Domingo, 18.03.12

A lista telefónica

Quando terminava o seu doutoramento, István Herzog decidiu, por brincadeira, memorizar a lista telefónica de Budapeste. Nesse tempo, já muita gente tinha telefone e a lista de 1935 era, apesar de tudo, um livro bastante grosso.
Os amigos do académico ficavam espantados quando ele acertava nos números e aquela habilidade tornou-o popular nos cafés. Os outros colegas liam um nome e Herzog dizia o número de telefone da pessoa. Aquilo impressionava muito, pois revelava a prodigiosa memória do professor, cujas investigações em física, aliás, começaram por ser promissoras.
Enfim, veio a guerra, depois o regime comunista. A universidade perdera muitos dos seus talentos, mas lá continuava o prodigioso professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste de 1935. Os alunos habituaram-se a perguntar a Herzog se sabia o número de telefone de fulano, morador na rua tal e tal, e espantavam-se quando ele respondia correctamente.


Certa vez, sendo necessário controlar os meios académicos, chegou à universidade um comissário e o homem do partido ouviu falar no caso e não resistiu a fazer ele próprio um teste, porque era desconfiado e queria certificar-se da autenticidade da proeza. Pediu uma lista telefónica de Budapeste do ano certo e escolheu um nome ao acaso. Disse-o em voz alta e Herzog acertou logo no número, mesmo sem necessitar da morada.
   - Como é isto possível? - perguntou o comissário.
   - Não sei -, respondeu o professor.
   - Só é possível porque vivemos num pais socialista -, sentenciou o comissário e, por um instante, ocorreram-lhe várias ideias para usar aquele talento. Percebeu que podia ser uma boa maneira de ele próprio ingressar na comissão central do partido, mas logo se lembrou de que o professor memorizara a lista telefónica de 1935, que pertencia a outra era. Não podiam aparecer em frente aos líderes a ditar nomes de burgueses. Enfim, muitas pessoas já não estavam na lista, outras tinham mudado de número de telefone, algumas até podiam estar presas. E quando pediu ao professor de física que memorizasse a lista telefónica de 1954, este disse que era pena, mas não conseguia. Isso incomodou o comissário e Herzog passou a ser persona non grata. Deixou de fazer investigação, depois deixou de dar aulas, depois perdeu parte do salário e já ninguém lhe fazia o teste dos números de telefone e os seus velhos amigos viravam-lhe as costas.

 

O conhecimento inútil do professor Herzog perdeu-se para sempre quando o académico faleceu, de uma banal pneumonia, aos 81 anos, já no final da década de 70, quando o regime suavizava os seus rigores.
Mas na universidade ainda hoje se fala na fantástica memória do professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste.
As pessoas que contam a história enganam-se muitas vezes no nome e chamam-lhe Herceg, e Ferenc em vez de István. Alguns contam mal o episódio do comissário e transformam Herzog num anticomunista, que ele nunca foi. Não se recusou a decorar a lista telefónica de 1954, apenas disse que não era capaz.

Muitos enganam-se na especialidade do professor e há quem afirme erradamente que era perito em literatura; um mito dominante é de que sabia de cor todas as obras de Shakespeare.

Outros ainda enganam-se no ano da lista telefónica. 1936 aparece na maioria dos relatos. E, em certos casos, 1937.


Herzog nunca descobriu o que procurava. Tentava chegar a uma teoria sobre partículas, mas escapou-lhe sempre algo de essencial e os seus cálculos estavam num dossier que se perdeu num estúpido incêndio, em 1999, onde se perderam também muitos velhos papéis da universidade e uma lista telefónica de 1935.

 

 

(Este conto de 2010 foi publicado no blogue Emoções Básicas, numa versão mais curta)

publicado por Luís Naves às 12:17 | link do post | comentar
Terça-feira, 28.02.12

Um escritor esquecido

Gábor Vész nasceu a 1 de Janeiro de 1900 e a sua mãe achou que isso tinha um significado profundo. Ao amamentar pela primeira vez, a boa senhora disse que depositava as maiores esperanças naquele bebé débil, que a parteira, sem o confessar em voz alta, considerou ter escassas hipóteses de sobrevivência.
Mas aqueles foram anos de certa abundância, e isso ajuda a explicar a circunstância de o rapaz assentar raízes no mundo, primeiro periclitante, depois espigadote e franzino, finalmente esguio e magricela, sempre com ar de quem não iria durar nem mais uma semana, muito delicado, protegido pela mãe, dado aos livros, alheado das outras crianças.
Considerando a fragilidade do menino, a mãe recusou enviá-lo para um colégio interno, pelo que lhe ficaram vedadas algumas profissões nobres, como a das armas, onde se distinguiram os primos direitos. Crueldades do destino, supremo desperdício: esses robustos rapazes foram ceifados na guerra de 14, para a qual Gábor chegou a ser mobilizado, já no desespero do império, apesar de nem ter força de braços sequer para segurar na espingarda.
A confusão que se seguiu à derrota militar permite explicar em parte a obra de Gábor Vész. A família estava dizimada, ele transformado na última esperança de que o nome persistisse. A mãe morrera na pneumónica, deixando-o órfão (a questão do pai não está esclarecida, era um segredo amargo, havendo fontes que situam a sua morte escassos meses antes do nascimento do jovem Gábor, outras segundo as quais o autor era filho ilegítimo, o que constituía uma desgraça). Enfim, com o colapso da sociedade, o escritor não tinha herança, excepto algumas terras na Voivodina, que as novas autoridades sérvias confiscaram, a título de imposto devido.
O período universitário foi doloroso e triste. Gábor não tinha recursos para concluir o curso de direito (chegou a ambicionar a carreira política), sendo forçado à escrita ocasional em jornais, tais como Ocidente, Novos Tempos ou Gazeta de Budapeste, onde publicou os seus primeiros contos e novelas curtas, incluindo muitos textos esquecidos.
Em 1926, publicou o seu primeiro romance, A Vida das Lágrimas, onde já revelava um estilo de observação acutilante, ao narrar a tragédia de um funcionário banal, apanhado na revolução e incapaz de enfrentar os poderes cruéis. A obra quase foi chumbada pela censura, mas passou no crivo político, sendo mal recebida pela imprensa, que lhe criticou a excessiva humanização dos algozes. Nas redacções, havia muitas invejas.
Gábor era um modernista e tinha influências expressionistas (Berlim Alexanderplatz, sem dúvida, mas também o minimalismo de Chekov e a sua observadora imparcialidade). Nessa época, o escritor frequentava um círculo de artistas e foi aí que conheceu a primeira mulher, Julia, que teria enorme impacto na sua vida. Isto coincidiu com o estalar da crise económica mundial.

 


 

publicado por Luís Naves às 19:15 | link do post | comentar
Domingo, 15.01.12

Danúbio

Não era alguém para sentir nostalgia, mas ficou parado a olhar para a água e a pensar como a corrente impetuosa se parecia tanto com a vida das pessoas. O rio, amálgama das chuvas que a grande planície aprisionava, escondia o borbulhar de muitas almas inquietas. Distraiu-se a olhar para a cidade. Inclinou-se no muro, alheio ao trânsito que passava na estrada atrás, e a sua imaginação vogou pela linha de casas da outra margem. Estava frio. Ajustou melhor a gola do sobretudo, compôs o cachecol e o chapéu fora de moda que trazia à cabeça, e caminhou até à ponte, passou o cruzamento e entrou na praça. A torre da igreja entristecia na sombra da colina, as árvores já tinham perdido as folhas. Nuvens densas pairavam. Eram cinco e meia, hora do crepúsculo.
Depois avançou até um velho café que se chamava Gagarin, viu a sua imagem reflectida na vidraça. Olhou para um lado e outro, mas sem denunciar a tensão; uma visão de águia sobre a praça inteira. Sonolento perigo.
Observou daquele lado: um casal de namorados fingia trocar beijos no banco do jardim (com aquele frio!) Uma carrinha de entregas estacionada, o condutor lá dentro; e o falso jardineiro, a aparar canteiros, mas sem se incomodar muito e, acima de tudo, sem olhar na sua direcção. Havia um homem à porta da igreja; parecia tão autêntico, até tinha sapatos velhos e não se tinham esquecido de lhe sujar as unhas. O homem olhava fixamente na sua direcção, de baixo para cima, e isso atraiu-o: viu a tristeza, meio imbecil, da cara inchada, o saco de plástico onde guardava os tesouros. Sentiu desprezo e tentou recuar, mas o outro não o largava, por isso aproximou-se mais. Não era para lhe falar, mas para se certificar de que não era um deles, um fingidor.
   − Você…
O outro disse aquilo como que acusando, o beiço inferior tremia-lhe.
   − Conhecemo-nos?
   − Roka! Você é Zoltán Roka!
O passado, mais um fantasma, sempre as antigas contas, o fechar do círculo, o regresso dos espíritos, medos adiados, o retorno.
Tentou negar, mas o homem esticou o dedo, não negue, conheço-o bem, e vacilou um pouco; este não era um deles, mas um castigador; e o que lhe fizera tinha de ser feito, queria explicar-lhe isso, protegi-te, mesmo não sabendo quem tu és, pois com outro terias sofrido mais, talvez perdido a vida…


 

publicado por Luís Naves às 15:26 | link do post | comentar

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