Quarta-feira, 27.06.12

A poderosa selecção espanhola

Não imagino como seria há 50 anos. Os leitores portugueses conheciam certamente alguns autores espanhóis do seu tempo, mas estes não teriam a importância que os romancistas espanhóis vivos têm hoje.

Portugal entretanto ligou-se à Espanha: viajar é fácil, vemos os seus jogos do campeonato, o mercado é ibérico, os produtos de supermercado, a energia, a banca; e cada vez mais lemos os seus livros. As editoras espanholas dominam, trata-se de uma possível explicação para o fenómeno, mas não chega: em Espanha, surgiu nas últimas décadas um grupo de romancistas de alta qualidade e Portugal rendeu-se a esta literatura. A selecção espanhola é provavelmente a mais forte da Europa, hoje em dia. Alguns dos escritores são quase familiares em Portugal e a sua obra é um verdadeiro milagre.
É o caso do catalão Enrique Vila-Matas (na imagem). A leitura de Ar de Dylan, que levo a meio, confirma os pontos que julgo serem mais fortes neste autor: a imaginação frenética, os jogos mentais, a definição das personagens, as incursões filosóficas, a profundidade das ideias, a simplicidade do estilo associada a uma construção complexa, também as pequenas histórias dentro da história, que julgo ser uma das marcas dos grandes prosadores. Vila-Matas usa constantemente referências cinéfilas e literárias, pega em pequenas frases, em paisagens urbanas, truques dos policiais, e cria expectativa, levando o leitor a um universo original com a forma de labirinto.
É interessante perceber como se encontram elementos comuns em alguns dos grandes escritores espanhóis vivos. A obsessão pelo encantamento do cinema, por exemplo, que também encontramos em Juan Marsé ou Javier Marias; a ferida aberta da guerra civil, que todos abordam, mas estou a lembrar-me em particular do extraordinário livro de Javier Cercas, Soldados de Salamina, ou do mais recente de Antonio Munoz Molina, A Noite dos Tempos. Os autores exploram muito bem a inocência da infância e a memória, veja-se O Mundo, de Juan José Millás, que é um contista notável; ou a ideia do fracasso, sendo que este último tema percorre a obra de todos os mencionados. Há outra coincidência: à excepção de Marsé, escrevem regularmente no El Pais, no suplemento Babelia, na revista de domingo ou no próprio jornal. Os prosadores espanhóis são cosmopolitas, globais, ligados à tradição, cronistas com opiniões políticas.

A selecção espanhola de romancistas inclui vários nobelizáveis e não me admirava se Javier Marias ganhasse o prémio Nobel, após a publicação recente do ambicioso Tu Rostro Manaña. É também engraçado que este autor considerado difícil escreva regularmente sobre futebol. Uma última palavra para Molina, que tem prosa melancólica, menos fantasista do que a de Vila-Matas, mas com boas histórias e personagens bem construídas.

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publicado por Luís Naves às 13:42 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quinta-feira, 21.06.12

Da estupidez

Neste magnífico artigo fala-se de um fenómeno mal conhecido, a estupidez das pessoas inteligentes, que nos ajuda a compreender boa parte deste mundo. Trata-se aqui do estudo do que parece ser a preguiça mental de pessoas reconhecidamente espertas e que, perante um problema que julgam ser simples, respondem da forma fácil, como se os seus poderes de análise fossem temporariamente desligados. Gosto em particular da frase (tão estúpida) do filósofo citado: "Não estou interessado na psicologia da estupidez".
E, no entanto, a estupidez parece dominar a maioria das discussões. A frase pedante que cala a objecção, a banalidade dita com confiança, a falta de ideias na rotina, a imitação que papagueia noções alheias, a certeza teimosa. A ciência tenta estudar esta pressa que paralisa a mente, mas na literatura este é um tema muito explorado. Estou a lembrar-me do grande escritor checo Bohumil Hrabal (1914-1997), que pegou no assunto como poucos.


A obra de Hrabal vem na tradição de Franz Kafka, do soldado Svejk (personagem de Jaroslav Hasek), dos contos de Tchekov, mas também do humor centro-europeu que tão bem retrata os absurdos daquela sociedade. Hrabal é hoje um autor influente, pelo menos na Europa Central, por ter captado a essência estúpida dos regimes totalitários comunistas do leste. Ele não era um escritor político de forma expressa, limitou-se a inventar personagens embrulhadas em situações ambíguas, regras tontas, azares totais, falhanços incríveis.
Hrabal estava fora do sistema literário, pois nos textos que tentou publicar, a partir dos anos 50, não havia proletários generosos ou capitalistas perversos. Era realismo, mas sem o socialista. Tal como a vida, as suas histórias eram uma mistura de tragédia, comédia, tédio e exaltação, numa sequência de pequenos episódios de aparência autêntica e vivida. O autor escreveu numa época muito difícil, quando o conformismo era a única forma de publicar; época de repressão onde a mínima dissidência reduzia as melhores mentes do país a trabalhos braçais que condenavam ao esquecimento. Era uma espécie de enterro em vida.
Também forçado à marginalização intelectual, Hrabal publicou quase toda a sua obra em samizdat, em edições clandestinas e de baixo custo que circulavam apenas entre os conhecedores. Os textos eram curtos e incisivos, a clandestinidade assim o impunha. A prosa era desprovida de ornamentos ou complicações, sempre muito visual e repleta de associações de ideias. Hrabal tinha fama de alcoólico e passava dias numa cervejaria favorita. Diz-se que não falava muito, que passava o tempo a ouvir as histórias dos outros, afinal a matéria-prima dos escritores.
Infelizmente, este grande checo não é muito conhecido em Portugal. Estão publicados pelo menos Eu Servi o Rei de Inglaterra, Comboios Rigorosamente Vigiados e Uma Solidão Demasiado Ruidosa. Haverá outros títulos. Não sei se está traduzido A Pequena Cidade Onde o Tempo Parou.

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publicado por Luís Naves às 12:49 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Segunda-feira, 11.06.12

A imensidão

O mais difícil é começar. Podia contar-vos como eram mágicas as florestas e serenas as margens dos rios sussurrantes; podia falar da crueza do deserto e do céu cheio de estrelas e e das ondas marinhas desenhadas na areia e que o Sol iluminava, fazendo brilhar uma estrada de ouro, em carícias ao longo das dunas. Mas talvez seja erro meu, lembrar o passado com cores intensas, como se fosse uma tela antiga e vagamente irreal. Provavelmente, observo os dias com menos exactidão, pois eles não têm consistência e, por isso, o que observamos já não parece ser do mundo verdadeiro.
O passado é um sonho; de aventuras, de corpos amados; de cidades maravilhosas, cujos telhados resplandeciam; de risos e falas estranhas, de línguas distantes, de mistérios e viagens na bruma, enigmas em desordem.
Por vezes, aborreço-me, sou tomado por uma nostalgia daquilo que vivi e vi viver; da praia vazia onde naufraguei, daquela rapariga que me sorriu num mercado oriental, tão devastadora como um exército invasor.
E, na casa, à noite, a madeira range e lembra o murmúrio delicado das velas que o vento arqueava  (os panos produziam leves ritmos doces, quando se soltavam o cordame e a água deslizava no fundo do barco, como faziam os delicados rios da minha infância). A lareira apagada estala da mesma forma, num turbilhão secreto, de brasas adormecidas debaixo da cinza.
A existência é fria, mas as minhas lembranças ainda ardem.
E havia aquele fundo laranja de um fim de tarde tropical, na mansidão dos reflexos, as vagas preguiçosas que se derramavam na areia quente, enquanto uma brisa agitava as nervosas folhas das palmeiras.
E quando observo os restos do que me rodeia, pareço-me com essas brasas que se recusam a dormir, sempre agitadas num desassossego.


Lembro as caravanas que saíam de Fort Laperrine e serpenteavam, vagarosas, na delirante paisagem das montanhas Hoggar, na alucinação da sede e na proximidade da morte.
As filas de camelos eram minuciosas, como carreiros de formigas, entre os imponentes maciços de pedra, que pareciam jardins de estátuas esculpidas por uma civilização perdida. Depois, as caravanas passavam através dos Wadis, produzindo ecos iguais a conversas de deuses. Os animais subiam e desciam ravinas que a luz do crepúsculo pintara da cor do ferro. A marcha fazia-se em silêncio, cada viajante mergulhado na solidão dos seus pensamentos. E, por vezes, surgiam tempestades súbitas (nuvens negras deslizavam do nada e caíam relâmpagos e os camelos espantavam-se, descontrolados); os barrancos tornavam-se armadilhas; rugiam enchentes, muros de água, e perdiam-se vidas.
O último posto militar antes do planalto chamava-se Arrem Tazerouk. Era uma aldeia semelhante às outras do Bordj, onde as casas mais parecem a continuação da terra morta. A povoação ficava num ponto elevado, de onde se tinha a perspectiva completa do vale. Era uma espécie de vereda estendida como um tapete até ao horizonte, a bigorna onde o sol partia lentamente a pedra branca.
A minha caravana era guiada por um nómada chamado Ibn Guezzam, que me pedira para manter sempre o disfarce de beduíno, por causa dos rebeldes. Montámos o acampamento nas imediações do forte francês e a guarnição de soldados observou a nossa azáfama com interesse disperso.
Podia ter ficado junto a Guezzam, mas ao ver a figura do oficial francês, que passeava sozinho na muralha, a silhueta recortada contra o céu desprotegido, olhando a distância como quem observa o mar, senti necessidade de falar com alguém e aproximei-me, revelando a minha identidade.
O capitão chamava-se Zinderneuf e pareceu contente de encontrar ali um europeu.
     “Finalmente, alguém que pode compreender”, disse ele.
     “Compreender o quê?”
     “Isto”, apontou, com um gesto que abarcava o mundo. “O vazio da existência”.
Contou-me como tinha procurado o posto militar mais afastado, o derradeiro, o mais próximo do nada. Implorara para que o enviassem para o forte mais frágil, o menos defensável do deserto.
     “Sinto que toda a minha vida se desenrolou para culminar num único instante, que está iminente”, afirmou.
Zinderneuf pediu-me para ouvir o assobio lúgubre do vento, que se elevava na noite. Ficara de repente demasiado escuro e víamos a poeira das estrelas:
      “Nunca antes tinha percebido a palavra destino”, prosseguiu Zinderneuf. “Cem mil pormenores aleatórios conjugaram-se para que eu estivesse aqui, exactamente hoje, quando um exército inimigo se prepara, naquelas montanhas, para dar sentido à minha vida. Um número impossível de acasos me trouxe a este lugar, numa sequência tão incontável como os grãos de areia do deserto ou do número de estrelas no firmamento. Veja bem, algo me arrastou, como se eu fosse uma simples molécula de água num rio infinito. E naquelas colinas escuras está um homem que ainda não sabe que o sentido da sua própria existência será tirar-me a vida a mim, o que é apenas possível por estarmos neste ponto exacto do espaço e do tempo”.
Conversámos durante mais algum tempo, mas apenas banalidades. Ele contou-me que não tinha família e que não lhe interessavam as memórias e o passado. Queria meditar, disse, e mandou-me sair, regressar ao deserto, para poder viver.
    "Você também é uma parte improvável deste acaso".
Depois, despediu-se com um forte aperto de mão:
     “Tudo de repente faz sentido. O universo inteiro”, afirmou Zinderneuf.

Na manhã seguinte, o capitão deu ordens aos seus homens para expulsarem a minha caravana das imediações do forte.
Partimos e, quando atravessávamos as montanhas, num sítio chamado Oued ta Zoulet, encontrámos o exército tuareg que ia atacar Arrem Tazerouk. Deixaram-nos passar, sem suspeitarem que eu era europeu.
Soube mais tarde que entre os franceses que defendiam o forte não houve sobreviventes.

 

O conto é antigo, inspirado em Beau Geste (de onde tirei a imagem), Morocco e Atlântida. Fiz uns cortes.

publicado por Luís Naves às 19:14 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quarta-feira, 06.06.12

Um raro original

De Ray Bradbury gosto sobretudo dos contos de ficção científica, género que forma apenas parte das suas coleções de contos. Segundo anunciou hoje a família, o escritor americano faleceu aos 91 anos. Ao longo da vida, escreveu numerosas histórias de fantasia, explorou outros territórios, a sua obra é vasta e diversificada. Farenheit 451 marcou-me e também gosto muito do filme de François Truffaut do mesmo título (na imagem), mas prefiro O Homem Ilustrado, embora o meu coração balance com As Crónicas Marcianas.
A imaginação delirante, o estilo poético, a concisão da prosa, estes são alguns dos aspectos mais poderosos de Ray Bradbury, mas é interessante notar que existe em pano de fundo uma crítica em relação ao mundo tecnológico em que vivemos. O autor não acreditava nos benefícios automáticos das inovações e, acima de tudo, não acreditava na desumanização que acompanha muito do progresso a que assistimos. Disse isso em várias entrevistas, que nos devíamos libertar da tirania das máquinas à nossa volta, o que não deixa de ser curioso num especialista em ficção científica.
Algumas histórias são sobre a alienação humana, tão visível no nosso moderno défice de atenção. Em Farenheit 451, os livros são destruídos devido ao perigo das ideias complicadas que contêm. A perda da memória não é lamentada nessa civilização distópica, pelo contrário, trata-se de uma consequência vantajosa, pois a complexidade implica conflito e deve ser combatida.
Bradbury não antecipou a realidade e hoje não há bombeiros em busca de livros subversivos, mas a cultura tornou-se num corpo estranho, pois o mundo em que vivemos anda baseado no efémero e no superficial. A complexidade dá indesejáveis dores de cabeça, por isso protegemos as nossas crianças de pensarem demasiado. É uma forma de mundo novo em que não se queimam livros, mas onde estes se tornaram vagamente obsoletos.
Num dos contos de O Homem Ilustrado, há uma máquina que fabrica um mundo virtual que acaba por se transformar em realidade. Antecipação dos jogos de computador onde tantos adolescentes passam horas a fio, as famílias transformadas em incómodo, na confusão entre os dois planos. A tecnologia infiltrou-se em toda a nossa vida, impedindo ou dificultando o pensamento profundo que determina a verdadeira originalidade. Num mundo caracterizado pela obsessão daquilo que é novo, Bradbury era um raro original.

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publicado por Luís Naves às 19:23 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Navegações

Tem toda a razão, o João Tordo, no que escreve neste post. Infelizmente, o contemporâneo é desprezado pelos intelectuais, apesar de ser sobrestimado pelos media, sendo esta última frase um acrescento meu. À cultura do efémero não interessa o clássico e às elites só interessa o clássico. O ponto é bem interessante. Julgo que uma das razões para o problema levantado por João Tordo tem a ver com a dificuldade de interpretar as obras contemporâneas e a elevada probabilidade do intelectual não perceber a relevância de uma determinada obra (ou falta dela). 

No seu excelente blogue Horas Extraordinárias, Maria do Rosário Pedreira tem feito muito pela divulgação do trabalho de novos autores. É uma referência na blogosfera.

Em O Escafandro, José António Abreu escreve sobre Praga. Muito interessante.

O autor faz parte da equipa de Delito de Opinião, um dos blogues excelentíssimos, e de onde destaco esta análise de Pedro Correia.

Luís M. Jorge é outro dos autores do Delito, mas pode ser lido aqui a solo. Vida Breve, um blogue que costuma ser impiedoso em relação às nossas hipocrisias e omissões.

 

publicado por Luís Naves às 11:11 | link do post | comentar
Terça-feira, 05.06.12

Joszef Varga saiu de casa às 8 e 15

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Os vizinhos disseram que Joszef Varga saíra de casa por volta das oito da manhã, mas em notícia publicada no jornal Liberdade do Povo, uma testemunha precisava a hora e o minuto, 8 e 15, assinalando que há velhos hábitos de vigilância que custam a passar no nosso país. Aquele fora um amanhecer de final de inverno, com o vento ainda frio e teimoso que preserva a neve da véspera, tornando os pavimentos escorregadios. Nas horas iniciais do dia, de azulado uniforme, uma bruma húmida aconchegara a cidade, mas dissipou-se devagar, até a atmosfera ficar translúcida. E, a pouco e pouco, o sol instalou-se, aquecendo o dia manso. As águas do Danúbio corriam para longe, numa inquietação.
Varga vivia sozinho. Era uma figura magra, curvada e austera, de ar distinto, com pobreza escondida. Naquela manhã, vestia um sobretudo escuro e tinha na cabeça um antiquado chapéu de abas e ao pescoço um cachecol de padrão escocês, aos quadrados azuis e verdes, quase tão vivido como quem o vestia. Tinha pouco mais de 70 anos, mas parecia mais novo, talvez por causa do nariz grande, deformado, e do cabelo cortado curto. Sorria pouco. No conjunto, o seu aspecto era capaz de assustar crianças e intimidar quem lhe faltasse ao respeito. Naquele dia, não dirigiu a palavra a nenhum conterrâneo, mas esse era o seu hábito. Nem cumprimentou as duas idosas que saíam para as compras, o que elas não estranharam, conforme mais tarde confessaram a um dos repórteres que andou por ali a farejar o caso, porque era assim o comportamento habitual dele, do vizinho mal-encarado que lhes calhara em sorte; hoje em dia, como explicaram, há cada grosseirão nas casas de painel de rendas camarárias; famílias disfuncionais, pré-reformados inúteis a viverem de biscates e expedientes; perdeu-se todo o respeito, salientou uma das idosas, e o jornalista encolhia os ombros, a pedir algum detalhe mais picante e que não fosse do conhecimento geral dos leitores. E o seu vizinho recebia visitas, enfim, percebe o que quero dizer, visitas femininas? As velhotas reagiram escandalizadas: isto é um bairro decente, por quem nos toma?
O bairro é uma amálgama de edifícios desse estilo socialista, afinal sem estilo nenhum. Os prédios são todos iguais, cinzentos como um céu de chumbo, e as janelas, parecendo grandes, acabam por lhes conferir um aspecto geral de cubos invernais sobrepostos, cada um com o seu drama particular lá dentro. Estacionados em frente, ainda se avistam alguns dos carros socialistas, Trabants ou Zastavas que não se fabricam mais e cujas silhuetas evocam uma espécie de arrepio, quando por um instante nos fazem regressar ao passado. 
Na manhã de que falo, nos acessos entre os prédios, havia uma lama congelada que se misturava com rastos de neve suja. Para se encontrar alguém que tivesse trocado algumas palavras com Joszef Varga era necessário ir até à estação de Kispést, com a sua confusão de gente apressada e de impaciência mal dormida. É ali que se pode apanhar o metropolitano da linha número dois, que aparece a azul nos mapas da cidade e que corresponde ao percurso mais suburbano. As carruagens antigas, de fabrico soviético, estão num estado lastimável, cobertas de grafitos, pintadas de alto a baixo com estranhas mensagens em linguagens futuristas. Circulam cheias de sujidade, quase desconjuntadas. E o cais da estação está tão imundo como o resto do país e assim está também a paragem de autocarros e o passadiço erguido sobre a estrada, edifício de arquitectura absurda, dos anos 70, de modernismo comunitário, feio como a noite, e que pintaram num vermelho berrante; ali há alguns pequenos cafés em cubículos infectos, a banca de jornais e revistas, umas mercearias para celibatários, com os seus empregados sempre desconfiados de quem entra nelas.

 

Iniciamos a publicação parcial de uma novela de Lajos Kormanyos, traduzida do húngaro por Luís Naves.

publicado por Luís Naves às 23:09 | link do post | comentar
Segunda-feira, 04.06.12

Maurice Ravel, Concerto de Piano, 2º andamento (Adagio)

Celebração do crepúsculo, céu em fogo, telhados de ouro. Foge a luz, pairam vaga-lumes efémeros e lá no alto espalham-se brasas de carvão ardente como algodão cor-de-rosa na brisa de Agosto. É a hora dos gatos à solta, paredes-meias com os becos cheios de sombra, das conversas à beira-rio, da melancolia a meia-voz e do tédio fatigado, das pequenas contemplações do universo. A hora dos abraços tenros e do adeus cheio de saudade, a hora irisada dos sofredores e dos melancólicos, mas também das nuvens de fumo que dançam no ar, com fantasia.
Nos bairros populares há um vislumbre das roupas estendidas nos varões, pontos brancos a esvoaçar, desvanecendo-se na cinza geral da luz mortiça que invade o mundo. Os jardins coloridos já adormeceram e nascem as primeiras estrelas, muito lá em cima, antes do artifício branco da Via Láctea. Há poeira e leveza de cristal e chega a noite.
A cidade acende as luzes, devagarinho.

 

Aqui

(Acho uma obra-prima, de Ravel, do séc. XX, da Civilização Ocidental)

publicado por Luís Naves às 17:53 | link do post | comentar

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