O poeta morto pelos seus maus versos
O único poeta que consta ter morrido por razões de qualidade foi um tal Helvius Cinna, um romano do período final da república, assassinado em 44 a. C. Este episódio é contado por fontes históricas, dando o poeta como vítima da ira popular durante o funeral de Júlio César. Confundido com outro Cinna, esse sim conspirador, o pobre foi degolado e a sua cabeça, espetada no alto de uma lança, passeou por toda a cidade. Na peça de Shakespeare, quando Helvius Cinna tenta dizer à multidão que não matou César, não passando de um inofensivo poeta, alguém sugere cinicamente que seja mesmo assim morto, mas pelos seus maus versos.
Vem isto a propósito de um texto de Cintra Torres a comentar a recente publicação pela Quetzal do livro “A Civilização do Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa, sobre o qual já escrevi neste blogue.
Cintra Torres faz uma comparação entre a nossa obsessão pelo entretenimento e o caso de Roma: “Um ou outro imperador romano podia não gostar dos espectáculos do Coliseu, mas dava-os e a eles assistia. Hoje, os imperadores da civilização do espectáculo apreciam verdadeiramente o show do Coliseu. E são parte dele”.
O livro e o comentário levantam problemas interessantes e actuais, mas o que me leva a escrever esta crónica é uma certa dificuldade em aceitar algumas das interpretações de Cintra Torres. Julgo que Vargas Llosa teve sobretudo a preocupação de reflectir sobre a arte contemporânea, que ele julga excessivamente superficial. O escritor peruano detecta a “paixão universal” da “fuga ao aborrecimento” e está, no fundo, a criticar o que pensa ser o “declínio dos intelectuais e da elite”.
Cintra Torres complica o tema, embora reconheça que “nunca como hoje a cultura culta teve tanta divulgação, consumo e estudo”, sendo a ‘cultura culta’ o oposto da ‘cultura de massas’ que o autor detecta no nosso quotidiano. Cintra Torres vê sobretudo uma manipulação geral das pessoas, exercida por uma elite que elaborou o simulacro da civilização do espectáculo, algo de semelhante ao ‘pão e circo’ dos romanos, portanto do domínio da ciência política. Sempre discordei desta generalização que toma a opinião pública por essencialmente ingénua.
Esta é uma visão segundo a qual a cultura consiste num mecanismo de controlo político, com a banalização da mesma a criar massas informes e estupidificadas (ao género da manipulação de Marco António no já referido funeral de César). Não posso obviamente afirmar que o populismo esteja ausente da política, mas tenho dúvidas de que a nossa época seja especialmente dominada por demagogos.
Por isso, o discurso de Cintra Torres é algo contraditório. Se toda a gente tivesse acesso ao esclarecimento da ‘cultura culta’, não seriam eleitas apenas as elites que as elites querem eleger (mas que outras podiam ser eleitas?). Segundo Cintra Torres, a sociedade do espectáculo é um “meio de sobrevivência” da própria democracia, sendo que esta afirmação convive com outras, tais como a cultura popular ser capaz de produzir “bens culturais de valor ou até de muito valor”, mesmo que mais à frente haja sobretudo “mediocridade visível”.
Julgo que muitas elites, em várias épocas, se queixaram da qualidade medíocre das obras artísticas do seu tempo. Para os contemporâneos é sempre difícil avaliar o que fazem os artistas, embora seja fácil e ‘culto’ fazê-lo cem anos mais tarde. Tendo a concordar com Vargas Llosa quando este escreve sobre a banalização da arte contemporânea e a sua tendência para o fogo-de-artifício, a superficialidade e a provocação estéril. Mas o escritor é a prova de que não existe apenas isso. Vendo bem, a literatura atravessa provavelmente um excelente momento a nível mundial, havendo mais do que uma mão-cheia de grandes escritores em actividade.
Por isso, não penso que o triunfo da cultura do espectáculo resulte apenas da manipulação das elites, mas antes de uma genuína escolha das massas. A escolaridade obrigatória tem este efeito: onde antes havia na sociedade uma fina camada de alfabetizados, agora existe um público com exigência e dinheiro para consumo de bens culturais.
E os gostos mudaram: temos as nossas formas de crueldade, mas a ideia de entretenimento evoluiu: não conseguimos passar um dia inteiro a ver gladiadores a cortarem-se às postas ou leões a devorarem cristãos. Vemos jogos de futebol que simulam batalhas e filmes de ficção realistas. Aprendemos a usar a elipse e inventámos uns truques.
O que existe sobretudo é a fragmentação da oferta dos mercados da cultura. Não há apenas um público, mas muitos públicos, com todos esses fragmentos a tocarem alguma forma da ‘cultura culta’. No fundo, ninguém possui autoridade para decidir aquilo que pertence ao futuro. A ‘qualidade’, em arte, não passa de um palpite, a não ser que seja sobre a arte do passado. Por outro lado, se por cultura queremos significar conhecimento, é difícil argumentar que este não seja o tempo mais afortunado da História.
Vivemos entre influências do mercado, silêncios, omissões, talvez até decadência do Ocidente, como sustentam alguns teóricos. Mas também vivemos na variedade e no feliz convívio de muitas visões diferentes sobre em que consiste uma obra de arte. O que quero dizer é que nos dias que correm, no mundo ocidental hiper-industrializado, já não há poetas que, como Helvius Cinna, sejam mortos por causa dos seus maus versos e dos encontros nefastos com massas excessivamente politizadas.