Segunda-feira, 04.06.12

Maurice Ravel, Concerto de Piano, 2º andamento (Adagio)

Celebração do crepúsculo, céu em fogo, telhados de ouro. Foge a luz, pairam vaga-lumes efémeros e lá no alto espalham-se brasas de carvão ardente como algodão cor-de-rosa na brisa de Agosto. É a hora dos gatos à solta, paredes-meias com os becos cheios de sombra, das conversas à beira-rio, da melancolia a meia-voz e do tédio fatigado, das pequenas contemplações do universo. A hora dos abraços tenros e do adeus cheio de saudade, a hora irisada dos sofredores e dos melancólicos, mas também das nuvens de fumo que dançam no ar, com fantasia.
Nos bairros populares há um vislumbre das roupas estendidas nos varões, pontos brancos a esvoaçar, desvanecendo-se na cinza geral da luz mortiça que invade o mundo. Os jardins coloridos já adormeceram e nascem as primeiras estrelas, muito lá em cima, antes do artifício branco da Via Láctea. Há poeira e leveza de cristal e chega a noite.
A cidade acende as luzes, devagarinho.

 

Aqui

(Acho uma obra-prima, de Ravel, do séc. XX, da Civilização Ocidental)

publicado por Luís Naves às 17:53 | link do post | comentar
Sexta-feira, 09.03.12

Alexander Borodin. Quarteto de cordas nº 2 (III), andante (Nocturne)

Atrasara-se no regresso. Olhou a rua longa, que uma fileira de candeeiros iluminava, e que era quase um campo de trevas, pontuado pelas sucessivas clareiras da frágil luz. Do céu, pairava um luar metálico e as nuvens baixas cobriam por vezes essa impudica luminosidade.
Respirou o ar de Novembro e caminhou, fascinado com o som dos próprios passos a cortarem o silêncio. Em sentido inverso, vinha um homem atrasado e os dois, quando se cruzaram, saudaram-se numa dança de solitários onde houve um breve arrepio de incerteza. Sentiu o mundo vagamente deslassado; nas lâmpadas trementes, nas paredes alteradas, nas janelas distorcidas, nos mínimos sinais que restavam daquilo que antes conhecera à luz do dia.
De uma taberna vinha um ruído quente, canção imperceptível, e a noite tornou-se mais apertada. Teve um pouco de frio e apressou-se, fechando ainda o casaco. Ao andar, criara uma melodia que não era melancólica, mas que lhe fez lembrar o sono tépido dos que adormeciam nas suas casas.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 18:29 | link do post | comentar
Terça-feira, 03.01.12

Prélude, Cinco Peças p/ dois violinos e piano (Dmitri Chostakovitch)

A terra está ferida em ruínas cor de cinza. Aqui viviam famílias, havia casas modestas, o caminho de lama que as carroças percorriam, rodas de madeira rangendo como veleiros no gelo. O vento era uma melodia distante e ainda vejo aquela camponesa à porta de sua casa, a olhar-me porque eu era um intruso na aldeia.
E à noite, na festa, as raparigas dançaram e a alegria humana encheu de tal forma o meu coração que ainda ficou um pedaço de mim no que resta.
Ouço o ritmo das botas, os cantis a baterem nas coronhas das espingardas à bandoleira, os homens silenciosos a olharem as casas esventradas. O regimento atravessa a aldeia morta, mas ninguém diz uma palavra, como se estivéssemos numa igreja.
A guerra espera-nos depois da colina, do outro lado da memória. A estrada quase desapareceu, mas os campos estão de novo cheios de flores que podiam sorrir-nos das janelas.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 11:00 | link do post | comentar
Quarta-feira, 30.11.11

Valse Triste (Jean Sibelius)

Há muitas gotas de água a flutuar na brisa, dançam umas com as outras, felizes. A erva alta, de verde amarelado, ondula como um mar de sargaços, entre brilhos, remoinhos e carícias. A planície estende-se para além das folhas de ácer que escondem o horizonte e ao fundo vejo uma casa cor de cinza, mas isso nada significa; as folhas bailam ao vento, com um frufru de vestidos numa agitação alegre, que roda e cintila. Vejo as borboletas que passam, duas azuis, indiferentes, batendo asas ao ritmo do coração embalado. E, pouco depois, talvez muito depois, dilui-se a luz delicada e chega devagar a escuridão imprecisa que anuncia vagas de mil insectos no começo da sua festa nocturna. Há ainda um drama final, do ar que adormece, e sinto ligeiro arrepio de frio, da noite que avança, triste, a segurar nos braços a sua amada branca, a neve que sopra do alto, rodopiando, num ritmo que acelera pela sala toda que é o mundo.

 

Aqui.

publicado por Luís Naves às 19:58 | link do post | comentar

pesquisar neste blog

 

posts recentes

tags

links

arquivos

subscrever feeds