Quinta-feira, 30.08.12

Escolhas e História de arte

No início da década de 90, liguei o televisor de um quarto de hotel em Espanha. Não me lembro do ano exacto, mas os socialistas ainda estavam no poder e o PP preparava-se para ganhar eleições pela primeira vez. O desemprego andava nos 20%.
Nessa noite, vi um documentário sobre um pintor espanhol que na altura teria os seus 30 anos. Fiquei impressionado com a qualidade da obra. O pintor chamava-se Miquel Barceló e hoje é um dos grandes artistas mundiais.
A certo ponto, discutindo as influências, os entrevistadores perguntavam a Barceló as razões do seu interesse pelo neo-expressionismo alemão. E a resposta foi brilhante: "Cada pintor faz a sua própria História da Arte", disse Barceló. Interpreto a frase como o gosto desproporcionado por certos movimentos, em vez de outros, porventura mais importantes para os historiadores de arte.

 

Lembrei-me disto ao ver a lista do Expresso dos 50 livros de um cânone literário, que pode ser consultada no blogue de José Mário Silva, Bibliotecário de Babel, e deste texto de Vasco Graça Moura, no Diário de Notícias, baseado parcialmente no primeiro. Li apenas 30 livros da lista do Expresso, menos de metade da segunda lista.
Além de Camões, é interessante verificar a ausência de A Peregrinação nas escolhas do Expresso. Escrito alguns anos antes de D. Quixote, este livro sempre foi subestimado, por o considerarem crónica de viagens e biografia. Mas como é possível que um viajante não consiga acertar em nomes geográficos? E, para biografia, falta-lhe a verosimilhança. Biografia escondida, talvez, mas nenhuma vida tem uma estrutura tão limpinha: pecado, expiação, redenção. E se fosse uma espécie de romance baseado em experiências vividas? Alguém deixaria fora da sua lista este livro?

 

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publicado por Luís Naves às 17:17 | link do post | comentar
Quarta-feira, 01.08.12

O degelo de Abril

Fiquei desiludido por não encontrar Ermei Lismanki, como acontecia todos os três meses. Ele é um finlandês de cabelo branco e nariz proeminente, a rondar 60 anos: imagino como seria Cyrano de Bergerac idoso: em vez do falador insaciável, com gestos amplos para sublinhar argumentos e a espada fácil a trespassar quatro ou cinco patetas, em vez disso tudo, uma espécie de sábia lentidão, sendo que a única discrepância com o que imagino é a roupa moderna. Lismanki veste-se de forma negligente, mas é daquelas figuras que enchem qualquer sala, sem parecerem fazer esforço para encantar estranhos ou para criarem uma imagem que não corresponda a eles mesmos. Há naquele tipo de indivíduo uma autenticidade que hoje começa a faltar nas pessoas normais, preocupadas que estão em fazerem uma espécie de teatro da vida, onde vestem as roupas dos outros, representam a atitude dos outros e dizem as palavras dos outros.
   Antes de lhes falar do meu amigo, devo explicar que sou jornalista e que todos os três meses faço, para o meu jornal, a cobertura de cimeiras europeias, em Bruxelas. A sala de imprensa distribui-se por três pisos, naquilo que mais parece um bunker confuso, de corredores estreitos e labirínticas escadarias mal iluminadas. Centenas de jornalistas de muitos países empurram-se e acotovelam-se naquele lugar fechado e, durante dois dias, tentam perceber as decisões dos governantes, entre momentos de excitação colectiva, mas também de tédio, com esperas intermináveis que se consomem a olhar para o avanço do relógio (a boa distância, o jornal tem de fechar as páginas). Enfim, tudo isto estará longe do que se espera das organizações políticas influentes, mas asseguro-lhes que é inteiramente assim.

   Conheci Ermei Lismanki há um ano, numa destas cimeiras. Ele sentara-se na mesa ao lado da minha: instalou o portátil, sorriu para mim, fez um gesto polido com a cabeça, depois mergulhou numa escrita frenética, em língua que, pelo canto do olho, reconheci como sendo a finlandesa. No segundo dia, repetidos os gestos, ao vê-lo tão embrenhado, não resisti à mudez que se instalara entre nós (quando duas pessoas estão caladas, é sempre a mais fraca de ânimo quem fala primeiro). Sinal de fraqueza, talvez, não resisti à guerra fria do silêncio e travei o caudal da sua escrita. Estávamos ombro a ombro, apresentei-me, falando em inglês. Para minha surpresa, ele respondeu com enorme simpatia, interrompeu o que fazia, reclinou-se na cadeira e, depois de me olhar profundamente explicou-me a tarefa a que se entregara. (Tenho dificuldade em explicar o que é um olhar profundo, mas penso que cada um de nós o reconhece, ao sofrer a sua cirúrgica acção).
   - Enquanto espero, vou escrevendo por aqui umas histórias minhas -, disse Ermei Lismanski.
   - Ah! É escritor?-, perguntei, porventura reflectindo no tom de voz e na expressão desdenhosa o habitual desprezo que todos nós, jornalistas, sentimos pelos colegas de profissão que se armam em escritores.

publicado por Luís Naves às 17:20 | link do post | comentar

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