Domingo, 03.02.13

Kiss me and say goodbye, that's love

3

Certa sequência de acontecimentos podia ser definida com relativa precisão. Varga conversou com a senhora Matuska no pequeno café que esta mantém na estação de Kispest; parto do princípio de que foi apenas conversa de circunstância, sem cumplicidades, meio esquecida devido ao turbilhão de momentos banais que forma cada existência, esse confuso e fragmentado fio que devia ligar a ordem dos factos mas que, na realidade, transforma o filme da nossa vida numa catadupa de imagens em fuga. Varga podia até conhecer a proprietária do café, podiam conhecer-se de situações antigas. Quem sabe, uma fonte, uma reportagem? Mas acho mais provável que ele estivesse a pensar (é apenas uma hipótese, a minha especulação) no desgosto físico que lhe produziam todos os sinais de declínio à sua volta e que eram o testemunho do estilhaçar de uma época. A sujidade no chão, as pessoas nervosas, a linguagem caótica, os jornais imundos. Tudo isso representava o colapso dos sonhos, uma informe cacofonia de sons e uma mistura quase assustadora de queda e antecipação da morte. Era, apesar de tudo, uma cruel matéria de reflexão que devia ocupar os seus dias: o que sucedera à utopia e aos devaneios? Acredito que Varga tenha pisado aquele chão com mais amargura, que tenha descido as escadas com um peso na alma. Depois, ao tomar a linha número dois do metropolitano, penso que escolheu um lugar à janela e deve ter dormitado um pouco (o sol de inverno entrava na carruagem muito quente) embalado pelos solavancos da linha velha, até sair no centro da cidade, talvez na estação da praça Deák. Atrevo-me a dizer que saiu ali, porque ali voltaria mais tarde e porque é o coração de Budapeste e um centro de poder. É onde sai sempre mais gente, e Varga já só era mais um entre muitos.

 

publicado por Luís Naves às 16:16 | link do post | comentar
Segunda-feira, 31.12.12

O café da estação

2

A senhora Matuska olhou-me com o gesto dos míopes, num esforço da vista, medindo o meu aspecto como se dissesse, baixinho, que as minhas intenções eram suspeitas. Mostrei-lhe o meu cartão de visita, que tem umas decorações sugestivas, e depois um recorte de jornal onde constava uma grande fotografia de Joszef Varga. Ela perguntou-me se eu era jornalista e respondi-lhe que não: embora escrevesse em jornais, era na realidade escritor. Foi ainda pior do que confessar a um membro da máfia albanesa que era membro honorário da polícia judiciária.
   “Então, não estou a ver qual possa ser o seu interesse no caso”, disse ela.
   Tive de recorrer à mentira acrobática:
   “Conhecia pessoalmente o senhor Varga”, (e isso era verdade) “e vou escrever um livro sobre ele (mentira) e queria saber todos os pormenores daquele dia, com quem falou e o que disse na ocasião, (verdade) por causa do rigor que pretendo imprimir ao livro” (imprecisão, evasiva, mentira).
   Fui apenas meio credível. Sabendo do gosto de Varga por café pela manhã, era possível, até provável, que ele pudesse ter parado ali e conversado um pouco, antes de seguir no seu passeio de pensionista. Para mim, era fácil imaginar aquele idoso alto e curvado, de sobretudo e chapéu, a entrar no pequeno estabelecimento da senhora Matuska, uma mulher que já tivera sem dúvida os seus tempos de glória. Dizer uma graça ou simplesmente esperar que ela fizesse a despesa da conversa.
   A mulher observou atentamente a página do jornal. Recordava-se do caso.


  

publicado por Luís Naves às 18:18 | link do post | comentar
Terça-feira, 05.06.12

Joszef Varga saiu de casa às 8 e 15

1

Os vizinhos disseram que Joszef Varga saíra de casa por volta das oito da manhã, mas em notícia publicada no jornal Liberdade do Povo, uma testemunha precisava a hora e o minuto, 8 e 15, assinalando que há velhos hábitos de vigilância que custam a passar no nosso país. Aquele fora um amanhecer de final de inverno, com o vento ainda frio e teimoso que preserva a neve da véspera, tornando os pavimentos escorregadios. Nas horas iniciais do dia, de azulado uniforme, uma bruma húmida aconchegara a cidade, mas dissipou-se devagar, até a atmosfera ficar translúcida. E, a pouco e pouco, o sol instalou-se, aquecendo o dia manso. As águas do Danúbio corriam para longe, numa inquietação.
Varga vivia sozinho. Era uma figura magra, curvada e austera, de ar distinto, com pobreza escondida. Naquela manhã, vestia um sobretudo escuro e tinha na cabeça um antiquado chapéu de abas e ao pescoço um cachecol de padrão escocês, aos quadrados azuis e verdes, quase tão vivido como quem o vestia. Tinha pouco mais de 70 anos, mas parecia mais novo, talvez por causa do nariz grande, deformado, e do cabelo cortado curto. Sorria pouco. No conjunto, o seu aspecto era capaz de assustar crianças e intimidar quem lhe faltasse ao respeito. Naquele dia, não dirigiu a palavra a nenhum conterrâneo, mas esse era o seu hábito. Nem cumprimentou as duas idosas que saíam para as compras, o que elas não estranharam, conforme mais tarde confessaram a um dos repórteres que andou por ali a farejar o caso, porque era assim o comportamento habitual dele, do vizinho mal-encarado que lhes calhara em sorte; hoje em dia, como explicaram, há cada grosseirão nas casas de painel de rendas camarárias; famílias disfuncionais, pré-reformados inúteis a viverem de biscates e expedientes; perdeu-se todo o respeito, salientou uma das idosas, e o jornalista encolhia os ombros, a pedir algum detalhe mais picante e que não fosse do conhecimento geral dos leitores. E o seu vizinho recebia visitas, enfim, percebe o que quero dizer, visitas femininas? As velhotas reagiram escandalizadas: isto é um bairro decente, por quem nos toma?
O bairro é uma amálgama de edifícios desse estilo socialista, afinal sem estilo nenhum. Os prédios são todos iguais, cinzentos como um céu de chumbo, e as janelas, parecendo grandes, acabam por lhes conferir um aspecto geral de cubos invernais sobrepostos, cada um com o seu drama particular lá dentro. Estacionados em frente, ainda se avistam alguns dos carros socialistas, Trabants ou Zastavas que não se fabricam mais e cujas silhuetas evocam uma espécie de arrepio, quando por um instante nos fazem regressar ao passado. 
Na manhã de que falo, nos acessos entre os prédios, havia uma lama congelada que se misturava com rastos de neve suja. Para se encontrar alguém que tivesse trocado algumas palavras com Joszef Varga era necessário ir até à estação de Kispést, com a sua confusão de gente apressada e de impaciência mal dormida. É ali que se pode apanhar o metropolitano da linha número dois, que aparece a azul nos mapas da cidade e que corresponde ao percurso mais suburbano. As carruagens antigas, de fabrico soviético, estão num estado lastimável, cobertas de grafitos, pintadas de alto a baixo com estranhas mensagens em linguagens futuristas. Circulam cheias de sujidade, quase desconjuntadas. E o cais da estação está tão imundo como o resto do país e assim está também a paragem de autocarros e o passadiço erguido sobre a estrada, edifício de arquitectura absurda, dos anos 70, de modernismo comunitário, feio como a noite, e que pintaram num vermelho berrante; ali há alguns pequenos cafés em cubículos infectos, a banca de jornais e revistas, umas mercearias para celibatários, com os seus empregados sempre desconfiados de quem entra nelas.

 

Iniciamos a publicação parcial de uma novela de Lajos Kormanyos, traduzida do húngaro por Luís Naves.

publicado por Luís Naves às 23:09 | link do post | comentar
Segunda-feira, 28.05.12

Delação

Tibor era o rapaz invejado, aquele que os outros miúdos odiavam por saberem que pertencia a uma família influente. Era denunciado por pequenos sinais: os bonitos cadernos que a mãe lhe comprara na cooperativa do partido; a roupa e os sapatos estrangeiros; a deferência calculada do professor. Sobretudo, o orgulho dos poderosos, esse pecado que o povo detesta. É incrível como uma simples criança sabe quando os seus pais têm posição elevada. Tibor era um miúdo franzino e agradável, capaz de fazer amigos, mas ingénuo ao chegar àquela escola onde eram maioria os filhos de operários; deve ter pensado que os outros miúdos o veriam como líder, mas a sua expectativa era infantil. Eles viam-no como um marciano.
Não me lembro com exactidão de como tudo aconteceu, mas a nossa amizade resultou de um episódio que hoje acredito ter sido uma das grandes lições na vida de Tibor. O professor saíra da sala de aulas por minutos e, como era típico na época, colocou um dos alunos como responsável pela disciplina, dizendo-lhe que esperava um relatório completo do que teria acontecido na sua ausência. Tibor era o favorito do professor e foi nomeado na espinhosa missão. Tratava-se de uma simulação, claro, uma falsa atribuição de poder, mas era preciso ter consciência dessa ficção geral que regulava o nosso mundo (ali, numa versão esquemática da política), para compreender que o professor não esperava qualquer tipo de informação sobre o que acontecera na sua ausência. Por isso, foi espantoso o indignado silêncio dos alunos, ao ouvirem Tibor a denunciar cada um dos que se portara mal, incluindo algumas meninas, o que lhe valeria uma vergonha ainda maior aos olhos da turma. Acusou cinco de nós, fazendo um cuidadoso relatório numa voz nervosa e estridente, e o professor, visivelmente espantado (até que ponto estaria com medo?) foi obrigado a punir os infractores. Eu fui um deles, embora não me lembre do que tenha feito.
No intervalo, Tibor enfrentou a fúria dos colegas. Foi emboscado numa zona pouco vigiada da escola e encostado a uma parede. Lembro-me do ar infeliz dele, da forma como de súbito compreendia o erro, talvez da dúvida que passava pelo seu espírito, de que era correcto cumprir a missão que o professor lhe tinha atribuído, mas que havia algo de profundamente errado. Talvez tenha imaginado, com horror, que iria viver o resto da vida sozinho e sem amigos. E o resto da vida, para uma criança, é a eternidade. Na perspectiva de levar mais estaladas, encolheu-se, e por qualquer razão tive pena dele, impedindo os outros rapazes de lhe baterem mais.
“Não voltes a fazer aquilo”, disse eu. E o miúdo indefeso disse que sim com a cabeça, a tentar em vão conter as lágrimas. A nossa sede de vingança estava saciada. Os outros miúdos dispersaram e eu fui o último a deixar o campo de batalha, deixando nítida a autoria de uma clemência que ainda hoje não entendo. Estaria a tentar ser amigo dele? É provável, já que também eu invejava a boa fortuna de quem pertenciam à classe social certa. Vendo bem, sempre o invejei.

 

Nas semanas seguintes, ou meses, já não recordo, tornei-me amigo de Tibor. Durante algum tempo, fui o seu único amigo, o primeiro a esquecer o episódio da delação. Ele levou-me a sua casa, para estudarmos juntos, e isso aconteceu mais vezes. Conheci a mãe dele, Edite, que nos servia um chá a meio da tarde; e, um dia, apareceu o pai, Joszef Varga. Nada tinha a ver com o homem curvado e empobrecido dos seus últimos dias de vida. No início dos anos 70, era alto e magro, direito, uma bela figura, com nobreza no porte, mas também uma faceta algo inquietante que não sei definir, mas que se revelava no azul profundo do olhar interrogativo e agudo. Tinha barba mefistofélica, precocemente embranquecida, e na memória da primeira vez que o vi estava vestido com camisa branca, portanto devia ser um dia quente, talvez de Junho, e ele interessou-se pelos nossos estudos, pois deviam estar próximos os exames. Ouviu as explicações do filho sobre um problema de matemática, sorriu para mim, observando-me com interesse: “E tu deves ser o Lajos”, disse.
E é tudo o que lembro, os bolinhos de Edite e o caminho para a casa deles, uma mistura na minha memória, e a casa antiga, de rés-do-chão e cave, a ocupar o fundo do quarteirão, com uma parte virada para a rua onde havia algum trânsito. Tinha o estuque da pintura pelado como um pêssego podre. Depois, um muro ao longo da rua e esse dava para o pátio deles e para um jardim onde havia nespereiras (julgo que eram nespereiras) e do jardim entrava-se na casa pela cozinha e na sala tinham a grande salamandra e lembro-me também de um quadro, uma cena de camponeses a ceifarem o trigo, e encantava-me aquele movimento dos ceifeiros, o impulso congelado na tela, que era como a própria vida, feita de ímpetos que transformamos em gestos, numa batalha eterna contra o que cresce da terra para nos sufocar e que devemos tentar cortar depressa, antes que nos agarre as pernas e nos prenda ao violento solo.
E parecia-me que os camponeses não cortavam suficientemente depressa e que se afundavam devagar naquele chão voraz, que subia e subia.

publicado por Luís Naves às 12:51 | link do post | comentar
Domingo, 27.05.12

O amor é cruel

Nesse tempo, morava a um quarteirão do Danúbio, numa das melhores zonas de Pest, na esquina da Pozsonyi com a Radnoti, num prédio antigo que foi dividido em apartamentos minúsculos. Se descermos a rua, direcção sul, estamos no boulevard de Szent Istvan e, se caminharmos para ocidente, a meio da ponte, na Ilha Margarida. A casa fora uma sorte, mas tudo o resto era enganador; um ano antes perdera o emprego na rádio. Felizmente, recebia uma bolsa literária de 50 mil forint e a casa tinha renda barata, camarária, julgo que não passava dos dez mil, o que era uma ridicularia. Enfim, o suficiente para uma vida de escrita, mas com os centavos todos contados. Sem os biscates, provavelmente tinha sido forçado a mudar de profissão. A minha mãe, que ainda era viva, dizia-me sempre que um canalizador fazia mais dinheiro, e era verdade, mas não me importava com estas censuras: não deixa de ser respeitável ver um tipo seguir o seu sonho.
O inverno desse ano acabou num murmúrio, que tinha a suavidade de um tempo a escoar-se ao ritmo de manhãs translúcidas. Durante semanas, quase não saí de casa, porque estava a acabar a tradução de um livro francês e a começar um conto que só viria a publicar anos depois, mas que me ocupou bastante tempo. Construí rotinas simples: levantava-me cedo e escrevia; parava ao fim da manhã, fazia umas compras básicas e comia qualquer coisa num bistro da rua; regressava e trabalhava até à noite na tradução (...).


O bistro era um estabelecimento acanhado, que fazia bolos e tinha no canto uma área para se comer de pé. Ao centro, havia uma fileira de tabuleiros com comida a preços acessíveis e porções pequenas, para os trabalhadores dos escritórios. O lugar tinha uma clientela fixa e ficava bastante confuso às horas das refeições, embora não houvesse barulho de conversas, pois os húngaros não falam enquanto comem. Eu ia ali porque o orçamento chegava e o lugar era acolhedor e quente, a comida simples; a certo ponto, esperava encontrar uma das empregadas, com quem tinha um começo de namoro. Primeiro, foram umas conversas, depois uns sorrisos e olhares mais continuados, até ao convite para ir ao cinema ao domingo, mas isso tinha sido ainda antes do inverno. Ela era uma rapariga banal e, a princípio, os nossos encontros foram inocentes. Agora, que já passaram anos desde esse período da minha vida, posso dizer que sinto uma dose de culpa, pois sabendo à partida que não iria apaixonar-me por Anna (assim se chamava), continuei a iludi-la, embora ela fosse para mim apenas objecto de estudo, uma personagem material do que imagino ser a vida autêntica, daquelas personagens que por vezes os escritores levam para dentro dos romances falsos que escrevem.
Anna era uma mulher baixa, suburbana, cabelo pintado de loiro (era morena). Falava de forma inculta e era este último elemento o que mais me interessava nela, quando me desligava dos sentimentos, julgando-me um distanciado cientista social. Depois, tentava arranjar uma desculpa esfarrapada para a minha frieza: talvez faça parte da nossa cultura, esta ansiedade por compreender a massa informe de povo que ainda há uma geração era camponesa e que permanece camponesa na alma.


O que me irritava em Anna era a maneira como pegava no cigarro, sem elegância; o baton barato que usava nos lábios, com demasiada cor; até o corte de cabelo, que lhe deixava madeixas espetadas. As conversas, a voz espessa e certos silêncios que pareciam ser de perplexidade, de quem não sabe o que dizer a seguir. Mas nunca reprimi estes obstáculos à intimidade, o que teria feito se ela verdadeiramente me interessasse; pelo contrário, quase os estimulava, para os observar melhor, como se Anna fosse uma actriz e eu o encenador do drama.
Às vezes, ela passava a noite no meu apartamento, mas nunca quis que isso se transformasse em hábito e certamente não foi o caso nas semanas da transição para a primavera, em que estava com os dois trabalhos, que serviam bem de desculpa para as minhas reticências. O amor é cruel, porque raramente tem a mesma intensidade ou fala a mesma linguagem nos dois sentidos e, por isso, faz sempre uma vítima, pelo menos uma, que no nosso caso era Anna. Ela não fazia cenas nem chorava, pelo contrário, parecia não se incomodar muito com a minha insensibilidade, aceitava a tirania suave, mas essa reacção era apenas parte da sua maneira estóica de encarar o mundo e as respectivas devastações. Um encolher de ombros que só chorava por dentro.
Quando terminei o conto (e levara-me cinco semanas) observei que havia um brilho de sol na janela; como já expliquei, as minhas duas janelas davam para nascente e, depois, tinha outra virada a norte, onde nunca batia a luz solar, mas apenas o seu pálido reflexo transmitido através da sombra. E achei fascinante rever aquela cor de prenúncio de primavera e, olhando melhor, via-se um azul do céu profundo, que parecia ter a espessura do universo inteiro, embora isso fosse enganador, era apenas a película delicada, da espessura de uma bola de sabão e para além da qual tudo era escuro e trevas. Saí nessa manhã mais cedo, em vez de escrever. Ainda estava a pensar num título e nesse primeiro passeio cheguei a uma boa conclusão. Fiquei junto ao Danúbio, ainda estava um pouco de frio e humidade, o sol iluminava o castelo e o casario de Buda, ao longo das colinas. A ponte, verde de bronze, parecia ferro em brasa. Decidi nessa manhã, julgo que era de início de Março, pôr um ponto final no meu caso com Anna e desenhava-se na minha mente uma conversa completa sobre o assunto, com palavras serenas, embora eu mal soubesse que ao sair da caverna onde hibernara me esperavam abundantes complicações, pois assim é o ritmo da vida, igual ao de um rio poderoso, com a sua corrente ao sabor do degelo nas montanhas, quase sempre sem novidades, a correr contido em margens, e em raras ocasiões, por dá cá aquela palha, a transbordar levando tudo à frente.     

publicado por Luís Naves às 20:11 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sábado, 12.05.12

Melodrama

Dizem que as pessoas mudam antes de morrerem, mas pode ser mito. Os nervosos mostram-se mais compreensivos e são tomados por uma cúmplice serenidade; os filhos de puta tentam emendar os múltiplos pecados, como se pensassem que ainda é possível a redenção; aqueles que durante a sua vida nunca falaram, querem agora dizer a última palavra. Se isto é verdade, então a mudança pode não passar de uma forma de luta contra o tempo, sendo portanto inútil, pois o tempo vence sempre.
Cometi muitos erros na minha vida e, como qualquer pessoa, sonho por vezes na possibilidade de voltar atrás e de os reparar. Seria um risco enorme, eu sei. Uma pequena mudança naquele ponto da minha vida e tudo teria seguido de forma diferente. Entramos na porta da direita, em vez de entrarmos na da esquerda e a vida muda: e pensamos, por ali era melhor, sem sabermos a história toda, que a um início auspicioso se seguiria a catástrofe prematura.
Olho pela janela. Vejo as pessoas a passarem na rua. Os automóveis. Um vizinho. Este vizinho mora quatro prédios mais abaixo, mas não o via há meses. Caminha com passo incerto, as calças estão mal seguras, o casaco torto. Parece enregelado. Envelheceu de repente. Lembro-me; conheço-o há mais de vinte anos, muito antes de ter ido viver para o sul. Ele era crítico de cinema e imagino que esteja reformado, com uma pensão que mal paga a comida. E havia este filme americano, de Douglas Sirk, não me ocorre o título, e fiquei intrigado por haver tantas cenas em que um vento varria as folhas do chão. Era tão frequente, que se tornava quase uma banalidade; e discuti isso com aquele homem que agora passa na rua (era um festival qualquer e eu era apenas espectador e o grande crítico estava a falar para um grupo de estudante e atrevi-me a dizer aquilo, se ao menos Sirk tivesse usado o truque kitsch uma única vez, então teria sido mais eficaz, e o homem olhou para mim e sorriu com ar superior e explicou-me a natureza profunda do melodrama e que o efeito de repetição, pelo contrário, sublinhava o lado poético da metáfora). Não terão sido estas as palavras exactas, suponho, mas era este o sentido. A minha memória é insuficiente para preencher as lacunas, já nem sei o nome do senhor.
Sei que há um vento cortante e que, na ausência de folhas nas árvores, são as folhas de jornal e outros lixos que o vento arrasta. O homem de passo incerto, as calças mal presas a arrastarem pelo chão, a cabeça descoberta, madeixas de cabelo branco a esvoaçarem, e quatro folhas soltas que passam ao lado do vulto envelhecido, revolteando aos turbilhões, desaparecendo para lá do ângulo da minha janela. E o vizinho também passa, levando às costas a sua metáfora de melodrama, e deixo por instantes de ver pessoas na rua.

publicado por Luís Naves às 21:12 | link do post | comentar | ver comentários (2)

pesquisar neste blog

 

posts recentes

tags

links

arquivos

subscrever feeds