Segunda-feira, 31.12.12

O café da estação

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A senhora Matuska olhou-me com o gesto dos míopes, num esforço da vista, medindo o meu aspecto como se dissesse, baixinho, que as minhas intenções eram suspeitas. Mostrei-lhe o meu cartão de visita, que tem umas decorações sugestivas, e depois um recorte de jornal onde constava uma grande fotografia de Joszef Varga. Ela perguntou-me se eu era jornalista e respondi-lhe que não: embora escrevesse em jornais, era na realidade escritor. Foi ainda pior do que confessar a um membro da máfia albanesa que era membro honorário da polícia judiciária.
   “Então, não estou a ver qual possa ser o seu interesse no caso”, disse ela.
   Tive de recorrer à mentira acrobática:
   “Conhecia pessoalmente o senhor Varga”, (e isso era verdade) “e vou escrever um livro sobre ele (mentira) e queria saber todos os pormenores daquele dia, com quem falou e o que disse na ocasião, (verdade) por causa do rigor que pretendo imprimir ao livro” (imprecisão, evasiva, mentira).
   Fui apenas meio credível. Sabendo do gosto de Varga por café pela manhã, era possível, até provável, que ele pudesse ter parado ali e conversado um pouco, antes de seguir no seu passeio de pensionista. Para mim, era fácil imaginar aquele idoso alto e curvado, de sobretudo e chapéu, a entrar no pequeno estabelecimento da senhora Matuska, uma mulher que já tivera sem dúvida os seus tempos de glória. Dizer uma graça ou simplesmente esperar que ela fizesse a despesa da conversa.
   A mulher observou atentamente a página do jornal. Recordava-se do caso.


  

publicado por Luís Naves às 18:18 | link do post | comentar
Sexta-feira, 28.12.12

O poeta morto pelos seus maus versos

O único poeta que consta ter morrido por razões de qualidade foi um tal Helvius Cinna, um romano do período final da república, assassinado em 44 a. C. Este episódio é contado por fontes históricas, dando o poeta como vítima da ira popular durante o funeral de Júlio César. Confundido com outro Cinna, esse sim conspirador,  o pobre foi degolado e a sua cabeça, espetada no alto de uma lança, passeou por toda a cidade. Na peça de Shakespeare, quando Helvius Cinna tenta dizer à multidão que não matou César, não passando de um inofensivo poeta, alguém sugere cinicamente que seja mesmo assim morto, mas pelos seus maus versos.


Vem isto a propósito de um texto de Cintra Torres a comentar a recente publicação pela Quetzal do livro “A Civilização do Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa, sobre o qual já escrevi neste blogue.
Cintra Torres faz uma comparação entre a nossa obsessão pelo entretenimento e o caso de Roma: “Um ou outro imperador romano podia não gostar dos espectáculos do Coliseu, mas dava-os e a eles assistia. Hoje, os imperadores da civilização do espectáculo apreciam verdadeiramente o show do Coliseu. E são parte dele”.
O livro e o comentário levantam problemas interessantes e actuais, mas o que me leva a escrever esta crónica é uma certa dificuldade em aceitar algumas das interpretações de Cintra Torres. Julgo que Vargas Llosa teve sobretudo a preocupação de reflectir sobre a arte contemporânea, que ele julga excessivamente superficial. O escritor peruano detecta a “paixão universal” da “fuga ao aborrecimento” e está, no fundo, a criticar o que pensa ser o “declínio dos intelectuais e da elite”.

 

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publicado por Luís Naves às 18:44 | link do post | comentar
Domingo, 09.12.12

O samurai

Ainda hoje, no meu bairro, é recordada com muita saudade a progenitora da Alice, a Dona Felismina, que deu em herança à filha o pequeno estabelecimento, uma leitaria entretanto modernizada em pronto-a-comer, que fica ali à esquina das escadinhas que dão para uma rua escondida. A mãe da Alice era uma mulher daquelas chamadas de armas, ou seja, mais dominadora do que se poderia presumir pelo seu corpo franzino. Parecia a Edith Piaf e sei que, em jovem, incendiou numerosos corações galantes e outros menos cavalheirescos; mas, enfim, só a conheci bastante gasta e passado o antigo esplendor. Parte da história também será bordada a lenda, pois sabemos como tudo nesta cidade acaba sendo um pouco romanceado, generosamente apimentado com venenos e intrigas.

   Quem verdadeiramente interessa neste relato é a Alice, que terá essas origens curiosas, embora pertençam a um passado que já nem imaginamos. E quem sabe o que se esconde em gerações ainda mais remotas? O facto é que ela tem lábios grossos, nariz achatado, o traseiro algo proeminente, caracóis enrolados num cabelo cor de azeitona escura.

   Na aparência, a Alice é uma mulher não muito diferente das outras: talvez um pouco mais redonda de carnes, o que faz sonhar alguns homens, entre eles o Carriço, discreto apaixonado e lugar-tenente do estabelecimento; o seu homem oficial, digamos assim, macambúzio e soturno, mas também ciumento, sobretudo quando vê possíveis rivais a cobiçarem o seu naco de carne com olhares famintos, nem que seja macho de passagem ou um zé-ninguém que jamais voltará.

   Alice não é alta nem baixa, não é velha nem nova. Anda sempre desmazelada, sem pinturas ou jóias; veste avental com nódoas. Mas não precisa de ornamentos, tendo aqueles olhos verdes, esmeraldas reais, embora a cor já esteja esbatida, enfim, porque o tempo passa.

 

  

 

publicado por Luís Naves às 18:54 | link do post | comentar

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