Quarta-feira, 31.10.12

Rumo incerto

Naquele momento, observou através da janela a transformação das nuvens que deslizavam sobre o rio cor de cinza. Viu a sombra das pessoas que passavam, os rostos anónimos, as caras crispadas, os corpos prolongados no fim de tarde, sonâmbulos.
   A cidade cansada, de tantas vidas que ali se cruzavam, dos muitos sonhos e das existências dispersas. Cansada de tudo o que cada um desperdiçara das suas ambições. Cansada do conformismo e das ilusões que serviam de máscara. O cansaço de ver em demasia, à distância, através da vidraça suja pelo vento.
   O rio de gente não terminava. Havia destroços à deriva, poeira. A corrente era feita de fadiga apressada. As sombras, afugentadas pelo lusco-fusco tardio, espalhando-se em gestos dóceis. E, a certo ponto, irrompeu a luz na praça, a em vão se contrariava a noite, mas apenas com o efeito de aumentar os reflexos melancólicos no vidro.
   O senhor doutor quer outra dose?
   Aceitou em silêncio, com um único gesto da cabeça, olhando na direcção do empregado, como se o visse pela primeira vez. O empregado encheu de novo o copo que ele já esvaziara, foi generoso na porção, e colocou dentro ainda duas pedras de gelo, dizendo com falsa alegria que ele queria sempre duas pedras de gelo na bebida. Achou curioso que até os empregados de mesa se agarrassem a padrões inexistentes. Que estaria o empregado a ver? Um homem sentado a uma mesa a olhar para o tampo, ou a olhar para o copo ou para os transeuntes além da vidraça. E lá fora, no exterior, deambulavam sombras em busca de qualquer coisa indefinível, formando padrões que davam desordem ao mundo, circunstâncias banais, desejos, gestos, entoações, frases favoritas.
   Que veria aquele empregado, para além de um homem na sua solidão, embrulhado em problemas íntimos? O reflexo de alguém passado, as amargas desilusões secas na garganta. Seria apenas isso que ele via ou ainda menos? Como se cada homem fosse uma soma de incógnitas e de momentos falhados.
   E, agora, para onde iria? Ao pensar no vazio da sua casa teve um arrepio. A escuridão, o frio. Nenhum sorriso o esperava (os gatos não sorriem). Sim, o Gordo estaria à sua espera, feliz de o rever, mas era um gato meio maluco.
   O que pensam os animais irracionais?
   Quer mais alguma coisa, doutor?
   Não quero mais nada, João, apenas a conta…
   Que recebeu num pequeno prato. Pagou, com gorjeta generosa. Até compramos sorrisos!
   O empregado sorriu, desejou-lhe boa noite. Saiu do café triste e na rua juntou-se à multidão que deslizava. Decidiu não descer para o metropolitano e por isso caminhou até às ruas laterais, onde havia menos transeuntes. Estava uma noite fria e a cidade escondia-se nas suas torres de pedra, cada qual com o seu xadrez de luzes. E foi ao ficar mesmo sozinho que se sentiu pequeno e frágil, uma vida de rumo incerto.

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publicado por Luís Naves às 19:30 | link do post | comentar
Domingo, 28.10.12

O gordo joga à baliza

O campo era ligeiramente inclinado, a favor de quem jogasse do lado da linha de comboio, que passava ali a cem metros. Quando chovia, transformava-se num lamaçal e formavam-se pequenas lagoas castanhas. As balizas começaram por ser marcadas com pedras grandes e tínhamos de imaginar os postes. Os limites do campo foram desenhados por uma cicatriz direita, escavada na terra e um dos lados era a cerca do liceu, em arame, e que alguém mais pragmático tinha levantado, para todos poderem passar. Depois, arranjaram duas vigas redondinhas e altas para as balizas e prenderam um fio com duas latas em cada ponta e estas batiam muito nos postes quando havia vento, fazendo um barulho fantasmagórico.

   Para dizer a verdade, eu nunca jogava. No máximo, acompanhava os outros miúdos e apanhava as bolas, sempre a mendigar um lugar na equipa. Não era mais novo do que os outros, apenas mais pesado e lento. Ficava fora do campo a mandar bitaites e até me toleravam porque era bom aluno a matemática e ajudava-os nos problemas, isto quando havia aulas, pois nesse ano de 77 o liceu da Amadora ainda andava um bocado confuso. Foi o último ano de erre-ge-ás permanentes, mas quem ia para o campo de futebol não se interessava por política, antes pelo contrário, pertencíamos a uma fauna à parte, ainda no limbo entre as brincadeiras infantis e os primeiros namoros.

   O melhor jogador da turma era o Petróleo, um de cinco irmãos mulatos que moravam na praceta dos Crisântemos, na Reboleira. Era retornado e jogava de avançado, fazia daquelas fintas manhosas que os miúdos odiavam e levou muito soco à conta da sua habilidade. Ele e o irmão mais velho chegaram a entrar no Estrela, na equipa principal, mas o Manuel (assim se chamava) nunca saiu do banco. O Gonçalo, que era o capitão das equipas da turma, também chegou a tentar o futebol profissional, mas não teve sorte. Na altura, ele disse que o mister não fora com a cara dele.

   No primeiro ano do liceu (julgo que agora se chama sexto) era preciso aproveitar cada furo para ocuparmos o campo, pois o jogo acabava mal chegassem os alunos das turmas dos últimos anos. Até sermos enxotados, tínhamos o campo à nossa conta: sete de cada lado e ainda me lembro de alguns dos jogadores, entre os vinte que apareciam em cada jornada. O Osvaldo era um bocadinho gago e jogava e extremo, porque chutava com o pé esquerdo; foi para física e é professor de liceu; perdeu a gaguez. O João Afonso, um miúdo grande que jogava a defesa; morava no prédio ao lado do meu, na praça 1º de maio; teve uns problemas com a polícia e emigrou para Inglaterra. Havia outro João, que não jogava sempre, mas era bom aluno e deixava copiar; acabou Direito. E lembro-me de um miúdo louro, que já naquele tempo as miúdas adoravam; agora, tem uma loja de eletrodomésticos num centro comercial, perto da Amadora; na altura, jogava com estilo e gesticulava imenso, mas estava sempre a poupar-se em campo. Só para mim não havia lugar, nem para suplente.

   Um dia, deixaram-me entrar no campo, porque um dos miúdos coxeava, mas fiquei com a sensação de que as pernas se prendiam ao solo. Queria correr, mas não conseguia. Saltitava perdidamente, a vigiar a minha zona, a rezar para que não corressem por ali. De repente, alguém lançou a bola na minha direção, mas era quase no gozo, por ficar uns metros demasiado longe e ainda tentei lançar-me, mas não cheguei a tempo. A bola foi para fora. Simulei um gesto de impaciência, a imitar o Yazalde, apontando com os dois braços para o chão em frente aos pés, as palmas das mãos para fora. Queria dizer que o passe não fora perfeito. Mas os miúdos riram-se de mim.

   Não demorou muito e aconteceu outra desgraça: às tantas, vinha o Petróleo a fugir e levava a bola com ele, nem me fintou, foi só correr pela avenida livre de obstáculos e ficou em frente à baliza, com um golo fácil. Ainda tentei a perseguição, mas só dei quatro passos e já me era impossível respirar. Ouvi logo a sentença.

   "Gordo, ficas a apanha-bolas".

   Mandaram-me sair e reentrou o lesionado, que mesmo com o pé a doer corria mais do que eu. Lembro-me bem do tom autoritário que o Gonçalo usou e nem dava para argumentar, pois a bola pertencia-lhe. Recebera-a no Natal, era em couro, das autênticas. Dava-lhe o direito de fazer a primeira escolha da equipa, mas também decidia sobre quem jogava nos adversários, sempre os mais fracos do lote.

   A minha carreira futebolística devia ter ficado por ali, mas não era ainda o tempo de me dedicar aos estudos. Podia ter desistido naquele dia, mas isso só aconteceria meses mais tarde. Queria jogar, para ser parte do grupo e não ficar sozinho. Os que nunca viveram em solidão às vezes não entendem bem isso.

   Dois anos mais tarde, namorei com a irmã do Gonçalo e conheci-o melhor nessa altura, quando tinha uns 17 ou 18 anos. A Joana era magra e nervosa, no fundo parecida com o irmão, que era um rapaz espigado e alto, impertinente nas aulas e que se distinguia por não ter mais nada de especial, exceto a bola mesmo à séria, o brinquedo caro que todos lhe invejavam. Foi assim mesmo como estou a contar.

 

 

 Conto publicado no DN, no suplemento QI

publicado por Luís Naves às 17:42 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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