uma mulher baixa, suburbana, cabelo pintado de loiro (era morena). Falava de forma inculta e era este último elemento o que mais me interessava nela, quando me desligava dos sentimentos, julgando-me um distanciado cientista social. Depois, tentava arranjar uma desculpa esfarrapada para a minha frieza: talvez faça parte da nossa cultura, esta ansiedade por compreender a massa informe de povo que ainda há uma geração era camponesa e que permanece camponesa na alma.


O que me irritava em Anna era a maneira como pegava no cigarro, sem elegância; o baton barato que usava nos lábios, com demasiada cor; até o corte de cabelo, que lhe deixava madeixas espetadas. As conversas, a voz espessa e certos silêncios que pareciam ser de perplexidade, de quem não sabe o que dizer a seguir. Mas nunca reprimi estes obstáculos à intimidade, o que teria feito se ela verdadeiramente me interessasse; pelo contrário, quase os estimulava, para os observar melhor, como se Anna fosse uma actriz e eu o encenador do drama.
Às vezes, ela passava a noite no meu apartamento, mas nunca quis que isso se transformasse em hábito e certamente não foi o caso nas semanas da transição para a primavera, em que estava com os dois trabalhos, que serviam bem de desculpa para as minhas reticências. O amor é cruel, porque raramente tem a mesma intensidade ou fala a mesma linguagem nos dois sentidos e, por isso, faz sempre uma vítima, pelo menos uma, que no nosso caso era Anna. Ela não fazia cenas nem chorava, pelo contrário, parecia não se incomodar muito com a minha insensibilidade, aceitava a tirania suave, mas essa reacção era apenas parte da sua maneira estóica de encarar o mundo e as respectivas devastações. Um encolher de ombros que só chorava por dentro.
Quando terminei o conto (e levara-me cinco semanas) observei que havia um brilho de sol na janela; como já expliquei, as minhas duas janelas davam para nascente e, depois, tinha outra virada a norte, onde nunca batia a luz solar, mas apenas o seu pálido reflexo transmitido através da sombra. E achei fascinante rever aquela cor de prenúncio de primavera e, olhando melhor, via-se um azul do céu profundo, que parecia ter a espessura do universo inteiro, embora isso fosse enganador, era apenas a película delicada, da espessura de uma bola de sabão e para além da qual tudo era escuro e trevas. Saí nessa manhã mais cedo, em vez de escrever. Ainda estava a pensar num título e nesse primeiro passeio cheguei a uma boa conclusão. Fiquei junto ao Danúbio, ainda estava um pouco de frio e humidade, o sol iluminava o castelo e o casario de Buda, ao longo das colinas. A ponte, verde de bronze, parecia ferro em brasa. Decidi nessa manhã, julgo que era de início de Março, pôr um ponto final no meu caso com Anna e desenhava-se na minha mente uma conversa completa sobre o assunto, com palavras serenas, embora eu mal soubesse que ao sair da caverna onde hibernara me esperavam abundantes complicações, pois assim é o ritmo da vida, igual ao de um rio poderoso, com a sua corrente ao sabor do degelo nas montanhas, quase sempre sem novidades, a correr contido em margens, e em raras ocasiões, por dá cá aquela palha, a transbordar levando tudo à frente.     

publicado por Luís Naves às 20:11 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quinta-feira, 24.05.12

A arte do conto

Ao ser anunciado o Prémio Camões, pensei que desconhecia totalmente o vencedor, o contista brasileiro Dalton Trevisan. Afinal, tinha dois dos seus contos numa antologia na minha biblioteca e lera um dos textos, O Vampiro de Curitiba, prosa cheia de humor e com linguagem atrevida, brilhante.
A antologia tem por título Os Cem Melhores Contos Brasileiros e li a maioria dos textos, mas aparentemente passei ao lado do segundo conto de Trevisan que consta da colecção, Uma Vela por Dario.

O conto é ainda superior ao outro, de uma crueldade de tirar a respiração. Um homem de aspecto rico e bem vestido chamado Dario, que caminha pela rua, tem uma sincope e fica prostrado, perante o interesse crescente dos transeuntes. Em frases curtas, incisivas, o escritor conta como a multidão se alimenta do moribundo e, depois, do cadáver, numa mistura de indiferença e curiosidade mórbida. O homem é roubado, abandonado à sua morte, perde a identidade e classe social. Termina como simples corpo anónimo, quase indigno de pena. O conto é brutal e bastavam estas quatro páginas para mostrar as enormes qualidades do escritor.
A literatura portuguesa, infelizmente, não tem a tradição do conto. Os leitores não gostam de comprar livros com histórias curtas e os novos autores têm de se afirmar no romance. Não há publicações especializadas, como acontece em outros países, e mesmo os autores mais experientes evitam o formato curto, concentrando a sua arte em obras de maior fôlego.
A escrita de contos é difícil, a começar pela necessidade de ter uma ideia forte, criar atmosfera em poucas linhas, definir personagens em pinceladas quase invisíveis, inventar diálogos económicos e ainda um remate eficaz. Não há espaço para digressões inúteis, para figuras secundárias ou reflexões complicadas. Mais difícil ainda é conseguir a originalidade, um estilo pessoal, a linguagem certa.
Uma Vela por Dario tem tudo isto e ainda aquele elemento de golpe de asa sem o qual o conto era apenas interessante. No caso, é a vela que um miúdo descalço coloca ao lado do corpo de Dario, e que o vento apaga. Sem a vela do título, o texto perderia a força. O truque dos mestres é mais fácil de ver na pintura: com um dedo tapamos a pequenina mancha de cor ou o detalhe na composição e a obra de génio afunda-se na banalidade. Tiramos o dedo, vemos de novo o conjunto, e brilha um esplendor tremendo.

 

E eis que, ao procurar na net, encontrei aqui o conto.

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Sábado, 19.05.12

Dois ensaios sobre a arte contemporânea

Dois vencedores do Prémio Nobel da Literatura (Orhan Pamuk e Mario Vargas Llosa) escreveram recentemente pequenos ensaios, com a característica comum do estilo elegante e da riqueza de ideias.
O escritor turco publicou um livro já traduzido em português O Romancista Ingénuo e o Sentimental (Ed. Presença) que junta as suas conferências sobre literatura, na Universidade de Harvard. Estas conferências são uma velha série que já deu pelo menos um outro livro famoso sobre a arte da escrita, Aspects of the Novel, de E. M. Forster (este último escrito nos anos 20, é provável que esteja em português, mas só conheço a versão inglesa).
Julgo que o livro de Pamuk não é apenas sobre a escrita, mas sobre o prazer da leitura. O texto está repleto de observações acessíveis, nada pretensiosas ou demasiado técnicas. A certo ponto, o escritor explica como um dos seus prazeres na leitura de romances é o de tentar adivinhar aquilo que num texto é imaginário ou vivido. O autor explora de forma muito inteligente conceitos como a autenticidade, os jogos entre o real e o imaginário, a fragmentação e a noção de que os grandes romances têm um “centro”, enfim, chamem-lhe eixo ou núcleo, mais ou menos escondido e cuja busca é, para Pamuk, o essencial do prazer da leitura. “A escrita do romance, para mim, é a arte de falar de coisas importantes como se fossem insignificantes e de coisas insignificantes como se fossem importantes”, escreve o romancista na pág. 120 deste breve ensaio que não se esgota numa única leitura.


O peruano Vargas Llosa publicou entretanto em Espanha um trabalho, La civilización del espectáculo,  (Alfaguara) que certamente não tardará a ser traduzido em Portugal, pois é o seu primeiro livro escrito depois do prémio. A obra é bem mais pessimista do que a de Pamuk, tratando-se de uma reflexão sobre a degradação da cultura e o declínio dos intelectuais e das elites. “Na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda, tornando-se num bobo” (pág. 46), afirma Vargas Llosa, descrente da qualidade da literatura contemporânea e muito crítico da falta de originalidade e do excesso de niilismo nas artes. “Nos nossos dias, o que se espera dos artistas não é o talento nem a destreza, mas a pose e o escândalo, os seus atrevimentos não são mais do que as máscaras de um novo conformismo” (pág. 49).
O livro explora outros aspectos do quotidiano, da educação à política, a banalização do poder e das ideias, a superficialidade nas próprias relações humanas, o consumismo desenfreado. São amplamente citados e discutidos outros autores que exploraram esta ideia da civilização do espectáculo (a expressão não é de Vargas Llosa) e talvez o autor seja demasiado pessimista na sua visão de que a cultura está a ponto de desaparecer. Certas ideias foram exploradas pelo romancista peruano em crónicas antigas, algumas das quais são incluídas no volume. É inegável que, tal como diz Vargas Llosa, hoje triunfa o frívolo e o entretenimento, ao mesmo tempo que os intelectuais (como os concebemos no passado) se tornam invisíveis na nossa sociedade, desprovidos de qualquer influência. Enfim, este é um livro muito bem escrito e de grande clareza, cuja rápida tradução será bem útil.

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Sábado, 12.05.12

Melodrama

Dizem que as pessoas mudam antes de morrerem, mas pode ser mito. Os nervosos mostram-se mais compreensivos e são tomados por uma cúmplice serenidade; os filhos de puta tentam emendar os múltiplos pecados, como se pensassem que ainda é possível a redenção; aqueles que durante a sua vida nunca falaram, querem agora dizer a última palavra. Se isto é verdade, então a mudança pode não passar de uma forma de luta contra o tempo, sendo portanto inútil, pois o tempo vence sempre.
Cometi muitos erros na minha vida e, como qualquer pessoa, sonho por vezes na possibilidade de voltar atrás e de os reparar. Seria um risco enorme, eu sei. Uma pequena mudança naquele ponto da minha vida e tudo teria seguido de forma diferente. Entramos na porta da direita, em vez de entrarmos na da esquerda e a vida muda: e pensamos, por ali era melhor, sem sabermos a história toda, que a um início auspicioso se seguiria a catástrofe prematura.
Olho pela janela. Vejo as pessoas a passarem na rua. Os automóveis. Um vizinho. Este vizinho mora quatro prédios mais abaixo, mas não o via há meses. Caminha com passo incerto, as calças estão mal seguras, o casaco torto. Parece enregelado. Envelheceu de repente. Lembro-me; conheço-o há mais de vinte anos, muito antes de ter ido viver para o sul. Ele era crítico de cinema e imagino que esteja reformado, com uma pensão que mal paga a comida. E havia este filme americano, de Douglas Sirk, não me ocorre o título, e fiquei intrigado por haver tantas cenas em que um vento varria as folhas do chão. Era tão frequente, que se tornava quase uma banalidade; e discuti isso com aquele homem que agora passa na rua (era um festival qualquer e eu era apenas espectador e o grande crítico estava a falar para um grupo de estudante e atrevi-me a dizer aquilo, se ao menos Sirk tivesse usado o truque kitsch uma única vez, então teria sido mais eficaz, e o homem olhou para mim e sorriu com ar superior e explicou-me a natureza profunda do melodrama e que o efeito de repetição, pelo contrário, sublinhava o lado poético da metáfora). Não terão sido estas as palavras exactas, suponho, mas era este o sentido. A minha memória é insuficiente para preencher as lacunas, já nem sei o nome do senhor.
Sei que há um vento cortante e que, na ausência de folhas nas árvores, são as folhas de jornal e outros lixos que o vento arrasta. O homem de passo incerto, as calças mal presas a arrastarem pelo chão, a cabeça descoberta, madeixas de cabelo branco a esvoaçarem, e quatro folhas soltas que passam ao lado do vulto envelhecido, revolteando aos turbilhões, desaparecendo para lá do ângulo da minha janela. E o vizinho também passa, levando às costas a sua metáfora de melodrama, e deixo por instantes de ver pessoas na rua.

publicado por Luís Naves às 21:12 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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