Terça-feira, 13.12.11

A viagem (5)

O comboio ficara parado na estação do Rossio e o major Neves, que sentira uma pequena pontada de dor no peito, sorriu com tristeza para as duas amigas, que continuavam a tagarelar alegremente, alheias à catástrofe que os rodeava. Muito pálido, estranhando a ausência de passageiros, levantou-se discretamente, pediu licença, e saiu à procura de um ferroviário que pudesse esclarecer o enigma. Encontrou um homem com ar de responsável pelas operações, que deambulava pelo cais, em uniforme; saiu da carruagem (por um momento, ocorreu-lhe que o comboio poderia começar a andar naquele exacto instante e não se afastou). Nem se apercebeu do tom impertinente e autoritário que usou com o responsável:
   − Ò faxavor, a composição está atrasada. No horário dizia 10 e 30. É inadmissível, este serviço africano. Paguei bilhete e não foi barato.
   − Este é o comboio das 10 e 40. Faça favor de embarcar. E se pagou bilhete, já o veremos.
O outro respondera com ar de quem lhe dava pouca relevância e o major sentiu-se vexado com a insinuação de desonestidade. Estava tão pálido, que ao corar de forma abrupta quase se sentiu mal. Mas lá subiu, com dificuldade, e sentou-se junto às duas amigas, ainda alheias ao drama, e que conversavam, belamente iluminadas pela luminosidade sombria da magnífica estação.
O major não descansou enquanto o maldito comboio não saiu, também ele vagaroso, na direcção do túnel. Começara entretanto a aperceber-se melhor dos detalhes que o rodeavam, o veludo elegante dos assentos na carruagem, num vermelho cor de vinho que fazia contraste perfeito com o cabelo louro da enfermeira Ângela Maria. E pensou, numa espécie de susto, que nunca a vira assim vestida: ela trouxera, naquela manhã, um decote mais aberto que deixava adivinhar o esplendoroso peito, muito branco e largo. Ângela usara sempre vestidos cobertos até ao pescoço, muito pudicos, e era espantosa aquela metamorfose, afinal uma alteração tão insignificante que mudara completamente a percepção da pessoa. De súbito, o major foi atacado por uma onda horrível de calor, cuja única solução seria abrir a gravata e o colarinho da camisa, libertar-se do colete e despir o casaco, que era tudo o que não podia fazer. Sentiu-se oprimido pela própria roupa, que lhe picava a pele e fazia ferver o sangue.
Neste ponto surgiu o ferroviário, que era afinal o cobrador do comboio e que pediu os bilhetes às senhoras, muito amável, com um sorriso amplo, descobrindo a cabeça, erguendo o chapéu redondo com um gesto distinto. E o major reparou que o funcionário lhe pedira também a ele o bilhete, mas em maus modos.
O major tirou do bolso os três bilhetes, entregou-os, e o biltre ficou longo tempo a observá-los, como se houvesse uma irregularidade. Depois, num tom de voz policial, disse:
   − Então, compras três bilhetes de segunda classe e ocupas a carruagem de primeira?

 

(continua)

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Domingo, 11.12.11

A Viagem (4)

(...)

II

Antes de sair da pensão, o major José das Neves já estava muito enervado. O atraso de dez minutos no fiacre que tinha combinado na véspera quase lhe provocou uma fúria, mas teve de se conter, para que Dona Efigénia não percebesse a sua inquietação. A irritação crescia-lhe no íntimo, mas manteve-se quase impávido (não podia ver-se ao espelho, mas corara profundamente). Iam atrasar para o comboio e, depois, haveria uma sequência catastrófica de eventos que comprometeriam os planos. A história da sua vida, afinal, um constante chegar atrasado.
Fizera 50 anos e sentia pesar-lhe no corpo pelo menos uma tonelada. E agora, que chegara atrasado ao amor, não aparecia o maldito fiacre e cairia no ridículo. Ela iria rir-se, perderia aquela doce expressão que o cativara numa rede de encantos, e diria, em tom cruel, que nem para preparar umas férias ele servia.
Levara para baixo duas malas, ajoujado como um sipaio. A sua e uma de Dona Efigénia. Que diabo, cansara-se, e o senhor Antunes, empregado da pensão, só levara a segunda mala da senhora. Sendo velho, compreendia-se, mas era inadmissível aquele serviço, o cliente a fazer de machimbeiro. Esticou o colete, viu as horas, resmungou qualquer coisa e amaldiçoou os cocheiros de Lisboa e o maldito calor que lhe comprimia as têmporas. Os pensamentos divagavam e sentiu que Dona Efigénia se preparava para fazer a pergunta fatal, onde estava o transporte, quando este apareceu ao fundo da rua, em alta velocidade. Doze minutos de atraso, contou o major, uma piolheira de país incapaz de cumprir um horário.
Ainda pensou em malhar no cocheiro, mas pensou melhor e conteve-se. Dona Efigénia ia perceber o atraso e seria um ponto a seu desfavor. E ordenou que se fustigassem os cavalos na direcção da estação do Rossio, simulou uma boa disposição que não tinha, calculando por baixo a gorjeta, ou antes, decidindo que não a daria. Mas chegaram num instante, por portas e travessas, e ele reconciliara-se com o mundo, tal era a felicidade da amiga, sentada a seu lado e inebriada com o vento, com a cidade, com a luz esplendorosa da manhã. Que magnífica ideia ela tivera, pensou. Uma casa em Sintra durante duas semanas, e apenas por 1500 réis. Nem hesitara, pagara de imediato. Vamos de férias, dissera, como se anunciasse uma vitória. E ela bateu as palmas, mais parecendo uma criança a receber chocolates.
Efigénia trouxera um vestido de verão, muito leve. Observou-a. Tão singela, tão pura. Com um dedo estava a enrolar o cabelo cor de azeitona negra e era um gesto imaculado, que acompanhava o sorriso de quem tinha todo o tempo à sua disposição. Mas ele olhou para o relógio e faltavam apenas 15 minutos para o comboio sair. Entraram na estação em grande azáfama, os bagageiros oferecendo os préstimos. Deu ao cocheiro uma gorjeta apreciável e, numa onda de pânico, olhou em volta, à procura de Ângela Maria, que Efigénia insistira em trazer para as férias.
   − É a sua enfermeira, meu caro amigo. Não deve prescindir dela. Será uma excelente companhia.
Impossível insistir em que Ângela não viesse, ou iria parecer muito ousado da sua parte. Efigénia era viúva, ele nunca casara, haveria maledicência, enfim, não parecia apropriado passarem ambos sozinhos quinze dias na mesma casa, embora fosse o que acontecia na pensão; muito complicado de explicar; na pensão havia testemunhas de que não acontecera nada entre eles; enfim, acontecera aquele beijo larapiado, ao final da tarde, e que esfolara a sua alma, no dia em que tinham decidido passar férias em Sintra; mas ninguém os vira, por isso não contava (rejeitava a ideia, começara a falar sozinho); não contava, não senhor, fora tudo inocente.
E decidiram que Ângela iria também de férias. E onde estava agora a enfermeira? Havia apitos na estação, vozearia, fumos e o espalhafato das máquinas (nas fornalhas resfolegava um regimento de cavalaria). Na bilheteira, pediu os bilhetes e o empregado fez uma pergunta impertinente, para que horário queria, qualquer coisa assim, e foi ríspido na resposta, sem reparar chamou besta à criatura, voltou a pedir três bilhetes de primeira para Sintra e o funcionário amainou e até lhe apontou o comboio, aquele ali, no cais número um.
E com alívio viu Ângela Maria, esplêndida, que corria no átrio (nunca tinha reparado no seu peito tão farto), e lá foram os três para o cais número um, para a carruagem de primeira, seguidos por três melancólicos bagageiros em uniformes cinzentos, um pequeno e submisso exército de cafres.
Sentaram-se confortavelmente, mesmo a tempo, na carruagem vazia. Faltava um minuto, depois 30 segundos. Ouviu-se o apito estridente da locomotiva, grande como um zambuco, e o major antecipou com prazer os espasmos do arranque. Mas não houve movimento. Reparou então que o comboio do cais número três começara a avançar vagarosamente e entrara no túnel, num tropel alucinado, largando grandes bolas de fumo que escureciam tudo à volta.

 

(continua)

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Quinta-feira, 08.12.11

A viagem (3)

(...)

Efigénia explicou que ali, naquele mesmo lugar, tivera longas conversas com o major, enquanto a luz do fim da tarde deslizava sobre os telhados de Lisboa.
   − O major adorava esta luz, − disse ela, abarcando com um gesto largo a paisagem que se avistava das traseiras daquele terceiro andar da rua da Escola Politécnica, a colina toda espraiada até ao azul intenso do rio.
   − E como era o major? − Perguntou Luciano.
Ela fez uma longa pausa, pareceu ganhar alento para acabar num gemido cansado e cheio de saudade.
   − Nunca lhe agradecerei o suficiente pelo que fez por mim, Luciano, enfim, por nós. − E só então o jornalista pensou em Ângela, a misteriosa enfermeira, que desaparecera mal tinham chegado à pensão. Fora algo estranho, subir aquelas escadarias onde, na véspera, ocorrera a tragédia. Luciano esperara encontrar gente comovida, agitada, ouvir comentários azedos, mas nada disso. Efigénia reentrou na casa como se fosse uma condessa a voltar ao seu castelo, cumprimentada com deferência por uma velha que parecia a proprietária do estabelecimento.
Nas conversas curtas que se seguiram deduziu que a pensão tinha dois andares: o mais espaçoso, onde se encontravam agora, para hóspedes burgueses, e o andar de cima para clientela mais ocasional, de trabalhadores do comércio e profissões modestas. Alguém lhe apontara o quarto do major, agora vago, e que era um dos mais amplos e limpos. Efigénia despediu-se dele e pediu-lhe que regressasse ao fim da tarde, pois queria primeiro descansar, refrescar-se, mas pretendia continuar a conversar, pois tinha-lhe já muita estima. E o jornalista esperou na rua, deambulou penosamente pelo bairro, comeu qualquer coisa rápida, mas sem sentir apetite, passou pela redacção, explicou que não havia novidades, e à hora que ela sugerira regressou à pensão.
Efigénia parecia uma princesa. Embora vivesse num quarto alugado, e isso era temporário, ela movia-se como se estivesse na sua casa. E, como que por magia, depois de terem colocado chá numa mesa, a criada e a proprietária desapareceram de repente, e ficaram os dois sozinhos, numa pequena sala confortável, que tinha uma espécie de marquise virada para o casario da cidade e cujas janelas abertas permitiam que soprasse uma brisa fresca.
   − Estivemos a arrumar as coisas do major e encontrei isto − mostrou-lhe uma medalha dourada e vermelha, mas Luciano nada percebia de medalhas militares, fez um gesto a anunciar a sua ignorância.
   − Era um herói, − acrescentou Efigénia. − Agora sei isso.
Devia apetecer-lhe desabafar com um ombro amigo. E foi o que fez: contou-lhe como conhecera ali o major, naquela pensão onde ambos viviam, numa etapa de percursos sinuosos. Efigénia, nesse ponto, explicou que era viúva. Nenhum dos dois tinha família e, a pouco e pouco, desenvolvera-se uma amizade sólida. O major tinha problemas de saúde, resultado das campanhas coloniais em que participara, e por isso surgira Ângela, que era uma enfermeira diplomada na Suíça. Efigénia reparou na expressão de Luciano e criticou-o suavemente, com o dedo espetado.
   − Não deve pensar mal, meu amigo. É uma profissão respeitadíssima na Europa. Só em Portugal é que as pessoas reagem dessa maneira. Este é um país incivilizado e os hospitais são pocilgas.
Enfim, tendo em conta os problemas de saúde do major, tinham decidido ir os três de férias, por duas semanas, para Sintra:
   − Uma casinha linda. Foi o nosso sonho durante aquelas semanas em que preparámos a expedição.
Luciano deve ter feito mais uma expressão de espanto. Num turbilhão de pensamentos, por um instante que não conseguiu disfarçar, pareceu-lhe demasiado picante uma senhora tão distinta passar duas semanas com um cavalheiro na mesma casa, enfim, não parecia próprio. Foi questão de fracções de segundos e logo lhe ocorreu uma explicação plausível, certamente iam para uma casa de família (dela, era forçoso) e havia outras pessoas envolvidas.
Efigénia riu-se, mesmo sem ouvir a objecção. Era como se tivesse entendido cada pensamento. E a sorrir era linda: uns dentes de porcelana, lábios perfeitos, doces, o olhar arguto, que faiscava:
   − O major estava doente. Tinha a sua enfermeira. Era tudo inocente, bem vê, perfeitamente inocente, pois não é assim que vivemos?
Aquela frase foi um alívio, mas ele ia insistir, perguntar a quem pertencia a casa, quem mais estaria nessas férias na serra, planeou uma forma de não parecer demasiado curioso e ainda pensava numa abordagem quando ela mudou habilmente de assunto, e só regressou à história um pouco mais à frente, quando a cidade já ganhava tons de azul e cinzento e a luz desaparecia no lado do mar. Foi então que Dona Efigénia começou a narrar o que acontecera naquela terrível viagem para Sintra e com os horríveis carbonários.

 

(continua)

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Segunda-feira, 05.12.11

A viagem (2)

(...)

Era uma mulher alta, dos seus trinta anos, muito nobre de perfil, com um cabelo estranho, negro mas extraordinariamente liso. Tinha um ar melancólico e estava sentada à mesa, tentando enrolar com o dedo o cabelo que nunca assumia a forma de caracóis. Um gesto de nervosismo ou o gesto de quem simulava inquietação?
Trocaram algumas palavras e Luciano percebeu de súbito que estava perante uma mulher espantosamente bela, sobretudo inocente e cheia de bondade, vítima de um equívoco. Sentiu-se corar com aquele pensamento, que não foi provocado por alguma frase em particular ou pelo tom de voz ou pela postura de Dona Efigénia, que continuava sentada com tranquilidade, apesar do grande frémito que se lhe adivinhava em cada molécula do corpo. Quis defendê-la, sim, foi essa ideia que o invadiu. Sentia-se um defensor da justiça, indignou-se com a ausência de um advogado que a pudesse tirar daquela situação degradante.
Em cinco ou seis frases que trocaram, percebia-se o seguinte: o major Neves falecera, vítima de apoplexia, e as duas amigas tinham velado o corpo, esquecendo-se na aflição de convocar a presença de um médico que confirmasse o óbito. Uma questão processual, enfim, um morto é um morto, deve ser tratado com respeito. E tinham sido presas por tão pouco, uma ridicularia, suspeitas de crime por envenenamento, àquele nosso bom amigo? Luciano quis saber mais sobre o major e sobre as circunstâncias da doença súbita. E as explicações surgiram a pouco e pouco, um farrapo aqui, um pequeno choro silencioso, outro farrapo ali, mais lágrimas subtis, um suspiro gentil, um gesto a pedir perdão seguido de silêncio triste, outra frase esclarecedora, uma pausa de reflexão pesarosa. Dona Efigénia foi pungente no seu relato e Luciano ia ficando mais revoltado com aquela óbvia injustiça. Prenderem uma mulher tão virtuosa!
A certo ponto, abandonara a entrevista e falava com ela como amigo. Arrebatado, comprometeu-se a ir procurar um advogado, que a tiraria depressa daquela vicissitude.
   − E a amiga, não se esqueça da minha amiga, − disse ela.
Sim, havia a cúmplice, enfim, a outra prisioneira.
   − Também a libertamos, − prometeu o paladino.
E saiu para cumprir a missão. Teve sorte e não gastou muito tempo. Conhecera o bacharel Márcio Andrade nos bancos de escola e apenas recentemente se tinham separado os seus caminhos, ele nas aventuras da imprensa, o amigo a defender causas justas, ambos no mesmo lado da barricada. Por vezes encontravam-se, à noite, vagueavam pelos cafés do Chiado e no passeio público, antes de irem ao teatro. Geralmente falavam sobre literatura, em longas conversas. Márcio era o que mais próximo tinha de um amigo e provou-o mais uma vez, ao aceitar libertar as duas damas em perigo, mesmo com as deficiências da explicação balbuciada por Luciano, numa história cujas falhas seriam em breve esclarecidas.
O procedimento foi rápido. A acusação de terem ignorado as autoridades foi explicada pela extrema comoção e choque de verem assim falecido alguém de importância nas suas vidas. Era perfeitamente plausível que tivessem ignorado os procedimentos adequados, de chamar um médico, comunicar à polícia. Nervosismo feminino, um mal-entendido simples, agora desfeito e esclarecido.
Os papéis da liberdade ficaram devidamente assinados, Márcio a recusar qualquer paga pela sua intervenção, um prazer ser útil a vossas excelências, disse ele, erguendo ligeiramente o chapéu, recebendo em troca um encantador sorriso de Dona Efigénia, agora ainda mais deslumbrante. E descia as escadas, nesse momento, uma mulher loura, uma estampa, que Luciano identificou imediatamente como a outra suspeita. Apresentaram-se:
   − Luciano de Morais, jornalista.
   − Márcio de Andrade, advogado.
   − Ângela Maria, enfermeira.
Enfermeira? Os dois amigos olharam-se, surpreendidos. Márcio despediu-se, tinha assuntos urgentes a tratar (e tinha mesmo, ainda pensou em acompanhar as senhoras mais um pouco, mas lembrou-se do prejuízo potencial no outro negócio; hesitou, amaldiçoou a sorte, hesitou mais um pouco e decidiu-se pelo dever).
Assim, foi Luciano quem acompanhou as duas senhoras até à pensão onde morava Dona Efigénia, com oportunidade dourada para ouvir o resto da história.

 

(Continua)

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Domingo, 04.12.11

A viagem (1)

Em cada dia de trabalho, antes de seguir para a polícia cívica, Luciano ganhara o hábito de passar num botequim do caminho e beber um bagaço que lhe aconchegava o estômago e tranquilizava os nervos. Fez isso mesmo, desatento, a pensar em sair daquela vida. Lisboa andava agitada, o Verão de 1910 demasiado quente, as discussões políticas e o ambiente geral de conspiração, que não ajudava ao sossego das almas. Uma vez, quase emigrara para o Brasil, chegara a ter o dinheiro para o bilhete do barco, mas fraquejara-lhe a disposição à última hora. Depois, a ideia dissipara-se, devagar, num sonho vago que, não morrendo inteiramente, ia ficando apenas num cantinho escondido das suas ideias.
Não era homem para aventuras e, nessa manhã, tudo lhe pareceu tranquilo. O guarda de serviço explicou-lhe que não se passara nada de especial, apenas rotinas, uma cena de pancadaria, uns meliantes no calabouço, mas nenhum deles com um nome que brilhasse em notícia de jornal. Não, senhor Luciano, não se passara nada de especial, apenas uma noite tranquila. E, de repente, o homem fez um esgar de surpresa, de quem se lembra de algo, assim, há uma mola que estala no crânio e que faz trabalhar a relojoaria delicada da memória, e a pessoa tem de fazer aquele gesto um pouco imbecil que é um misto de pedir desculpa e assumir uma falta grave, apesar de tudo perdoável:

   − Como é que eu me esqueci disto? O caso das mulheres detidas por quererem enterrar um morto…
   − Assim, sem mais nem menos, enterrar o morto…
   − Assim, sem mais nem menos, uma história escabrosa, que deve interessar ao seu jornal, senhor Luciano.
O repórter pensou que os mortos são para enterrar, nem servem para outra coisa, mas fez um ar desinteressado e ao mesmo tempo entendido das subtilezas do crime; afiou o bigodinho fino, molhou os lábios, tentando não revelar a ansiedade (àquela hora já estava um calor das colónias). Tirou o bloco de notas e disse:
   − Mas conte lá isso, senhor guarda.
E o outro narrou uma história confusa de como duas mulheres tinham velado o morto sem chamar as autoridades. Denunciadas e presas, suspeitas de crime, naturalmente.
   − E quem era o falecido?
   − Deixe-me ver… − o guarda consultou um grande livro cinzento, tomou-lhe bastante tempo, leu, numa voz arrastada, que era um tal Major José Neves. Ou das Neves, não ficou muito claro.
   − E morreu de quê? Envenenado?
   − Ah, isso não sei!
   − E posso entrevistar as assassinas em primeira mão?
O cívico aceitou a propina da praxe e facultou-lhe o devido acesso às entrevistas. Subiram até aos calabouços e o repórter começou de imediato a desconfiar do enredo que lhe tinha contado o agente. As mulheres estavam numa das melhores celas, da ala esquerda, ou antes, em duas celas, porque havia duas suspeitas e uma delas era uma senhora, por sinal distinta, a dona Efigénia, chamava-se.

 

(continua)

publicado por Luís Naves às 23:16 | link do post | comentar

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