Bica curta
Pediu uma bica curta e o empregado colocou sobre a mesa uma espécie de sopa negra, a chávena cheia até ao topo, o líquido excessivamente quente e sem a película de espuma queimada que era metade da graça numa bica curta. Ainda por cima, entregue com maus modos. O empregado deitou-lhe um olhar manhoso e na sua expressão ligeiramente torcida percebeu um vislumbre de ódio.
Em todo o café, as pessoas de carácter eram raras. Aliás, não viu nenhuma. Observou o triunfo dos gananciosos e dos videirinhos que se espalhavam em grupos pelas mesas, uns mais alegres, outros pensativos, uns a pedir galões, outros torradas a escorrer de manteiga. Pensou que o caminho estava facilitado para tolos e cínicos. Que os profetas da desgraça e os vendedores de sonhos, por muito que se enganassem, tinham sempre mais audiência do que os lúcidos. E não havia espaço para homens sem rótulo.
Reparou na ausência de discussões, notou que todos concordavam uns com os outros, fazendo salamaleques, num sorridente unanimismo. Naquele café, o carácter era tratado com desprezo e a independência de espírito criticada. Ele era o único que não pertencia a grupinhos, portanto, uma anomalia que o empregado detectara. Daí a pequena crueldade da bica cheia e a embirração do gesto, sobretudo a omissão com que fora tratado, como se fosse transparente. Por isso, ficou ali mais um minuto, a observar as falsas elites e a subserviência que mostravam.
Até se cansar. Então, tirou uma moeda do bolso, que deixou sobre a mesa, ao lado da bica intocada. Saiu, devagar, tentado ser altivo, mas esmagado pelo ardor de uma angústia que não sabia de onde vinha. O empregado nem sorriu ao pegar na moeda deixada, apesar dela incluir uma generosa gorjeta. As pessoas no café aumentaram o ruído das conversas, como se estalasse o alívio de o verem sair. Houve até algumas gargalhadas.
E, sem olhar para trás, sem saber que estava louco, o louco foi descendo a avenida.