Domingo, 03.02.13

Kiss me and say goodbye, that's love

3

Certa sequência de acontecimentos podia ser definida com relativa precisão. Varga conversou com a senhora Matuska no pequeno café que esta mantém na estação de Kispest; parto do princípio de que foi apenas conversa de circunstância, sem cumplicidades, meio esquecida devido ao turbilhão de momentos banais que forma cada existência, esse confuso e fragmentado fio que devia ligar a ordem dos factos mas que, na realidade, transforma o filme da nossa vida numa catadupa de imagens em fuga. Varga podia até conhecer a proprietária do café, podiam conhecer-se de situações antigas. Quem sabe, uma fonte, uma reportagem? Mas acho mais provável que ele estivesse a pensar (é apenas uma hipótese, a minha especulação) no desgosto físico que lhe produziam todos os sinais de declínio à sua volta e que eram o testemunho do estilhaçar de uma época. A sujidade no chão, as pessoas nervosas, a linguagem caótica, os jornais imundos. Tudo isso representava o colapso dos sonhos, uma informe cacofonia de sons e uma mistura quase assustadora de queda e antecipação da morte. Era, apesar de tudo, uma cruel matéria de reflexão que devia ocupar os seus dias: o que sucedera à utopia e aos devaneios? Acredito que Varga tenha pisado aquele chão com mais amargura, que tenha descido as escadas com um peso na alma. Depois, ao tomar a linha número dois do metropolitano, penso que escolheu um lugar à janela e deve ter dormitado um pouco (o sol de inverno entrava na carruagem muito quente) embalado pelos solavancos da linha velha, até sair no centro da cidade, talvez na estação da praça Deák. Atrevo-me a dizer que saiu ali, porque ali voltaria mais tarde e porque é o coração de Budapeste e um centro de poder. É onde sai sempre mais gente, e Varga já só era mais um entre muitos.

 

publicado por Luís Naves às 16:16 | link do post | comentar
Terça-feira, 29.01.13

Para ontem

As tuas mãos ofuscam a claridade da água.

 

Turvos são os lugares onde tocam, podiam ser pedras

 

não fosse a circunspecta dádiva.

 

 

Faz anos que beijaste a descoberta do início.

 

E ontem, ontem mesmo, descobriste a gaveta sacra,

 

os silêncios de poeira fresca.

 

 

Sublimes são os dias mas apenas para quem não recorda.

 

Os fantasmas, viagem nas memórias de quem guarda

 

esse respirar solene das certezas.  

publicado por João Villalobos às 18:51 | link do post | comentar
Segunda-feira, 28.01.13

Eu e o Luis Naves em conversa

publicado por João Villalobos às 14:22 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quarta-feira, 23.01.13

Ofício

Juntar palavras é quebrar nozes com as mãos, dedos abertos.

 

Vê o castor que equilibra os ramos sobre o dique. Observa

 

a sua disciplina.

 

 

Escrever é tudo o que a verdade não é, mas também o seu corpo.

 

Ouve o tchk, tchk, tchk da toutinegra. Atenta

 

na sua cadência.

 

 

Uma frase e depois outra é a monotonia de tudo com viagens dentro.

 

Sente o andar vagaroso do gato. Tacteia

 

as suas unhas.

publicado por João Villalobos às 22:23 | link do post | comentar
Segunda-feira, 31.12.12

O café da estação

2

A senhora Matuska olhou-me com o gesto dos míopes, num esforço da vista, medindo o meu aspecto como se dissesse, baixinho, que as minhas intenções eram suspeitas. Mostrei-lhe o meu cartão de visita, que tem umas decorações sugestivas, e depois um recorte de jornal onde constava uma grande fotografia de Joszef Varga. Ela perguntou-me se eu era jornalista e respondi-lhe que não: embora escrevesse em jornais, era na realidade escritor. Foi ainda pior do que confessar a um membro da máfia albanesa que era membro honorário da polícia judiciária.
   “Então, não estou a ver qual possa ser o seu interesse no caso”, disse ela.
   Tive de recorrer à mentira acrobática:
   “Conhecia pessoalmente o senhor Varga”, (e isso era verdade) “e vou escrever um livro sobre ele (mentira) e queria saber todos os pormenores daquele dia, com quem falou e o que disse na ocasião, (verdade) por causa do rigor que pretendo imprimir ao livro” (imprecisão, evasiva, mentira).
   Fui apenas meio credível. Sabendo do gosto de Varga por café pela manhã, era possível, até provável, que ele pudesse ter parado ali e conversado um pouco, antes de seguir no seu passeio de pensionista. Para mim, era fácil imaginar aquele idoso alto e curvado, de sobretudo e chapéu, a entrar no pequeno estabelecimento da senhora Matuska, uma mulher que já tivera sem dúvida os seus tempos de glória. Dizer uma graça ou simplesmente esperar que ela fizesse a despesa da conversa.
   A mulher observou atentamente a página do jornal. Recordava-se do caso.


  

publicado por Luís Naves às 18:18 | link do post | comentar
Sexta-feira, 28.12.12

O poeta morto pelos seus maus versos

O único poeta que consta ter morrido por razões de qualidade foi um tal Helvius Cinna, um romano do período final da república, assassinado em 44 a. C. Este episódio é contado por fontes históricas, dando o poeta como vítima da ira popular durante o funeral de Júlio César. Confundido com outro Cinna, esse sim conspirador,  o pobre foi degolado e a sua cabeça, espetada no alto de uma lança, passeou por toda a cidade. Na peça de Shakespeare, quando Helvius Cinna tenta dizer à multidão que não matou César, não passando de um inofensivo poeta, alguém sugere cinicamente que seja mesmo assim morto, mas pelos seus maus versos.


Vem isto a propósito de um texto de Cintra Torres a comentar a recente publicação pela Quetzal do livro “A Civilização do Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa, sobre o qual já escrevi neste blogue.
Cintra Torres faz uma comparação entre a nossa obsessão pelo entretenimento e o caso de Roma: “Um ou outro imperador romano podia não gostar dos espectáculos do Coliseu, mas dava-os e a eles assistia. Hoje, os imperadores da civilização do espectáculo apreciam verdadeiramente o show do Coliseu. E são parte dele”.
O livro e o comentário levantam problemas interessantes e actuais, mas o que me leva a escrever esta crónica é uma certa dificuldade em aceitar algumas das interpretações de Cintra Torres. Julgo que Vargas Llosa teve sobretudo a preocupação de reflectir sobre a arte contemporânea, que ele julga excessivamente superficial. O escritor peruano detecta a “paixão universal” da “fuga ao aborrecimento” e está, no fundo, a criticar o que pensa ser o “declínio dos intelectuais e da elite”.

 

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publicado por Luís Naves às 18:44 | link do post | comentar
Domingo, 09.12.12

O samurai

Ainda hoje, no meu bairro, é recordada com muita saudade a progenitora da Alice, a Dona Felismina, que deu em herança à filha o pequeno estabelecimento, uma leitaria entretanto modernizada em pronto-a-comer, que fica ali à esquina das escadinhas que dão para uma rua escondida. A mãe da Alice era uma mulher daquelas chamadas de armas, ou seja, mais dominadora do que se poderia presumir pelo seu corpo franzino. Parecia a Edith Piaf e sei que, em jovem, incendiou numerosos corações galantes e outros menos cavalheirescos; mas, enfim, só a conheci bastante gasta e passado o antigo esplendor. Parte da história também será bordada a lenda, pois sabemos como tudo nesta cidade acaba sendo um pouco romanceado, generosamente apimentado com venenos e intrigas.

   Quem verdadeiramente interessa neste relato é a Alice, que terá essas origens curiosas, embora pertençam a um passado que já nem imaginamos. E quem sabe o que se esconde em gerações ainda mais remotas? O facto é que ela tem lábios grossos, nariz achatado, o traseiro algo proeminente, caracóis enrolados num cabelo cor de azeitona escura.

   Na aparência, a Alice é uma mulher não muito diferente das outras: talvez um pouco mais redonda de carnes, o que faz sonhar alguns homens, entre eles o Carriço, discreto apaixonado e lugar-tenente do estabelecimento; o seu homem oficial, digamos assim, macambúzio e soturno, mas também ciumento, sobretudo quando vê possíveis rivais a cobiçarem o seu naco de carne com olhares famintos, nem que seja macho de passagem ou um zé-ninguém que jamais voltará.

   Alice não é alta nem baixa, não é velha nem nova. Anda sempre desmazelada, sem pinturas ou jóias; veste avental com nódoas. Mas não precisa de ornamentos, tendo aqueles olhos verdes, esmeraldas reais, embora a cor já esteja esbatida, enfim, porque o tempo passa.

 

  

 

publicado por Luís Naves às 18:54 | link do post | comentar
Quarta-feira, 28.11.12

Primeiro aniversário

Este blogue conclui hoje um ano de existência.

Foram publicados aqui mais de cem posts originais, de crónica, conto e poesia.

Este local serviu de oficina de escrita, para testar ideias literárias e ensaiar formas.

 

Agradecemos aos nossos leitores, sobretudo aos que nos seguem desde o início.

Em dia de aniversário, fica este conto, ainda em esboço... 

publicado por Luís Naves às 18:09 | link do post | comentar | ver comentários (3)

Do outro lado da linha

Aquele número de telefone agora era meu, mas pertencera a outra pessoa. Descobri isso quando alguém me telefonou a querer falar com uma tal dona Otília, que eu não conhecia de lado algum. Quando expliquei que era engano, a pessoa do outro lado reagiu com espanto. Ao segundo telefonema, percebi que a culpa era da empresa operadora. O número fora reciclado.
   Devia ter tratado logo do assunto, mas confesso que achei graça e depois já passara a oportunidade para obter um número diferente. Às tantas, não era prático mudar, tinha ainda a chatice de perder umas horas a explicar que recebia chamadas para a anterior proprietária e, portanto, queria um número original, que não tivesse cliente anterior. A meu ver, pagava como novo algo em segunda mão. Tratava-se de um mero número de telefone, mas podia ser um par de sapatos: sempre que o utilizava, pairava aquela sensação amarga de que já alguém o calçara antes. Mesmo assim, nada fiz.
   Não sendo inteiramente racional, a ideia perturbava, mas o tempo foi passando e diluiu-se o choque inicial de saber que o número do meu telefone novo já pertencera a outra pessoa. Depois, descobri que tinha um prazer especial em receber as chamadas dirigidas à dona Otília, mas acima de tudo dava gozo ler as mensagens de texto que ela devia receber, algumas indecifráveis, outras crípticas, todas vagamente incompletas, omissas de informação e que me faziam pensar seriamente nas conjecturas sobre o aspecto daquela pessoa desconhecida. A situação não deixava, apesar de tudo, de ser um pouco irritante. Por vezes, atendia a chamada e alguém berrava do outro lado:
   “Queria falar com a dona Otília”.
   “É engano. Este número já não pertence à dona Otília”.
   Do outro lado da linha, havia sempre resistência a uma ideia tão evidente:
   “Está a brincar comigo”.
   “Não estou a brincar com ninguém. É engano”.
   “Mas a dona Otília deu-me este número”.

  

 


 
 

publicado por Luís Naves às 18:05 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quinta-feira, 22.11.12

Ou outra coisa qualquer

E afinal tudo isto o que é, senão outro princípio?  

Soçobraram estas memórias,

ou aguardam apenas a tão desejada,

adiada salvação?

Pisando a poeira caminhamos,

entre as folhas secas, num ruído manso.

 

Vacilamos sonâmbulos em noites de paludismo.

Prosseguimos, sem destino certo,

no balanço turvo do navio fantasma.

Já não separamos a mão esquerda da direita.

Muitas vezes,

nem um abraço consola a febre dos dias.

 

Haja essa tarde, outra vida elevada num sopro,

a árvore antiga elevando-se como um  pai.

Por ela subíamos até uma queda sem dor

e os amigo eram como ramos,

a quem nada se pedia excepto o indizível,

esse coruscante silêncio demasiado branco.

 

Não sei, não vi, o inominável que chegou sem aviso,

lento ou com a pressa dos que fazem sofrer.

Mas fingiu-se de tão quente, de tão íntimo,

que chegou convidado pelo medo a esta mesa,

aterrador comensal na sua face gelada…

Máscara de espelho, assassino manso.

 

Se houver outro princípio, então o sangue pulse

e o jogo da infância recomece.

Mas se for o fim, então fique o nada que resta.

Assim mesmo.

Só o que resta.

O reciclar dos detritos, da obra, dos corpos.

 

Não o definhar desta luz amortecida.

Não estas palavras, encarquilhadas ao nascer.

 

Ou outra coisa qualquer.

publicado por João Villalobos às 22:01 | link do post | comentar

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