Domingo, 09.12.12

O samurai

Ainda hoje, no meu bairro, é recordada com muita saudade a progenitora da Alice, a Dona Felismina, que deu em herança à filha o pequeno estabelecimento, uma leitaria entretanto modernizada em pronto-a-comer, que fica ali à esquina das escadinhas que dão para uma rua escondida. A mãe da Alice era uma mulher daquelas chamadas de armas, ou seja, mais dominadora do que se poderia presumir pelo seu corpo franzino. Parecia a Edith Piaf e sei que, em jovem, incendiou numerosos corações galantes e outros menos cavalheirescos; mas, enfim, só a conheci bastante gasta e passado o antigo esplendor. Parte da história também será bordada a lenda, pois sabemos como tudo nesta cidade acaba sendo um pouco romanceado, generosamente apimentado com venenos e intrigas.

   Quem verdadeiramente interessa neste relato é a Alice, que terá essas origens curiosas, embora pertençam a um passado que já nem imaginamos. E quem sabe o que se esconde em gerações ainda mais remotas? O facto é que ela tem lábios grossos, nariz achatado, o traseiro algo proeminente, caracóis enrolados num cabelo cor de azeitona escura.

   Na aparência, a Alice é uma mulher não muito diferente das outras: talvez um pouco mais redonda de carnes, o que faz sonhar alguns homens, entre eles o Carriço, discreto apaixonado e lugar-tenente do estabelecimento; o seu homem oficial, digamos assim, macambúzio e soturno, mas também ciumento, sobretudo quando vê possíveis rivais a cobiçarem o seu naco de carne com olhares famintos, nem que seja macho de passagem ou um zé-ninguém que jamais voltará.

   Alice não é alta nem baixa, não é velha nem nova. Anda sempre desmazelada, sem pinturas ou jóias; veste avental com nódoas. Mas não precisa de ornamentos, tendo aqueles olhos verdes, esmeraldas reais, embora a cor já esteja esbatida, enfim, porque o tempo passa.

 

  

 

publicado por Luís Naves às 18:54 | link do post | comentar
Quarta-feira, 28.11.12

Do outro lado da linha

Aquele número de telefone agora era meu, mas pertencera a outra pessoa. Descobri isso quando alguém me telefonou a querer falar com uma tal dona Otília, que eu não conhecia de lado algum. Quando expliquei que era engano, a pessoa do outro lado reagiu com espanto. Ao segundo telefonema, percebi que a culpa era da empresa operadora. O número fora reciclado.
   Devia ter tratado logo do assunto, mas confesso que achei graça e depois já passara a oportunidade para obter um número diferente. Às tantas, não era prático mudar, tinha ainda a chatice de perder umas horas a explicar que recebia chamadas para a anterior proprietária e, portanto, queria um número original, que não tivesse cliente anterior. A meu ver, pagava como novo algo em segunda mão. Tratava-se de um mero número de telefone, mas podia ser um par de sapatos: sempre que o utilizava, pairava aquela sensação amarga de que já alguém o calçara antes. Mesmo assim, nada fiz.
   Não sendo inteiramente racional, a ideia perturbava, mas o tempo foi passando e diluiu-se o choque inicial de saber que o número do meu telefone novo já pertencera a outra pessoa. Depois, descobri que tinha um prazer especial em receber as chamadas dirigidas à dona Otília, mas acima de tudo dava gozo ler as mensagens de texto que ela devia receber, algumas indecifráveis, outras crípticas, todas vagamente incompletas, omissas de informação e que me faziam pensar seriamente nas conjecturas sobre o aspecto daquela pessoa desconhecida. A situação não deixava, apesar de tudo, de ser um pouco irritante. Por vezes, atendia a chamada e alguém berrava do outro lado:
   “Queria falar com a dona Otília”.
   “É engano. Este número já não pertence à dona Otília”.
   Do outro lado da linha, havia sempre resistência a uma ideia tão evidente:
   “Está a brincar comigo”.
   “Não estou a brincar com ninguém. É engano”.
   “Mas a dona Otília deu-me este número”.

  

 


 
 

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Domingo, 28.10.12

O gordo joga à baliza

O campo era ligeiramente inclinado, a favor de quem jogasse do lado da linha de comboio, que passava ali a cem metros. Quando chovia, transformava-se num lamaçal e formavam-se pequenas lagoas castanhas. As balizas começaram por ser marcadas com pedras grandes e tínhamos de imaginar os postes. Os limites do campo foram desenhados por uma cicatriz direita, escavada na terra e um dos lados era a cerca do liceu, em arame, e que alguém mais pragmático tinha levantado, para todos poderem passar. Depois, arranjaram duas vigas redondinhas e altas para as balizas e prenderam um fio com duas latas em cada ponta e estas batiam muito nos postes quando havia vento, fazendo um barulho fantasmagórico.

   Para dizer a verdade, eu nunca jogava. No máximo, acompanhava os outros miúdos e apanhava as bolas, sempre a mendigar um lugar na equipa. Não era mais novo do que os outros, apenas mais pesado e lento. Ficava fora do campo a mandar bitaites e até me toleravam porque era bom aluno a matemática e ajudava-os nos problemas, isto quando havia aulas, pois nesse ano de 77 o liceu da Amadora ainda andava um bocado confuso. Foi o último ano de erre-ge-ás permanentes, mas quem ia para o campo de futebol não se interessava por política, antes pelo contrário, pertencíamos a uma fauna à parte, ainda no limbo entre as brincadeiras infantis e os primeiros namoros.

   O melhor jogador da turma era o Petróleo, um de cinco irmãos mulatos que moravam na praceta dos Crisântemos, na Reboleira. Era retornado e jogava de avançado, fazia daquelas fintas manhosas que os miúdos odiavam e levou muito soco à conta da sua habilidade. Ele e o irmão mais velho chegaram a entrar no Estrela, na equipa principal, mas o Manuel (assim se chamava) nunca saiu do banco. O Gonçalo, que era o capitão das equipas da turma, também chegou a tentar o futebol profissional, mas não teve sorte. Na altura, ele disse que o mister não fora com a cara dele.

   No primeiro ano do liceu (julgo que agora se chama sexto) era preciso aproveitar cada furo para ocuparmos o campo, pois o jogo acabava mal chegassem os alunos das turmas dos últimos anos. Até sermos enxotados, tínhamos o campo à nossa conta: sete de cada lado e ainda me lembro de alguns dos jogadores, entre os vinte que apareciam em cada jornada. O Osvaldo era um bocadinho gago e jogava e extremo, porque chutava com o pé esquerdo; foi para física e é professor de liceu; perdeu a gaguez. O João Afonso, um miúdo grande que jogava a defesa; morava no prédio ao lado do meu, na praça 1º de maio; teve uns problemas com a polícia e emigrou para Inglaterra. Havia outro João, que não jogava sempre, mas era bom aluno e deixava copiar; acabou Direito. E lembro-me de um miúdo louro, que já naquele tempo as miúdas adoravam; agora, tem uma loja de eletrodomésticos num centro comercial, perto da Amadora; na altura, jogava com estilo e gesticulava imenso, mas estava sempre a poupar-se em campo. Só para mim não havia lugar, nem para suplente.

   Um dia, deixaram-me entrar no campo, porque um dos miúdos coxeava, mas fiquei com a sensação de que as pernas se prendiam ao solo. Queria correr, mas não conseguia. Saltitava perdidamente, a vigiar a minha zona, a rezar para que não corressem por ali. De repente, alguém lançou a bola na minha direção, mas era quase no gozo, por ficar uns metros demasiado longe e ainda tentei lançar-me, mas não cheguei a tempo. A bola foi para fora. Simulei um gesto de impaciência, a imitar o Yazalde, apontando com os dois braços para o chão em frente aos pés, as palmas das mãos para fora. Queria dizer que o passe não fora perfeito. Mas os miúdos riram-se de mim.

   Não demorou muito e aconteceu outra desgraça: às tantas, vinha o Petróleo a fugir e levava a bola com ele, nem me fintou, foi só correr pela avenida livre de obstáculos e ficou em frente à baliza, com um golo fácil. Ainda tentei a perseguição, mas só dei quatro passos e já me era impossível respirar. Ouvi logo a sentença.

   "Gordo, ficas a apanha-bolas".

   Mandaram-me sair e reentrou o lesionado, que mesmo com o pé a doer corria mais do que eu. Lembro-me bem do tom autoritário que o Gonçalo usou e nem dava para argumentar, pois a bola pertencia-lhe. Recebera-a no Natal, era em couro, das autênticas. Dava-lhe o direito de fazer a primeira escolha da equipa, mas também decidia sobre quem jogava nos adversários, sempre os mais fracos do lote.

   A minha carreira futebolística devia ter ficado por ali, mas não era ainda o tempo de me dedicar aos estudos. Podia ter desistido naquele dia, mas isso só aconteceria meses mais tarde. Queria jogar, para ser parte do grupo e não ficar sozinho. Os que nunca viveram em solidão às vezes não entendem bem isso.

   Dois anos mais tarde, namorei com a irmã do Gonçalo e conheci-o melhor nessa altura, quando tinha uns 17 ou 18 anos. A Joana era magra e nervosa, no fundo parecida com o irmão, que era um rapaz espigado e alto, impertinente nas aulas e que se distinguia por não ter mais nada de especial, exceto a bola mesmo à séria, o brinquedo caro que todos lhe invejavam. Foi assim mesmo como estou a contar.

 

 

 Conto publicado no DN, no suplemento QI

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Quarta-feira, 01.08.12

O degelo de Abril

Fiquei desiludido por não encontrar Ermei Lismanki, como acontecia todos os três meses. Ele é um finlandês de cabelo branco e nariz proeminente, a rondar 60 anos: imagino como seria Cyrano de Bergerac idoso: em vez do falador insaciável, com gestos amplos para sublinhar argumentos e a espada fácil a trespassar quatro ou cinco patetas, em vez disso tudo, uma espécie de sábia lentidão, sendo que a única discrepância com o que imagino é a roupa moderna. Lismanki veste-se de forma negligente, mas é daquelas figuras que enchem qualquer sala, sem parecerem fazer esforço para encantar estranhos ou para criarem uma imagem que não corresponda a eles mesmos. Há naquele tipo de indivíduo uma autenticidade que hoje começa a faltar nas pessoas normais, preocupadas que estão em fazerem uma espécie de teatro da vida, onde vestem as roupas dos outros, representam a atitude dos outros e dizem as palavras dos outros.
   Antes de lhes falar do meu amigo, devo explicar que sou jornalista e que todos os três meses faço, para o meu jornal, a cobertura de cimeiras europeias, em Bruxelas. A sala de imprensa distribui-se por três pisos, naquilo que mais parece um bunker confuso, de corredores estreitos e labirínticas escadarias mal iluminadas. Centenas de jornalistas de muitos países empurram-se e acotovelam-se naquele lugar fechado e, durante dois dias, tentam perceber as decisões dos governantes, entre momentos de excitação colectiva, mas também de tédio, com esperas intermináveis que se consomem a olhar para o avanço do relógio (a boa distância, o jornal tem de fechar as páginas). Enfim, tudo isto estará longe do que se espera das organizações políticas influentes, mas asseguro-lhes que é inteiramente assim.

   Conheci Ermei Lismanki há um ano, numa destas cimeiras. Ele sentara-se na mesa ao lado da minha: instalou o portátil, sorriu para mim, fez um gesto polido com a cabeça, depois mergulhou numa escrita frenética, em língua que, pelo canto do olho, reconheci como sendo a finlandesa. No segundo dia, repetidos os gestos, ao vê-lo tão embrenhado, não resisti à mudez que se instalara entre nós (quando duas pessoas estão caladas, é sempre a mais fraca de ânimo quem fala primeiro). Sinal de fraqueza, talvez, não resisti à guerra fria do silêncio e travei o caudal da sua escrita. Estávamos ombro a ombro, apresentei-me, falando em inglês. Para minha surpresa, ele respondeu com enorme simpatia, interrompeu o que fazia, reclinou-se na cadeira e, depois de me olhar profundamente explicou-me a tarefa a que se entregara. (Tenho dificuldade em explicar o que é um olhar profundo, mas penso que cada um de nós o reconhece, ao sofrer a sua cirúrgica acção).
   - Enquanto espero, vou escrevendo por aqui umas histórias minhas -, disse Ermei Lismanski.
   - Ah! É escritor?-, perguntei, porventura reflectindo no tom de voz e na expressão desdenhosa o habitual desprezo que todos nós, jornalistas, sentimos pelos colegas de profissão que se armam em escritores.

publicado por Luís Naves às 17:20 | link do post | comentar
Quinta-feira, 05.07.12

Lanterna vermelha

 

Sempre gostei de histórias antigas de ciclismo e este conto de jornalistas é inspirado na leitura das prosas de jornais sobre competições épicas. Trata-se aqui de um tempo em que não havia televisão e ao longo da estrada juntavam-se multidões que andavam quilómetros para poderem ver passar o pelotão durante alguns minutos. Os ciclistas eram heróis populares e os repórteres dos jornais narravam as vitórias comparando-as a grandes feitos, em prosas dramáticas, abundantes de adjectivos, onde brilhava o sacrifício, mas também o sangue e a dor.

 

  

   “Naquele tempo, as estradas eram infernais, cheias de buracos e havia perigos escondidos em cada curva. Andar na Volta a Portugal em Bicicleta era coisa de doidos, para homens como já não se fabricam, de outra têmpera. Você, que é jovem, pergunta-me qual o momento mais fantástico a que assisti, mas não consigo escolher, de tantos episódios que me ocorrem. A memória é estranha, menino, as coisas misturam-se, baralham-se, mas o que mais tento lembrar são aqueles homens já esquecidos, os lanternas vermelhas que se arrastavam atrás do pelotão, derrotados e, no entanto, persistindo sem fôlego montanha acima, sem os aplausos do público, quantas vezes com o escárnio dos que nas margens das estradas só viam o heroísmo sem verem a parte do sofrimento. Para mim, esses foram sempre os melhores, os que nunca desistiam, seguindo sozinhos, ou melhor, sempre acompanhados apenas pelas suas dores”.
   “O momento mais fantástico a que assisti? Não posso esquecer a primeira etapa da primeira volta que acompanhei. Recordo tudo como se fosse hoje. A primeira de 25 competições de ciclismo que cobri como repórter. Foi à sexta etapa da décima sétima volta a Portugal em bicicleta, no ano de 1952. Faz agora 36 anos, veja lá! A tirada compreendia 167 quilómetros e foi uma doideira pegada.”
   “Cheguei à corrida apenas na sexta etapa porque um camarada adoecera e mandaram-me para Coimbra para o substituir. Eu não sabia nada da modalidade, nem sabia quem eram os campeões habituais, o Fernando Moreira de Sá ou o Luciano de Sá, dois irmãos do Futebol Clube do Porto. O Moreira de Sá viria a ganhar essa volta. Na altura, eu tinha 21 anos, mais ou menos a idade que você tem, mas era mais estouvado. Enfim, lá fui para Coimbra e juntei-me à comitiva: os jornalistas iam num velho carrinho (nesse tempo tudo era velho) e anotavam todas as peripécias, em prosas muito visuais, porque não havia televisão e funcionávamos como os olhos do povo”.
   “Aquele foi um dia esplêndido de final de Agosto. Terça-feira. Recordo isso como se fosse hoje e ainda me lembro de umas frases tolas que escrevi: ‘Coimbra veio à ponte de Santa Clara despedir-se dos corredores. E foram centenas de pessoas que ali compareceram, apesar da hora matutina. Havia nuvens no céu e soprava um vento fresco. Lá em baixo, corriam fiozinhos de água, que são agora nesta época o Mondego das tradições’. Já viu as parvoíces que a gente escrevia? Mas deixei-me embalar pela verdura do Mondego. Ficaria mais tarde a saber que o vale tinha aspectos enganadores, pois para se passarem as montanhas é preciso esfolar o corpo até ele sangrar como um Cristo, suar até sentir que se morre de sede e chorar muito, mas mesmo muito, pela estrada fora”.
   “Lembro-me daquela etapa alucinante, por uma estrada tão má que houve mais de cem furos no pelotão. Havia 48 ciclistas à partida, faça as contas. As estradas eram um pavor e eles tinham de passar por descidas que metiam medo. A poeira era de tal ordem que nas curvas os ciclistas não viam nada, atiravam-se e rezavam para que não estivesse ali um obstáculo: podia ter ocorrido muita tragédia, mas isso seria numa etapa mais à frente, com três feridos em Vendas Novas. Eu não vinha preparado para descrever uma competição tão dura, e apesar de não estar em cima de uma bicicleta a torrar ao sol, só pensava em desistir da empreitada. Mas eles continuavam a pedalar. A cem quilómetros da meta, um homem fugiu do pelotão e prosseguiu sozinho até ao fim. Tinham-lhe dado uma bicicleta nova, porque a anterior andava empenada. Dizia-me ele no final, ‘podia ter sorte, podia não ter’ e encolhia os ombros, como se aquela fosse a banalidade mais simples do mundo”.
   “E pergunta-me você quem era este jovem tão corajoso, mas se eu lhe responder à pergunta, o nome não lhe vai dizer nada. Insiste? Quer saber? O corredor era do Sangalhos, chamava-se Joaquim Carrete e venceu a sexta etapa, mas não conseguiu chegar ao fim da volta. Aquele foi o seu maior feito no ciclismo e é assim com muita gente. Há um dia em que certa pessoa faz algo de extraordinário e depois passa anos a tentar repetir o que fez, mas parece que existe uma lei a impedi-lo. Nunca mais o consegue, por muito que se esforce, por muito que não desista. E assim aconteceu naquele caso. O homem venceu uma etapa na vida porque lhe tinham dado uma bicicleta nova”.
   “Sabe? Acho que toda a gente persegue um sonho e sem isso não haveria lanternas vermelhas, aqueles pobres desgraçados que se arrastam atrás do pelotão, por terem azar e demasiados furos ou por terem as bicicletas empenadas que se dão aos piores de cada equipa. Sem os medíocres não se percebe a excelência, mas nós, os repórteres, não gostamos de entrevistar o lanterna vermelha, dizemos que o público não se interessa por eles, que ninguém quer saber, que a história é escrita por vencedores”.
   “A última etapa da Volta de 1952 foi em Viana. Já lhe disse que venceu Fernando Moreira de Sá, um campeão. Eu era jovem e decidi contrariar essa nossa regra de não ligar ao último. Deu-me pena aquele esforço final e as gargalhadas que se ouviam no público, e o gesto que ele fez ao atravessar a meta, como se cumprisse um sonho. O homem chamava-se Simões Neto e disse uma frase que ainda hoje me faz pensar: ‘Assim como só há um vencedor, alguém tem de ser o último’. É preciso ter fibra especial para dizer coisas destas. Uma lição para a vida, que só agora, na velhice, compreendo totalmente: é como quem afirma que não faz mal, amigo, cheguei ao fim e não desisti, e se isso não lhe importa, pelo contrário, para mim é o mais importante”.
 

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Segunda-feira, 11.06.12

A imensidão

O mais difícil é começar. Podia contar-vos como eram mágicas as florestas e serenas as margens dos rios sussurrantes; podia falar da crueza do deserto e do céu cheio de estrelas e e das ondas marinhas desenhadas na areia e que o Sol iluminava, fazendo brilhar uma estrada de ouro, em carícias ao longo das dunas. Mas talvez seja erro meu, lembrar o passado com cores intensas, como se fosse uma tela antiga e vagamente irreal. Provavelmente, observo os dias com menos exactidão, pois eles não têm consistência e, por isso, o que observamos já não parece ser do mundo verdadeiro.
O passado é um sonho; de aventuras, de corpos amados; de cidades maravilhosas, cujos telhados resplandeciam; de risos e falas estranhas, de línguas distantes, de mistérios e viagens na bruma, enigmas em desordem.
Por vezes, aborreço-me, sou tomado por uma nostalgia daquilo que vivi e vi viver; da praia vazia onde naufraguei, daquela rapariga que me sorriu num mercado oriental, tão devastadora como um exército invasor.
E, na casa, à noite, a madeira range e lembra o murmúrio delicado das velas que o vento arqueava  (os panos produziam leves ritmos doces, quando se soltavam o cordame e a água deslizava no fundo do barco, como faziam os delicados rios da minha infância). A lareira apagada estala da mesma forma, num turbilhão secreto, de brasas adormecidas debaixo da cinza.
A existência é fria, mas as minhas lembranças ainda ardem.
E havia aquele fundo laranja de um fim de tarde tropical, na mansidão dos reflexos, as vagas preguiçosas que se derramavam na areia quente, enquanto uma brisa agitava as nervosas folhas das palmeiras.
E quando observo os restos do que me rodeia, pareço-me com essas brasas que se recusam a dormir, sempre agitadas num desassossego.


Lembro as caravanas que saíam de Fort Laperrine e serpenteavam, vagarosas, na delirante paisagem das montanhas Hoggar, na alucinação da sede e na proximidade da morte.
As filas de camelos eram minuciosas, como carreiros de formigas, entre os imponentes maciços de pedra, que pareciam jardins de estátuas esculpidas por uma civilização perdida. Depois, as caravanas passavam através dos Wadis, produzindo ecos iguais a conversas de deuses. Os animais subiam e desciam ravinas que a luz do crepúsculo pintara da cor do ferro. A marcha fazia-se em silêncio, cada viajante mergulhado na solidão dos seus pensamentos. E, por vezes, surgiam tempestades súbitas (nuvens negras deslizavam do nada e caíam relâmpagos e os camelos espantavam-se, descontrolados); os barrancos tornavam-se armadilhas; rugiam enchentes, muros de água, e perdiam-se vidas.
O último posto militar antes do planalto chamava-se Arrem Tazerouk. Era uma aldeia semelhante às outras do Bordj, onde as casas mais parecem a continuação da terra morta. A povoação ficava num ponto elevado, de onde se tinha a perspectiva completa do vale. Era uma espécie de vereda estendida como um tapete até ao horizonte, a bigorna onde o sol partia lentamente a pedra branca.
A minha caravana era guiada por um nómada chamado Ibn Guezzam, que me pedira para manter sempre o disfarce de beduíno, por causa dos rebeldes. Montámos o acampamento nas imediações do forte francês e a guarnição de soldados observou a nossa azáfama com interesse disperso.
Podia ter ficado junto a Guezzam, mas ao ver a figura do oficial francês, que passeava sozinho na muralha, a silhueta recortada contra o céu desprotegido, olhando a distância como quem observa o mar, senti necessidade de falar com alguém e aproximei-me, revelando a minha identidade.
O capitão chamava-se Zinderneuf e pareceu contente de encontrar ali um europeu.
     “Finalmente, alguém que pode compreender”, disse ele.
     “Compreender o quê?”
     “Isto”, apontou, com um gesto que abarcava o mundo. “O vazio da existência”.
Contou-me como tinha procurado o posto militar mais afastado, o derradeiro, o mais próximo do nada. Implorara para que o enviassem para o forte mais frágil, o menos defensável do deserto.
     “Sinto que toda a minha vida se desenrolou para culminar num único instante, que está iminente”, afirmou.
Zinderneuf pediu-me para ouvir o assobio lúgubre do vento, que se elevava na noite. Ficara de repente demasiado escuro e víamos a poeira das estrelas:
      “Nunca antes tinha percebido a palavra destino”, prosseguiu Zinderneuf. “Cem mil pormenores aleatórios conjugaram-se para que eu estivesse aqui, exactamente hoje, quando um exército inimigo se prepara, naquelas montanhas, para dar sentido à minha vida. Um número impossível de acasos me trouxe a este lugar, numa sequência tão incontável como os grãos de areia do deserto ou do número de estrelas no firmamento. Veja bem, algo me arrastou, como se eu fosse uma simples molécula de água num rio infinito. E naquelas colinas escuras está um homem que ainda não sabe que o sentido da sua própria existência será tirar-me a vida a mim, o que é apenas possível por estarmos neste ponto exacto do espaço e do tempo”.
Conversámos durante mais algum tempo, mas apenas banalidades. Ele contou-me que não tinha família e que não lhe interessavam as memórias e o passado. Queria meditar, disse, e mandou-me sair, regressar ao deserto, para poder viver.
    "Você também é uma parte improvável deste acaso".
Depois, despediu-se com um forte aperto de mão:
     “Tudo de repente faz sentido. O universo inteiro”, afirmou Zinderneuf.

Na manhã seguinte, o capitão deu ordens aos seus homens para expulsarem a minha caravana das imediações do forte.
Partimos e, quando atravessávamos as montanhas, num sítio chamado Oued ta Zoulet, encontrámos o exército tuareg que ia atacar Arrem Tazerouk. Deixaram-nos passar, sem suspeitarem que eu era europeu.
Soube mais tarde que entre os franceses que defendiam o forte não houve sobreviventes.

 

O conto é antigo, inspirado em Beau Geste (de onde tirei a imagem), Morocco e Atlântida. Fiz uns cortes.

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Terça-feira, 29.05.12

De como o gato Iskra salvou a Humanidade

O velho Mikhail Petrovitch olhou para a brancura da neve, lá fora, e suspirou profundamente. Pareceu perder-se nos seus pensamentos, e só então me dei conta da importância da minha pergunta sobre o que realmente acontecera naquele dia confuso de Maio. Depois, bebeu um pouco do chá que tinha sobre a mesa (notei os seus dedos extremamente finos) e sorriu com uma recordação qualquer. Era como se eu já não estivesse ali.
   - Em que está a pensar, Mikhail Petrovitch? -, perguntei.
O velho sorriu ainda mais. Quase ria:
   - Num gato! Chamava-se Iskra e fazia justiça ao nome, parecia uma faísca a correr pela dacha do secretário Korillov. E a sua pergunta anterior sobre aqueles dias da transição de poder fez-me lembrar aquela bola de pêlo ruivo que corria pela casa. O gato que salvou a Humanidade.
E ao dizer isto, largou uma genuína risada. Depois, ficou em silêncio, e ouvia-se a imensa tranquilidade do mundo. A floresta, do outro lado da estrada, um vento que se erguia sobre a neve, a madeira que estalava no calor da casa.
     - O que não percebo, Mikhail Petrovitch, é a ligação entre o gato Iskra e a transição de poder. E como é que o gato salvou a Humanidade? -, disse eu, meio incrédulo, a pensar que estava perante o delírio de um idoso.
    - Onde é que íamos? -, perguntou Mikhail Petrovich. - Ah, a transição! Portanto, depois do secretário-geral ter morrido, houve um vazio de poder durante duas semanas. Os membros do Politburo estavam em luta uns com os outros, excepto Korillov, que teve a liderança durante a transição e, portanto, o poder de escolher o sucessor... Enfim, você já sabe isto tudo... O que não sabe é que houve uma noite de pânico no dia 29 de Maio de 1961. Korillov estava na dacha. Eu também, já que era o secretário pessoal dele. Deviam ser uma cinco da manhã quando chegaram três outros membros do Politburo, acompanhados de vários generais. Traziam a mala dos códigos nucleares e pareciam agitados, sobretudo o marechal Getmasov, que era meio paranóico e extremamente incompetente. ‘Temos de atacar antes que eles nos esmaguem’, vociferou o marechal, quando todos entraram no gabinete de trabalho de Korillov, que ainda estava de pijama e parecia patético no seu espanto com aquele alvoroço. Já nem me lembro bem qual era a questão, mas parece que houve um erro de avaliação sobre o que se passava nos silos atómicos dos americanos. Enfim, os generais estavam convencidos de que haveria um ataque nuclear dos Estados Unidos no prazo de uma hora. E gastaram esse tempo a discutir se aquilo era assim, a pedir mais informação. Faltavam dez minutos para o alegado ataque e o clima na sala era de histeria. Todos gritavam, Korillov hesitava. Então, houve uma espécie de intervalo e os espíritos pareciam ter acalmado, como se houvesse ali a iminência de uma grande decisão. Em certo ponto, o secretário Korillov não aguentou mais e vacilou, aceitando um ataque preventivo contra os Estados Unidos... Naquela altura não sabíamos, mas uma guerra nuclear seria equivalente ao extermínio da Humanidade... Enfim, alguém se esquecera da mala dos códigos em cima de uma mesa, procuraram-na com o olhar, e lá estava Iskra, a bola de pêlo ruivo, como um diabinho, em cima da mala, a dormir refastelado. O marechal Getmasov precipitou-se para a mala, decidido a enxotar o gato, mas foi nessa altura que as coisas se tornaram verdadeiramente alucinantes. Alguma coisa irritara Iskra, que se eriçou contra o marechal, bufando-lhe, furioso com a interrupção do sono ou com algum gesto brusco que o militar fizera. Estávamos nove pessoas na sala e ficámos estarrecidos. O marechal fez o movimento de quem procura a pistola e teria disparado, mas os militares entravam desarmados nas dachas dos membros do Politburo, cuja segurança pertencia à KGB. Eram regras de segurança do tempo de Stalin. O marechal tinha estado em Estalinegrado, não era uma gatinho inofensivo que o ia travar. Iskra levou um valente safanão e o Getmasov abriu a mala dos códigos, virou-se para Korillov e disse: ‘Tem de dar a ordem, Stepan Stepanovitch”. Korillov ficou a olhar para ele, muito branco, sentado, ainda no seu pijama, com ar indefeso, mas rendido, pronto a dar a ordem. De súbito, Iskra saltou-lhe para o colo e todo o movimento se suspendeu na sala. O gato esticara-se, com as patas de trás sobre as pernas do dono, as da frente no peito dele e o focinho avançado sobre a sua cara. E Iskra começou a lamber a cara de Korillov, a lambê-lo freneticamente, como se pedisse para esperar mais um pouco. ‘O gato não tem medo’, disse Stepan Stepanovitch Korillov. E segurou Iskra, segurou-o com suavidade, dando-lhe festas no dorso, depois recostando-se na cadeira. ‘Esperamos’, ordenou. O marechal ainda tentou convencê-lo, implorou durante alguns minutos e, então, chegou aquele telefonema que esclarecia todo o mal-entendido. Tinha sido uma ilusão, não havia nenhum ataque americano, apenas más interpretações de informação electrónica. Dias antes de morrer, Korillov disse-me que no momento em que Iskra lhe saltara para o colo tinha pensado em mil coisas diferentes, mas lembrara-se da sua neta e sentira, por um instante, uma presença superior naquela sala. Mas repare que ele não chegou a usar a palavra Deus... Como é que os americanos chamam a isto, Guerra Fria, não é? Pois bem, digo-lhe, meu caro, se nessa Guerra Fria houve autênticos heróis, aquele gato foi um deles”.
Mikhail Petrovitch calou-se. Ficou pensativo um bom bocado. Olhou para a rua, distraído. Talvez pensasse na sua carreira falhada, no seu futuro breve, no poder dos acasos ou na loucura dos homens. Então, quebrando a pausa, concluiu:
    - A propos*, escreva o seu livro, mas você nunca poderá contar esta história!

 

* em francês, no original

nota: este é um conto antigo, alterei a data, um suposto 29 de maio de 1961, o dia em que nasci. Iskra, em russo, significa faísca

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Segunda-feira, 30.04.12

O crítico

O crítico passou-se seriamente depois de arrasar um livro que não tinha lido.
Ele era uma figura com quem ninguém falava. Entrava na redacção e sentava-se na mesa do fundo, escrevendo os textos com uma caneta de tinta permanente. Desenhava as palavras com uma letra elaborada que depois os tipógrafos tinham dificuldade em decifrar. Todas as semanas aparecia ao mesmo dia e à mesma hora, a cabeleira comprida sob o chapéu fúnebre, a bengala com topo de marfim, os dedos da mão direita sempre azuis da tinta. Entrava com um gesto vago de cumprimento e saía mudo.
Um dia, notaram que parecia ter enlouquecido de algum mal súbito. Foi depois de arrasar um livro que não tinha lido. Veio na semana seguinte a saber-se destes factos, entrou calado na redacção e sentou-se a escrever jogos de palavras com um montinho de frases que pouco mudavam. Escrevera numa das folhas o seguinte: “O que envelhece devagar quase magoa e na extensa morte que aparece sangram as feridas que não param até que enlouquece a profunda noite e um vento parvo insiste e repisa a adormecida parte. E arrefece. Ao reencontrar a certeza grito de medo e transparece em mim uma solidão cruel que é apenas ausência, alma que se percebe exangue e sem vida, sem dor alguma, na doce amargura perene da espuma que no fim sobra. E quem pede não recebe, é a fugaz sombra do mundo”.


E produziu umas vinte folhas com variações, todas muito bizarras, por exemplo esta: “O que fere no envelhecimento lento é uma morte que aparece em feridas que sangram em grande, até pararem na louca e profunda noite e na estúpida forma de um vento que dorme e se repisa. Está frio. Para encontrar um choro de medo, transparece a minha penosa solidão, que é meramente a ausência da alma sem fôlego e sem vida, ou dor e amargura. E paira uma perene e doce soma de finais. E quem não receber o que pede, será no mundo uma sombra”.
O crítico ia escrevendo estes exercícios, em formas monótonas. Passou o dia naquilo, meio alucinado, e ninguém se atreveu a criticá-lo por ter arrasado um livro que ainda nem sequer tinha sido escrito. Explicaria porventura que não gostava do autor fulano e foi num momento de impasse que um redactor mais afoito gritou no meio da sala: “Mas isto é um escândalo”.


Houve uma pausa solene nas tarefas da redacção. Todos os redactores, compenetrados numa espécie de reflexão íntima, olhavam para o crítico literário, à espera do que iria acontecer. E instalou-se aquele amargo silêncio de que tantas vezes falam os escritores.
Até que o crítico se debruçou de novo sobre a folha em branco e a caneta de tinta permanente recomeçou a dançar sobre o papel, com um ranger muito irritante, que se arrastava como se alguém gemesse. E as letras diziam: “É um escândalo o que quase magoa na lentidão, nas feridas que aparecem ao sangrar...”
Foi só nesse momento que perceberam verdadeiramente. O crítico passara-se muito antes de escrever a crítica sobre um livro de um autor que nem sequer existia. Ainda por cima, uma crítica negativa, a arrasar completamente a obra.
E, confortados com estes pensamentos mais sólidos, regressaram ao trabalho, inclinados sobre as suas vidas pequeninas.

 

 

(Este conto de duas páginas foi publicado em Novembro de 2010, no blogue Emoções Básicas. Uso aqui a mesma sugestiva imagem de um velho jornal).

publicado por Luís Naves às 19:53 | link do post | comentar
Sexta-feira, 13.04.12

Crónica do Toca-Toca

O riso de Amadou Baldé foi a primeira impressão que tive dele. Um riso de tal forma sincero que fazia da Guiné, na aparência, a terra mais feliz do mundo. O motorista era uma daquelas pessoas que riem com facilidade, por tudo e por nada, com alegria tão visível que podia servir para ilustrar um postal, dos que fixam a recordação de breves paraísos. Mas, naquele domingo de manhã, na paragem de Brá, o sorriso de Amadou desaparecera. No seu olhar surgira a velatura da preocupação.
A paragem é uma espécie de centro de transportes que fica num espaço vazio, entre a mesquita e a embaixada da Rússia, hoje semi-arruinada, junto ao Poilão de Brá, local simbólico para os habitantes de Bissau. Durante o levantamento de 98, esta zona ficava na Linha da Frente, área difusa, em forma de arco, que atravessava a parte mais elevada da cidade, sensivelmente a meio caminho entre a base aérea, onde estavam os rebeldes da Junta Militar, e o centro, onde resistiam os fiéis do Presidente Nino Vieira e os seus aliados de Conacri e  do Senegal. Ali ocorreram os combates mais violentos entre as duas forças.
Estas memórias dolorosas reapareciam no espírito das pessoas que, como Amadou, vieram até à paragem no dia 4 de Abril. Na véspera, o taxista tentara tirar de Bissau a sua filha de quatro anos e as restantes crianças da família próxima. A tentativa fracassou, não por falta de dinheiro, mas por falta de transporte. O objectivo era levar as crianças para a segurança da horta dos avós, em Bambadinca. Os preços tinham duplicado e um bilhete de saída custava agora 1250 francos CFA por cabeça, cerca de dois euros. Mas no centro de camionagem não havia carros. Quase sentia, ao meu lado, as dúvidas deste homem: ao volante do seu táxi azul, podia esquecer os dois jornalistas, embarcar as crianças e ir ele próprio levá-las para a segurança de Bambadinca; mas o aluguer do toca-toca (este é o nome popular dos táxis de Bissau) fora uma sorte imprevista; Amadou Baldé não teria dinheiro para mandar transportar as crianças se não andasse connosco há uma semana.

 

 

 

publicado por Luís Naves às 20:17 | link do post | comentar
Quarta-feira, 01.02.12

A porta fechada

Por todo o lado, a mesma sensação de decadência. A ruína não apenas nas fachadas dos prédios, mas no interior apodrecido. A caminhar para casa, vejo uma porta fechada e sinto um arrepio que me trespassa, que me faz lembrar a gélida precariedade do destino. Dá-me a sensação de que vivemos no fio, nas nossas lentas manhas, sempre infrutíferas, a pequena sonolência, o tropeço sempre tão rápido.
O que recordo estava além desta porta sombria. A mercearia do Gonçalo era um buraco, descíamos por uma escada e entrávamos numa cave escura, mal iluminada. O Gonçalo era possante, parecia indestrutível, mas só o conheci quando alugou a cave do prédio ao lado do meu. Lembro-me com exactidão: ele estava no exterior, a observar a rua; eu ia a passar, e foi ele a meter conversa; pareceu-me um tipo meio alucinado e fui percebendo um pouco dos seus problemas, aliás quase me contou a sua vida toda. Imaginem: um homem alto e grande, dos seus quarenta e tal, precocemente envelhecido. Tratou-me por doutor e explicou que tivera tudo e tudo perdera. Força de expressão, por certo, pois ninguém é assim tão rico. Mas pessoa que agora nada tenha, mais parece que o que tinha era um tesouro. Desempregado em cinco minutos, tratado como se trata um cão, foi a expressão que ele usou, e a mulher deixou-o nessa mesma semana. Apesar de tudo, ainda a defendia: disse que era boa rapariga, desculpou-se, que o casamento já não ia bem, que não fora culpa dela. Desaparecera da sua vida, era tudo. As mulheres têm ambições, explicou, sem amargura.
   - E aqui me encontro sozinho, doutor, na minha última oportunidade.
Juntara as poupanças para alugar a cave e comprar os produtos necessários para uma mercearia de bairro. Pensei que não seria bom negócio, com a concorrência das grandes lojas (e que problemas já têm os grandes, quanto mais os minúsculos), mas fiquei calado. Qual era o sentido de perturbar o sonho de um iludido ou de um visionário?


Nos meses seguintes, comprava no estabelecimento, parava sempre para falar um pouco com Gonçalo (juro que não me lembro do apelido dele), porque era uma pessoa simpática. Pareceu-me cada vez mais pálido, também mais curvado. Emagrecera. Notei essa degradação e não havia clientela, tal como eu previra, de forma que não sei como podia ele flutuar na economia de mercado.
Um dia, notei-lhe a tosse, a tristeza, e fiquei ali um bocadinho a animá-lo. Contou-me que não podia continuar, as dívidas tinham acumulado, fechava a porta nessa mesma semana. No sábado, desamparou a loja, com a ajuda de uns primos. Eu descia a rua, em passeio matinal, ofereci-me para carregar caixotes, mas ele recusou. Sorriu com a minha oferta. Não o voltei a ver.
Por vezes, penso nas tragédias comuns da humanidade, que são muitas em tempos difíceis, cada uma devastadora para quem a sofre. Certas pessoas parecem atrair o infortúnio e aquele Gonçalo era um desses desgraçados, cuja miséria se confunde com a própria pele. Por muito que tentem, só encontram desaires. Nós, os outros, sentimos pena, mas também um vago alívio por não sofrermos desse fado invisível. A catástrofe não nos pode atingir a todos e já tem as suas vítimas bem escolhidas. É isso que significa esta porta fechada.

publicado por Luís Naves às 19:56 | link do post | comentar

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