O campo era ligeiramente inclinado, a favor de quem jogasse do lado da linha de comboio, que passava ali a cem metros. Quando chovia, transformava-se num lamaçal e formavam-se pequenas lagoas castanhas. As balizas começaram por ser marcadas com pedras grandes e tínhamos de imaginar os postes. Os limites do campo foram desenhados por uma cicatriz direita, escavada na terra e um dos lados era a cerca do liceu, em arame, e que alguém mais pragmático tinha levantado, para todos poderem passar. Depois, arranjaram duas vigas redondinhas e altas para as balizas e prenderam um fio com duas latas em cada ponta e estas batiam muito nos postes quando havia vento, fazendo um barulho fantasmagórico.
Para dizer a verdade, eu nunca jogava. No máximo, acompanhava os outros miúdos e apanhava as bolas, sempre a mendigar um lugar na equipa. Não era mais novo do que os outros, apenas mais pesado e lento. Ficava fora do campo a mandar bitaites e até me toleravam porque era bom aluno a matemática e ajudava-os nos problemas, isto quando havia aulas, pois nesse ano de 77 o liceu da Amadora ainda andava um bocado confuso. Foi o último ano de erre-ge-ás permanentes, mas quem ia para o campo de futebol não se interessava por política, antes pelo contrário, pertencíamos a uma fauna à parte, ainda no limbo entre as brincadeiras infantis e os primeiros namoros.
O melhor jogador da turma era o Petróleo, um de cinco irmãos mulatos que moravam na praceta dos Crisântemos, na Reboleira. Era retornado e jogava de avançado, fazia daquelas fintas manhosas que os miúdos odiavam e levou muito soco à conta da sua habilidade. Ele e o irmão mais velho chegaram a entrar no Estrela, na equipa principal, mas o Manuel (assim se chamava) nunca saiu do banco. O Gonçalo, que era o capitão das equipas da turma, também chegou a tentar o futebol profissional, mas não teve sorte. Na altura, ele disse que o mister não fora com a cara dele.
No primeiro ano do liceu (julgo que agora se chama sexto) era preciso aproveitar cada furo para ocuparmos o campo, pois o jogo acabava mal chegassem os alunos das turmas dos últimos anos. Até sermos enxotados, tínhamos o campo à nossa conta: sete de cada lado e ainda me lembro de alguns dos jogadores, entre os vinte que apareciam em cada jornada. O Osvaldo era um bocadinho gago e jogava e extremo, porque chutava com o pé esquerdo; foi para física e é professor de liceu; perdeu a gaguez. O João Afonso, um miúdo grande que jogava a defesa; morava no prédio ao lado do meu, na praça 1º de maio; teve uns problemas com a polícia e emigrou para Inglaterra. Havia outro João, que não jogava sempre, mas era bom aluno e deixava copiar; acabou Direito. E lembro-me de um miúdo louro, que já naquele tempo as miúdas adoravam; agora, tem uma loja de eletrodomésticos num centro comercial, perto da Amadora; na altura, jogava com estilo e gesticulava imenso, mas estava sempre a poupar-se em campo. Só para mim não havia lugar, nem para suplente.
Um dia, deixaram-me entrar no campo, porque um dos miúdos coxeava, mas fiquei com a sensação de que as pernas se prendiam ao solo. Queria correr, mas não conseguia. Saltitava perdidamente, a vigiar a minha zona, a rezar para que não corressem por ali. De repente, alguém lançou a bola na minha direção, mas era quase no gozo, por ficar uns metros demasiado longe e ainda tentei lançar-me, mas não cheguei a tempo. A bola foi para fora. Simulei um gesto de impaciência, a imitar o Yazalde, apontando com os dois braços para o chão em frente aos pés, as palmas das mãos para fora. Queria dizer que o passe não fora perfeito. Mas os miúdos riram-se de mim.
Não demorou muito e aconteceu outra desgraça: às tantas, vinha o Petróleo a fugir e levava a bola com ele, nem me fintou, foi só correr pela avenida livre de obstáculos e ficou em frente à baliza, com um golo fácil. Ainda tentei a perseguição, mas só dei quatro passos e já me era impossível respirar. Ouvi logo a sentença.
"Gordo, ficas a apanha-bolas".
Mandaram-me sair e reentrou o lesionado, que mesmo com o pé a doer corria mais do que eu. Lembro-me bem do tom autoritário que o Gonçalo usou e nem dava para argumentar, pois a bola pertencia-lhe. Recebera-a no Natal, era em couro, das autênticas. Dava-lhe o direito de fazer a primeira escolha da equipa, mas também decidia sobre quem jogava nos adversários, sempre os mais fracos do lote.
A minha carreira futebolística devia ter ficado por ali, mas não era ainda o tempo de me dedicar aos estudos. Podia ter desistido naquele dia, mas isso só aconteceria meses mais tarde. Queria jogar, para ser parte do grupo e não ficar sozinho. Os que nunca viveram em solidão às vezes não entendem bem isso.
Dois anos mais tarde, namorei com a irmã do Gonçalo e conheci-o melhor nessa altura, quando tinha uns 17 ou 18 anos. A Joana era magra e nervosa, no fundo parecida com o irmão, que era um rapaz espigado e alto, impertinente nas aulas e que se distinguia por não ter mais nada de especial, exceto a bola mesmo à séria, o brinquedo caro que todos lhe invejavam. Foi assim mesmo como estou a contar.
Conto publicado no DN, no suplemento QI