A lista telefónica
Quando terminava o seu doutoramento, István Herzog decidiu, por brincadeira, memorizar a lista telefónica de Budapeste. Nesse tempo, já muita gente tinha telefone e a lista de 1935 era, apesar de tudo, um livro bastante grosso.
Os amigos do académico ficavam espantados quando ele acertava nos números e aquela habilidade tornou-o popular nos cafés. Os outros colegas liam um nome e Herzog dizia o número de telefone da pessoa. Aquilo impressionava muito, pois revelava a prodigiosa memória do professor, cujas investigações em física, aliás, começaram por ser promissoras.
Enfim, veio a guerra, depois o regime comunista. A universidade perdera muitos dos seus talentos, mas lá continuava o prodigioso professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste de 1935. Os alunos habituaram-se a perguntar a Herzog se sabia o número de telefone de fulano, morador na rua tal e tal, e espantavam-se quando ele respondia correctamente.
Certa vez, sendo necessário controlar os meios académicos, chegou à universidade um comissário e o homem do partido ouviu falar no caso e não resistiu a fazer ele próprio um teste, porque era desconfiado e queria certificar-se da autenticidade da proeza. Pediu uma lista telefónica de Budapeste do ano certo e escolheu um nome ao acaso. Disse-o em voz alta e Herzog acertou logo no número, mesmo sem necessitar da morada.
- Como é isto possível? - perguntou o comissário.
- Não sei -, respondeu o professor.
- Só é possível porque vivemos num pais socialista -, sentenciou o comissário e, por um instante, ocorreram-lhe várias ideias para usar aquele talento. Percebeu que podia ser uma boa maneira de ele próprio ingressar na comissão central do partido, mas logo se lembrou de que o professor memorizara a lista telefónica de 1935, que pertencia a outra era. Não podiam aparecer em frente aos líderes a ditar nomes de burgueses. Enfim, muitas pessoas já não estavam na lista, outras tinham mudado de número de telefone, algumas até podiam estar presas. E quando pediu ao professor de física que memorizasse a lista telefónica de 1954, este disse que era pena, mas não conseguia. Isso incomodou o comissário e Herzog passou a ser persona non grata. Deixou de fazer investigação, depois deixou de dar aulas, depois perdeu parte do salário e já ninguém lhe fazia o teste dos números de telefone e os seus velhos amigos viravam-lhe as costas.
O conhecimento inútil do professor Herzog perdeu-se para sempre quando o académico faleceu, de uma banal pneumonia, aos 81 anos, já no final da década de 70, quando o regime suavizava os seus rigores.
Mas na universidade ainda hoje se fala na fantástica memória do professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste.
As pessoas que contam a história enganam-se muitas vezes no nome e chamam-lhe Herceg, e Ferenc em vez de István. Alguns contam mal o episódio do comissário e transformam Herzog num anticomunista, que ele nunca foi. Não se recusou a decorar a lista telefónica de 1954, apenas disse que não era capaz.
Muitos enganam-se na especialidade do professor e há quem afirme erradamente que era perito em literatura; um mito dominante é de que sabia de cor todas as obras de Shakespeare.
Outros ainda enganam-se no ano da lista telefónica. 1936 aparece na maioria dos relatos. E, em certos casos, 1937.
Herzog nunca descobriu o que procurava. Tentava chegar a uma teoria sobre partículas, mas escapou-lhe sempre algo de essencial e os seus cálculos estavam num dossier que se perdeu num estúpido incêndio, em 1999, onde se perderam também muitos velhos papéis da universidade e uma lista telefónica de 1935.
(Este conto de 2010 foi publicado no blogue Emoções Básicas, numa versão mais curta)