Terça-feira, 24.04.12

Quando acabou a pasmaceira

As aulas de história eram as minhas favoritas porque no ano em que acabou a pasmaceira, tive um professor que não era daquele filme. O velho trazia tudo escrito à mão numas folhas soltas e devia saber toneladas sobre a época medieval, pois fiquei com a pancada de ler sobre esses tempos remotos e ainda hoje me lembro como lhe bebia as palavras. Infelizmente, tínhamos poucas aulas, pois havia reuniões gerais de alunos dia-sim, dia-sim. Os professores tinham medo, devo dizer. A Amadora era uma zona revolucionária e o liceu estava dominado por grupos de extrema-esquerda; não recordo os nomes, sempre confundi aquelas siglas todas iguais, de partidos revolucionários que se dividiam em pentelhos ideológicos, julgo que a facção albanesa era a dominante.
Lembro um episódio: numa discussão que se tinha desviado para a política, a professora de português chamou-me mentiroso. Eu afirmara que os soviéticos e os nazis tinham feito um pacto antes da segunda guerra mundial e os meninos viraram-se contra mim, chamaram-me provocador e apelaram ao desempate da professora. Ela tinha duas opções: ou confirmava a informação e arriscava-se a arranjar um sarilho com a polícia ideológica que controlava a escola, ou negava e mudava de tema. Escolheu a segunda e ainda hoje penso nisso. O que é melhor, a verdade ou a mentira piedosa? Em 75, os professores tinham medo dos alunos e dos grupelhos políticos que vigiavam o que era ensinado, tinham medo das patrulhas dos professores revolucionários. No fundo, era um fascismo ao contrário. Numa reunião de alunos que se descontrolasse, podiam ser saneados. Era assim, embora isso não possa ainda ser escrito. A verdade é coisa complicada.

 

Pois, tocou a campainha quando ouvia o velho professor de história, que era um dos poucos que dizia o que pensava. Tomavam-no por tolo e não lhe faziam muito mal, só se riam dele.
Havia um código dos toques e três significava perigo iminente, como nas sirenes dos bombeiros. Ao chinfrim da campainha, os putos saltaram como pipocas e correram aos postos de combate. Eu preferia continuar a aula e fiquei sentado; o professor, cuja cabeça estava um pouco caída, ficou a olhar para mim com ar severo, como se fosse eu o culpado, e olhava para as carteiras abandonadas, algumas delas tombadas no chão. E também acabei por seguir os outros, mas antes de sair endireitei algumas das cadeiras e o professor agradeceu-me, numa voz que, segundo recordo, tremia um pouco.
O liceu era recente, com pátios e recreios entre os pavilhões, muito espaço e um pavilhão central onde os revolucionários fizeram uma reunião rápida, para organizar a defesa. Nessa tarde não houve mais aulas. Corriam rumores contraditórios, mas a história era de que os fascistas do liceu de Queluz iam atacar o nosso liceu, numa expedição punitiva que pretendia acabar com as nossas liberdades. Aquilo, para mim, não fazia sentido e ainda pensei em ir para casa, mas fiquei ali a ver o que acontecia, acompanhado pelo meu amigo Mário, que hoje pode servir de testemunha sobre o que aqui escrevo. Rapidamente, foram definidas as tarefas defensivas e a revolução avançou com patrulhas na vedação, armadas de paus, e que vigiavam eventuais infiltrações, além de patrulhas empoleiradas nos portões azuis, que meticulosamente anotavam as matrículas dos carros que passassem por ali. No pavilhão central, estava instalado o estado-maior, onde os agitadores profissionais juntaram as meninas, obviamente para protecção. O liceu fora transformado numa espécie de castelo e assim o imaginei: a ponte levadiça, as populações assustadas, aquém das muralhas, os cavaleiros armados, prontos para rápidas incursões no exterior, capazes de defender a honra revolucionária. Mas não era assim grande castelo, faltavam as seteiras, as torres, as ameias, a pedra dura e a água mole, bem como o azeite a ferver.
E, durante algumas horas, vivemos aquele impasse de nada acontecer, de não se confirmar o cobarde ataque do liceu fascista. Os professores tinham desaparecido e fizeram bem, pois quem sabe o que acontece num ambiente de histeria descontrolada? Eu limitei-me a passear por ali e não participei: aquilo parecia-me uma espécie de sonho, um acontecimento artificial que não me dizia respeito, que me era alheio. Ao longo da vida, isso aconteceu-me muitas vezes: estar a ver algo que se passava em frente aos meus olhos, sem me importar, sem a mínima vontade de interferir, como se fosse possível ser apenas espectador dessa vivência; mas a palavra está talvez mal utilizada; não era vivência, mas um facto que podia ou não ser testemunhado; era indiferente, nada mudava em mim, por isso não era vivido, estava apenas ali.

 

Quando se puxa um elástico, a certo ponto ele parte-se. O momento em que isso acontece é inesperado, mesmo para quem está a puxá-lo sabendo o que vai acontecer. É impossível prever o momento exacto do estrondo ou o instante da dor, quando devido à tensão acumulada o pedaço partido choca com a pele da mão que segurava a ponta.
Assim sucedeu na guerra do liceu. Tudo se precipitou de repente. Na rua limítrofe apareceram duas motorizadas e ouviu-se um forte grito e saiu pelo portão uma turba de infantaria armada de varapaus a pedras (a minha imaginação acrescentou uma bandeira vermelha à frente). Correram dezenas de miúdos para lá e ainda vi as duas motos a voarem pelo ar e dois rapazes que fugiam, num pânico incrível, e alguém regressou, explicando que a guarda avançada deles, a patrulha de reconhecimento, tinha sido interceptada pelos nossos e estava a ser perseguida na Reboleira, que como sabem tem uns prédios bastante altos. Junto aos portões, os putos gritavam: “NATO fora de Portugal, Portugal fora da NATO”. E dentro do liceu, havia uma indescritível excitação, com grupos a correrem, falsos alarmes, toques de campainha em pânico.
Chegava entretanto o grosso do exército com dois prisioneiros e correram histórias de que tinham sido capturados na torre mais alta da Reboleira, com 25 andares. Era uma força bêbeda de vitórias, confiante e altiva, que fizera a sua devastação; levantava densa poeira, ao atravessar o descampado, erguendo os paus como se fossem espadas, os elmos às cabeças brilhando, pois o sol já se inclinava, o que pareciam armaduras ferozes e todos marchando em alta grita. E, lá no meio, os assustados prisioneiros, chorando os seus rocinantes mecânicos, que agora jaziam no caminho.
Esclareceu-se mais tarde que aqueles fascistas eram dois namorados que vinham buscar as suas amadas, mas isso não alterou o essencial. Foram levados para dentro e, mais tarde, muito a medo, apareceram alguns polícias para levar os invasores ao seu destino de calabouço. E, junto aos polícias, vinha um jipe com quatro comandos; quando começaram os insultos de fascistas e outros mimos (erro táctico) os soldados saíram do jipe e espancaram uns putos que não fugiram a tempo. Enfim, não foi bem fuga, foi mais uma retirada estratégica, pois a revolução às vezes tem de dar um passo para trás para mais tarde poder dar dois para a frente.

E este foi mais ou menos o momento em que tudo acabou. Para mim, era a hora de regressar a casa. E assim fiz, ainda desconhecendo o meu futuro insucesso escolar. Mas posso dizer que foi um dos dias mais divertidos da minha vida.  

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Segunda-feira, 02.04.12

O Príncipe Falso

O Príncipe Falso era um pequeno bácoro rosadinho e histérico, de orelhas arrebitadas e pele muito lisa. Tinha aspecto apetitoso. Lembro-me que lhe fazíamos sevícias constantes e ele (porque os porcos são espertos) fugia de nós sempre que nos via, incapaz contudo de evitar a captura, distraído com qualquer coisa, esquecido dos diabretes. Nas sessões de tortura protestava a sua inocência, mas a nossa persistência era mais forte. Tal como os bons polícias, desconfiávamos de confissões apressadas, rendições incondicionais. Todos se dizem inocentes e assim era também com o Príncipe Falso.
Uma vez fizemos um buraco no chão, uma cova ainda funda e tapámos a armadilha com folhas de fetos gigantes. Depois, tentámos que o porco avançasse sobre as folhas para cair no fundo da cova, que teria uns palmos de profundidade, mas palmos de menino. O porco olhou para aquilo com a desconfiança inata acumulada em milhões de anos de evolução e recusou-se a pisar o que provavelmente lhe parecia um buraco tapado por fetos gigantes. Seguiu-se um conflito de vontades entre as duas espécies, nós a insistirmos que o porco pisasse a armadilha e ele recusando-se a aventurar-se em solo instável. Então, fizemos batota, empurrámos o príncipe falso e ele bateu com o focinho no fundo, muito indignado, aos gritos, talvez a dizer-nos que não se deixara enganar e que a invenção, assim, era bastante injusta.
A vida de porco, naturalmente, não era brincadeira. Esperava-se que deixasse de ser bácoro e ficasse um grande animal de ancas fartas e dorso robusto. Era alimentado com restos de comida e vivia numa pocilga especial, onde devorava quantidades de batata e couves e feijão e tudo o mais que lhe aparecesse à frente do focinho. Comer era a sua vocação e assim cresceu o nosso porco, o único que a minha avó teve, que eu me recorde.
Não tenho bem presente o resto da cronologia do Príncipe Falso, mas no ano seguinte já era um ser enorme e pesado, que se arrastava dificilmente, estupidificado pelo pecado da gula. Ou talvez tenha passado mais de um ano. Só sei que a avó o vendeu por 250 escudos e o Príncipe Falso foi embarcado com dificuldade numa camioneta que o levou para um destino que ele sabia ser horrível. Protestou a sua inocência ao subir a rampa, olhou para nós, com aqueles seus olhinhos minúsculos e assustados, tentando talvez convencer-nos de que fora nosso companheiro de brincadeiras e que o fizera sempre sem maldade e se, um dia, resistira a cair no buraco tinha sido para dar mais sabor às diversões, para que a galhofa fosse mais interessante. E nós, garotos, ficámos a olhá-lo a subir a rampa do cadafalso, um belo fim para um príncipe.

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Sexta-feira, 23.03.12

Os homens na Lua

Depois, veio o tempo mágico da conquista espacial. Líamos nos jornais e víamos na televisão as fantásticas proezas da exploração cósmica, mas muitas pessoas não acreditavam que fosse possível. Abanavam a cabeça, num gesto de descrença, e diziam que lhes parecia uma coisa do outro mundo.
O meu primo Miguel era o mais velho de nós e o mais desembaraçado. Um dia, decidiu fazer um foguetão igual aos de Von Braun. Roubámos os cartuchos de caça do avô e extraímos a pólvora, que fomos acumulando, numa quantia assinalável. Não sei onde ele arranjou o tubo e não me lembro dos pormenores da construção. Sei que havia uma cápsula em cima, com uma caixa de fósforos onde colocámos duas baratas.
O foguetão de combustível sólido foi lançado numa tarde de muito calor e sol, de uma rampa que improvisámos num terreno em frente à casa dos avós. Escondemo-nos atrás de umas pedras, acendemos o rastilho e ouvimos um estampido violento, embora breve, e o tubo ergueu-se no ar como se fosse o saturno 5 e julgo que terá explodido de imediato, apesar de não ter qualquer memória disso, pois provavelmente assustei-me e desviei o olhar, ou só olhei para o topo de engenho; o que lembro distintamente foi o voo balístico da cápsula. Não quero romancear, mas vi a cápsula três vezes acima da casa, ou antes, cinco vezes ou ainda mais, a cem metros na atmosfera. É assim que lembro. À volta, ardiam moitas, mas apagámos o fogo e recuperámos a caixa de fósforos, que estava partida e queimada. Lá dentro, as duas baratas incineradas, que sepultámos com honras, numa terra fofa que tinha acabado de ser semeada. Na campa pusemos uma bandeirinha de cinco centímetros, colada a cuspo a um palito, que ainda ali esvoaçou alguns dias.
Dormi na noite em que chegaram à lua, mas lembro-me que nesse tempo não se falava de outra coisa. Recordo, como se fosse num sonho, o passeio nocturno à lua cheia, com a avó e os meus primos. Íamos ver na televisão os homens da Apollo e ao olhar aquela bola pálida que se erguia majestosamente no céu, parecendo sorrir, pensei com nitidez que havia ali pessoas de cabeça para baixo e quando elas olhavam na nossa direcção, estávamos nós de cabeça para baixo. Percebi nesse instante que a realidade era um ponto de vista, que não havia nem baixo nem cimo, que estávamos presos à terra e que, por muito breve que fosse o voo, a ela voltaríamos, como acontecera às duas baratas incineradas, as duas primeiras astronautas da aldeia dos meus avós.

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Segunda-feira, 12.03.12

Visitas importantes

A minha escola primária recebeu a visita do presidente. Ele chegou num carro escuro e era um senhor de fato  preto e cabeça branca, careca no topo; tinha uma careca muito polida que o sol abrasador foi avermelhando devagar. O presidente vinha rodeado de seguranças e bajuladores; era um homem atarracado e volumoso, que dava passos extremamente curtos. A viatura seria bentley ou rolls royce, não sei, havendo aqui um pequeno espaço de especulação. Estava de certo modo habituado a ver banheiras escuras formidáveis, de tecnologia mercedes, mas nunca antes vira uma com aquela elegância britânica. Os alunos da escola tinham sido colocados em duas filas e a viatura deslizou com suavidade entre a guarda de honra, como se levitasse à maneira dos veleiros.

Tinham-nos dado bandeirinhas nacionais e agitei a minha com patriotismo, mas o presidente saiu do carro sem me ver, aliás, com olhos só para as autoridades, que saudou com o seu ar enfastiado; ou talvez essa ideia seja posterior, como as memórias nos enganam, e ele até saltara da viatura disposto a cumprimentar com entusiasmo todas as almas que também o saudaram na ocasião; fica para a História a impressão errada, portanto, já que este parágrafo será o único relato que resta do evento; resta-me a sensação de que o presidente não era um homem popular e essa foi a minha primeira impressão política, ou também se trata de ideia posterior, uma partida que me pregou a passagem do tempo; permanece apesar de tudo a memória opinativa de ter vivido um momento histórico; o presidente visitava a minha escola, suburbana e pobre, e era a primeira vez que via ao vivo e a cores uma pessoa que antes conhecera na televisão a preto e branco.

 

Mas nisso de conhecer celebridades, o meu momento de glória foi a visita do guarda-redes Damas, do sporting, que veio à minha escola, enfim, pelo menos às redondezas, mais ou menos na altura do presidente, e ali permaneceu um bocado de tempo, para grande espanto da miudagem que observou o gigante, o qual ficou ali tão sereno como quando estava entre os postes. Ele era um homem a sério, pareceu-me, e ainda hoje penso que corresponde à minha imagem de homem a sério, ao contrário do presidente, que como já disse, e não tendo eu pretensões a possuir credenciais de precocidade política, me pareceu meio atarracado e sem talento para guardar um país, quanto mais uma baliza.

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Sexta-feira, 24.02.12

Em que estaria a pensar Beethoven?

Fiquei a detestar o Für Elise. Em que estaria a pensar Beethoven quando escreveu aquela pirosa bagatela? Certamente em paisagens amorosas, arrebatamentos e exaltações, mas ocorrem-me apenas monótonas insistências.
Os meus finos dedos infantis não suportavam o peso das teclas e a minha mão era demasiado pequena para as amplitudes, mas o pior eram os acordes, conseguir manter um ritmo que permitisse à melodia ser inteligível. Lembrar aquilo tudo. Ainda hoje me faz confusão olhar para um piano e para uma pauta de música. Não conseguia descodificar aqueles símbolos suficientemente depressa e admira-me que haja pessoas que leiam pautas como quem devora romances.
A professora de piano chamava-se Odete e era uma de duas irmãs quase iguais, que pareciam tias-avós solteiras, bebedoras de chá, friorentas e caladas. Odete era simpática e paciente, tendo em conta a minha notória incapacidade. Explicava o solfejo com o dedo no ar a conduzir o ritmo ausente.

Nunca consegui tocar o Für Elise, mas gosto de trautear a musiquinha em estilo de jazz. Já tinha dificuldade nas leituras com letras latinas, mas procurei sempre queimar etapas. Ia pelos bonecos e tentava em vão esconder a dislexia. Ora, o método dos bonecos era improvável em questões musicais. O insucesso escolar prolongou-se durante anos, depois fracassei na carreira militar, fiquei aquém do potencial nos amores, mas tudo isso vem numas páginas mais à frente e não cabe nesta parte da autobiografia romanceada.


Naquele tempo, a vida era serena e decorria com felicidade alheada. Os problemas seriam numerosos, mas para uma criança esses eram universos distantes. Julgo que ainda não havia alterações climáticas, pois lembro-me sempre de fazer bom tempo. A luz era mais luminosa e o vento soprava como veludo. Os jornais e a televisão eram a preto e branco, as histórias simples vinham em fotonovelas e envolviam sempre amores contrariados, havia quem telefonasse para a rádio a pedir os êxitos do momento (sempre as mesmas canções românticas). E cresciam labirínticas cidades suburbanas para acolher as famílias da classe média, que nesse tempo ainda tinham criadas.
E as memória fluem em catadupa: lembro-me de uma criada que se chamava Hilda, que na nossa terra é um nome pouco vulgar, mas a rapariga também era pouco vulgar. Rapariga? Agora, que penso nisso, já deve ser avó.

publicado por Luís Naves às 12:13 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sexta-feira, 17.02.12

Secção de xadrez

A derrota faz parte da minha vida, mesmo da romanceada. Passo a explicar: não sendo desportista capaz de enfrentar sofrimentos físicos, mas desejando imenso fazer parte de qualquer coisa, inscrevi-me na equipa de xadrez do Estrela, que era um clube operário entretanto falido (como acontece ocasionalmente aos clubes operários). O núcleo de xadrez era competitivo e juntei-me a um grupo de ambiciosos atletas de palmo e meio. Seria breve, essa minha carreira.
O meu problema foi sempre a memória, sobretudo conseguir decorar mnemónicas; ainda hoje tenho problemas na tabuada dos nove, mas sobretudo na dos sete. No que respeita ao xadrez, há sequências de jogadas que os mestres já testaram sob todos os pontos de vista e que fazem avançar o jogo. Não vale a pena estar a inventar; a um determinado movimento do adversário, segue-se uma jogada previsível e assim sucessivamente até chegarmos ao âmago do conflito, onde ocorrem as divergências. Essa parte fácil tem de sair com fluidez, para não se perder tempo, mas no meu caso tornou-se um horror.


Dou outro exemplo. A minha avó, a certa altura (isto passou-se na aldeia) achou que eu daria um excelente menino de coro e entregou-me às aulas de catequese do padre Aníbal, da Graça, que ela própria definia como padre animal, para sublinhar o aspecto grunho e pouco polido do sacerdote. E lá tive uma derrota assinalável, levando com uma cana no topo do crânio por pecado de distracção infantil (fui castigado, portanto deve ser pecado). Como não me conseguia lembrar das ladainhas, a ponto de ainda hoje sentir dificuldade extrema em recitar o padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome e a partir daqui só sei a música, que é mmmmmm-mmmm-mmm, o facto é que chumbei na catequese, o que deve ser um caso bastante raro; e garanto que não foi negligência da minha parte, houve até certa aplicação de estudo, mas não me entravam aqueles mistérios, nem pareciam ter grande sentido lógico, pelo que optei pela estratégia de decorar as rezas, à maneira das madrassas, fracassando famosamente neste meu plano.
E assim foi no xadrez. Como não conseguia decorar as sequências de jogadas, e apesar da minha habilidade estratégica em perseguir o rei adversário, era sempre penalizado por um erro de palmatória, daqueles muito simples, de expor um bispo à gula de uma rainha, e já sabemos como elas são gulosas, tema que reservo para um capítulo posterior. Assim ficou muito ligada à minha infância a ideia da derrota e do total fracasso e da falta de talento e mesmo ausência absoluta de vocação. Falhei no xadrez e na catequese, viria também a falhar no piano, nunca fui atleta, mas ainda hoje sinto admiração quando vejo dois mestres em duelo mental e fascina-me aquele gesto abrupto de carregar no botão do relógio, para congelar o tempo. Isso sim, é desporto.

publicado por Luís Naves às 19:09 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sábado, 07.01.12

A falésia

Houve outra expedição importante e que exige um preâmbulo, para descrever a Amadora desse tempo.
Como todos os subúrbios, aquele tinha no seu centro a estação ferroviária. O comboio já ali passava nos tempos da monarquia e julgo que a paragem principal era em Queluz, por causa do palácio. A Amadora devia o seu crescimento antigo à estrada de Sintra, ao restaurante da Porcalhota, que atraía o turismo burguês, e ao campo de aviação, que mais tarde se transformou na academia militar e no regimento de comandos. A certo ponto (e quem sabe o que criou o fenómeno?) começaram a construir novos prédios na vasta planície junto à estação, a rasgar ruas e ruelas, avenidas e estradas, acessos e pátios, pequenos jardins e escolas.
Quando casaram, nos anos 50, os meus pais pertenciam à nascente classe média sem dinheiro para alugar casa em Lisboa mas que também não queria emigrar para África. Julgo que o meu pai chegou a ponderar a hipótese de ir para Angola, mas não era homem para aventuras e, certamente, a minha mãe não era mulher para aventuras. Optaram por ficar: o meu pai era bancário, tinha emprego seguro; a minha mãe, professora primária, com tempo para tratar das suas próprias crianças. Foram criando três filhos (mais tarde viria um quarto), com salários modestos, mas que chegavam para a situação ir melhorando.
Voltando à história que queria contar: a Amadora crescera exactamente na sua parte plana, até à academia militar. Do lado de Queluz, parava nas ravinas e, do outro lado da estação, ainda não subira as colinas sobranceiras ao vale; depois, do lado de Lisboa, acompanhava a estrada de Sintra, que começou a ser conhecida por estrada de Benfica, pois o ponto de vista de quem vai, o que baptiza, mudara de um lado para o outro. Eu teria cinco anos (ou teria quatro?). A minha mãe pediu-me para ir comprar fósforos (lembro-me assim, mas talvez não fossem fósforos) à mercearia em frente à casa. Ainda me arrepia a ideia; naquele tempo, as mães mandavam as crianças à mercearia em frente.
Enfim, sei que me mandaram à mercearia e fui por ali fora, esquecido da missão, a explorar o vasto mundo. Subi a rua toda e (agora, tenho presente o mapa do percurso), atravessei duas ruas e entrei na última. Sei que fui até à falésia e ali vi toda a cidade que nascia pelo vale. A minha memória é precisa sobre isto: como era enorme a nova cidade! Conhecia o caminho, porque uma das últimas casas dessa rua sem saída era da modista da mamã. Já lá tinha ido. Foi aliás a modista que me viu passar e me apanhou na falésia, a contemplar o mundo. Levou-me para casa e entregou-me à minha mãe, que nunca mais me mandou comprar fósforos.

publicado por Luís Naves às 10:26 | link do post | comentar
Segunda-feira, 26.12.11

A casa e o pinhal

Passávamos o verão com a avó, mas antes dessa época ela vivia numa aldeia. A casa tinha dois andares, o primeiro de cave servia para os animais, e só ocupava metade do comprimento. Como era professora primária da aldeia, a minha avó não tinha muitos animais, só uns coelhos e algumas galinhas e julgo que um porco, mas nem sempre tinha um porco. No andar de cima viviam as pessoas e a porta de entrada principal aproveitava uma zona mais elevada do terreno e que tinha acesso do lado da estrada. Tento explicar melhor: a casa era isolada e ficava junto a um pinhal, que se prolongava pela colina suave. Na entrada, estava a escadaria curta e, lá dentro, um longo corredor com quartos de cada lado; ao fundo, a cozinha, que tinha vista sobre um campo de cultivo, que pertencia a alguém, mas onde nunca vi gente a trabalhar; e, ao lado da casa, via-se a pedreira que tinha servido para a construção, um buraco no terreno, cheio de silvas e espinhos.
O que mais me interessa neste exercício de memória é o pinhal. Era enorme e estava cheio de fetos do tempo dos dinossauros. As árvores cheiravam a resina e cada uma delas tinha uma ferida no tronco e corria um sangue transparente para pequenos potes de barro. Metia-se lá os dedos e aquilo era pegajoso. Nós vínhamos da cidade numa camioneta da carreira, com a minha mãe e os meus irmãos, a viagem durava sete horas e eu adormecia quase logo no início. Só acordava ao chegar, mas tinha a noção de quanto mediam as zonas habitadas do mundo, de que como eram grandes as cidades e como havia tanta gente. Já tinha visto o mar, tudo isso era demasiado natural para mim e nunca pensara na distância.
Mas um dia, era mesmo muito pequeno, talvez com quatro anos, perdi-me no pinhal ao lado da casa (sem me perder da casa) e ouvi o barulho de gente além da floresta, uma voz, sem que se percebesse o que dizia. Era uma ameaça desconhecida, grunhido, lamento, um vago suspiro, grito a resmungar ou a marcar um ritmo ou apenas uma alma em conversa. E aquilo vinha de tal forma para lá do fundo, depois das árvores, que acreditei na existência de seres fabulosos nos confins daquela floresta, que me parecia do tamanho de uma catedral, com os seus pilares elevados a sustentarem o céu. Esse foi um dos dois dias em que aprendi que o mundo era interminável e que havia nele demasiados mistérios para descobrir.

publicado por Luís Naves às 18:08 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Segunda-feira, 19.12.11

Primeira memória

A memória mais antiga é a de uma casa, de um corredor; há luz lateral, das janelas à minha esquerda e o aparador, daqueles móveis velhos cheios de objectos expostos, mas imprecisos na forma. Esta memória não tem nada de especial. Ao fundo do corredor há um quarto e neste quarto de mansarda existe a janela, das que estão no tecto e se abrem para fora, ou seja, para cima, e dá para passar para o telhado.
Lembro-me de estar no telhado e lá em baixo era longe. Um sol esplendoroso. O meu irmão está em pé, sobre as telhas, mesmo à beira do abismo. Não me recordo se estou muito perto ou muito longe do fim do telhado, mas devo ter passado para o exterior da janela, certamente com sensação de perigo, ou não teria qualquer recordação do acontecimento.
A memória deve ser falsa, pois os meus irmãos mais velhos garantem-me que nunca saí para o telhado. Que eles, sim, o fizeram, até à minha avó os descobrir e, com uma incrível calma, sem entrar em pânico, os chamar para a segurança. A mansarda ficava num quarto andar, mas eu não cheguei a ir para o telhado, embora me lembre de passear ali, de pé, caminhando sobre as telhas, pois já devia caminhar nesta altura. Em que ano aconteceu? Digamos que foi talvez 1965, mas nunca andei sobre as telhas, nunca estive naquele telhado da mansarda de quarto andar, nem vi nada de especial, excepto o sol brilhante e quente. Lembro-me de ouvir falar, pois o episódio aconteceu mesmo, os meus irmãos mais velhos estiveram naquele telhado e podiam ter caído do quarto andar e, ao assistir a tudo (mas dentro do quarto) fiquei com memória do incidente como se também eu lá estivesse.
Foi o que me ficou do ano de 1965, ou talvez de 1964, algo que nunca aconteceu, andar sobre o telhado, de resto não me recordo de como as pessoas vestiam, de como eram, o que diziam, o que faziam. Como eram os carros e os gelados, o regime e as televisões, os jornais e os cafés. E as crianças ou as cidades.
Na minha primeira memória, falsa como ela é, recordo o dia em que invejei os pássaros, porque podiam voar para além da plataforma do telhado e ver o mundo lá do alto, sem esforço algum. De certa forma, na minha primeira memória, falsa como ela é, fui um pássaro e as pessoas lá em baixo eram minúsculas, em vez de serem grandes.

publicado por Luís Naves às 23:01 | link do post | comentar

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