Delação
Tibor era o rapaz invejado, aquele que os outros miúdos odiavam por saberem que pertencia a uma família influente. Era denunciado por pequenos sinais: os bonitos cadernos que a mãe lhe comprara na cooperativa do partido; a roupa e os sapatos estrangeiros; a deferência calculada do professor. Sobretudo, o orgulho dos poderosos, esse pecado que o povo detesta. É incrível como uma simples criança sabe quando os seus pais têm posição elevada. Tibor era um miúdo franzino e agradável, capaz de fazer amigos, mas ingénuo ao chegar àquela escola onde eram maioria os filhos de operários; deve ter pensado que os outros miúdos o veriam como líder, mas a sua expectativa era infantil. Eles viam-no como um marciano.
Não me lembro com exactidão de como tudo aconteceu, mas a nossa amizade resultou de um episódio que hoje acredito ter sido uma das grandes lições na vida de Tibor. O professor saíra da sala de aulas por minutos e, como era típico na época, colocou um dos alunos como responsável pela disciplina, dizendo-lhe que esperava um relatório completo do que teria acontecido na sua ausência. Tibor era o favorito do professor e foi nomeado na espinhosa missão. Tratava-se de uma simulação, claro, uma falsa atribuição de poder, mas era preciso ter consciência dessa ficção geral que regulava o nosso mundo (ali, numa versão esquemática da política), para compreender que o professor não esperava qualquer tipo de informação sobre o que acontecera na sua ausência. Por isso, foi espantoso o indignado silêncio dos alunos, ao ouvirem Tibor a denunciar cada um dos que se portara mal, incluindo algumas meninas, o que lhe valeria uma vergonha ainda maior aos olhos da turma. Acusou cinco de nós, fazendo um cuidadoso relatório numa voz nervosa e estridente, e o professor, visivelmente espantado (até que ponto estaria com medo?) foi obrigado a punir os infractores. Eu fui um deles, embora não me lembre do que tenha feito.
No intervalo, Tibor enfrentou a fúria dos colegas. Foi emboscado numa zona pouco vigiada da escola e encostado a uma parede. Lembro-me do ar infeliz dele, da forma como de súbito compreendia o erro, talvez da dúvida que passava pelo seu espírito, de que era correcto cumprir a missão que o professor lhe tinha atribuído, mas que havia algo de profundamente errado. Talvez tenha imaginado, com horror, que iria viver o resto da vida sozinho e sem amigos. E o resto da vida, para uma criança, é a eternidade. Na perspectiva de levar mais estaladas, encolheu-se, e por qualquer razão tive pena dele, impedindo os outros rapazes de lhe baterem mais.
“Não voltes a fazer aquilo”, disse eu. E o miúdo indefeso disse que sim com a cabeça, a tentar em vão conter as lágrimas. A nossa sede de vingança estava saciada. Os outros miúdos dispersaram e eu fui o último a deixar o campo de batalha, deixando nítida a autoria de uma clemência que ainda hoje não entendo. Estaria a tentar ser amigo dele? É provável, já que também eu invejava a boa fortuna de quem pertenciam à classe social certa. Vendo bem, sempre o invejei.
Nas semanas seguintes, ou meses, já não recordo, tornei-me amigo de Tibor. Durante algum tempo, fui o seu único amigo, o primeiro a esquecer o episódio da delação. Ele levou-me a sua casa, para estudarmos juntos, e isso aconteceu mais vezes. Conheci a mãe dele, Edite, que nos servia um chá a meio da tarde; e, um dia, apareceu o pai, Joszef Varga. Nada tinha a ver com o homem curvado e empobrecido dos seus últimos dias de vida. No início dos anos 70, era alto e magro, direito, uma bela figura, com nobreza no porte, mas também uma faceta algo inquietante que não sei definir, mas que se revelava no azul profundo do olhar interrogativo e agudo. Tinha barba mefistofélica, precocemente embranquecida, e na memória da primeira vez que o vi estava vestido com camisa branca, portanto devia ser um dia quente, talvez de Junho, e ele interessou-se pelos nossos estudos, pois deviam estar próximos os exames. Ouviu as explicações do filho sobre um problema de matemática, sorriu para mim, observando-me com interesse: “E tu deves ser o Lajos”, disse.
E é tudo o que lembro, os bolinhos de Edite e o caminho para a casa deles, uma mistura na minha memória, e a casa antiga, de rés-do-chão e cave, a ocupar o fundo do quarteirão, com uma parte virada para a rua onde havia algum trânsito. Tinha o estuque da pintura pelado como um pêssego podre. Depois, um muro ao longo da rua e esse dava para o pátio deles e para um jardim onde havia nespereiras (julgo que eram nespereiras) e do jardim entrava-se na casa pela cozinha e na sala tinham a grande salamandra e lembro-me também de um quadro, uma cena de camponeses a ceifarem o trigo, e encantava-me aquele movimento dos ceifeiros, o impulso congelado na tela, que era como a própria vida, feita de ímpetos que transformamos em gestos, numa batalha eterna contra o que cresce da terra para nos sufocar e que devemos tentar cortar depressa, antes que nos agarre as pernas e nos prenda ao violento solo.
E parecia-me que os camponeses não cortavam suficientemente depressa e que se afundavam devagar naquele chão voraz, que subia e subia.