Sexta-feira, 28.12.12

O poeta morto pelos seus maus versos

O único poeta que consta ter morrido por razões de qualidade foi um tal Helvius Cinna, um romano do período final da república, assassinado em 44 a. C. Este episódio é contado por fontes históricas, dando o poeta como vítima da ira popular durante o funeral de Júlio César. Confundido com outro Cinna, esse sim conspirador,  o pobre foi degolado e a sua cabeça, espetada no alto de uma lança, passeou por toda a cidade. Na peça de Shakespeare, quando Helvius Cinna tenta dizer à multidão que não matou César, não passando de um inofensivo poeta, alguém sugere cinicamente que seja mesmo assim morto, mas pelos seus maus versos.


Vem isto a propósito de um texto de Cintra Torres a comentar a recente publicação pela Quetzal do livro “A Civilização do Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa, sobre o qual já escrevi neste blogue.
Cintra Torres faz uma comparação entre a nossa obsessão pelo entretenimento e o caso de Roma: “Um ou outro imperador romano podia não gostar dos espectáculos do Coliseu, mas dava-os e a eles assistia. Hoje, os imperadores da civilização do espectáculo apreciam verdadeiramente o show do Coliseu. E são parte dele”.
O livro e o comentário levantam problemas interessantes e actuais, mas o que me leva a escrever esta crónica é uma certa dificuldade em aceitar algumas das interpretações de Cintra Torres. Julgo que Vargas Llosa teve sobretudo a preocupação de reflectir sobre a arte contemporânea, que ele julga excessivamente superficial. O escritor peruano detecta a “paixão universal” da “fuga ao aborrecimento” e está, no fundo, a criticar o que pensa ser o “declínio dos intelectuais e da elite”.

 

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Quinta-feira, 06.09.12

Da Europa do meio

Num artigo na Revista Ler, o escritor e crítico José Riço Direitinho elabora uma lista de preferências literárias e inclui um livro de Gonçalo M. Tavares, com a ressalva de que o autor faz “uma espécie de literatura requentada da Mitteleuropa”. A frase, que tem feito o seu caminho nas redes sociais, pode ser uma daquelas típicas generalizações apressadas da crítica literária, mas serve de pretexto para uma breve digressão através de um tema que sempre me fascinou.


A Mitteleuropa é um conceito político que esteve na moda no início do século XX e, depois, outra vez no final do mesmo século. Segundo esta ideia, existe uma Europa no meio que corresponde à zona geográfica ou cultural liderada pelos alemães e que possui pontos em comum nas artes, nas tradições e na sociedade. Os teóricos nunca definiram bem o conceito, que não se aguenta em observação meramente política. Segundo alguns, esta Europa estende-se de Berlim aos Balcãs, de Trieste a Varsóvia, correspondendo mais ou menos às duas margens da antiga Cortina de Ferro, uma espécie de fronteira entre civilização e barbárie.
Quando foi pensada, a ideia de Europa do Meio abarcava comunidades muito diferentes, dos alemães aos eslavos do norte e do sul, dos judeus aos magiares (os ciganos não eram considerados suficientemente cultos). A amálgama de elementos diversos levou naturalmente à conclusão de que estes grupos tinham em comum uma espécie de civilização, algo que os ódios e as limpezas étnicas sempre desmentiram. O facto é que, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, cidades como Viena, Budapeste, Berlim ou Praga vibravam com uma notável explosão intelectual, que se traduziu em literatura, ciência, filosofia, pintura ou música. Sem ter um centro único, este era à época o coração do mundo intelectual europeu. Tudo isto se estilhaçou em pouco mais de uma década: o anti-semitismo produziu os refugiados do nazismo (sobretudo de judeus alemães e austro-húngaros) que vieram a ter um papel relevante em Hollywood e Los Alamos.

 

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Quinta-feira, 30.08.12

Escolhas e História de arte

No início da década de 90, liguei o televisor de um quarto de hotel em Espanha. Não me lembro do ano exacto, mas os socialistas ainda estavam no poder e o PP preparava-se para ganhar eleições pela primeira vez. O desemprego andava nos 20%.
Nessa noite, vi um documentário sobre um pintor espanhol que na altura teria os seus 30 anos. Fiquei impressionado com a qualidade da obra. O pintor chamava-se Miquel Barceló e hoje é um dos grandes artistas mundiais.
A certo ponto, discutindo as influências, os entrevistadores perguntavam a Barceló as razões do seu interesse pelo neo-expressionismo alemão. E a resposta foi brilhante: "Cada pintor faz a sua própria História da Arte", disse Barceló. Interpreto a frase como o gosto desproporcionado por certos movimentos, em vez de outros, porventura mais importantes para os historiadores de arte.

 

Lembrei-me disto ao ver a lista do Expresso dos 50 livros de um cânone literário, que pode ser consultada no blogue de José Mário Silva, Bibliotecário de Babel, e deste texto de Vasco Graça Moura, no Diário de Notícias, baseado parcialmente no primeiro. Li apenas 30 livros da lista do Expresso, menos de metade da segunda lista.
Além de Camões, é interessante verificar a ausência de A Peregrinação nas escolhas do Expresso. Escrito alguns anos antes de D. Quixote, este livro sempre foi subestimado, por o considerarem crónica de viagens e biografia. Mas como é possível que um viajante não consiga acertar em nomes geográficos? E, para biografia, falta-lhe a verosimilhança. Biografia escondida, talvez, mas nenhuma vida tem uma estrutura tão limpinha: pecado, expiação, redenção. E se fosse uma espécie de romance baseado em experiências vividas? Alguém deixaria fora da sua lista este livro?

 

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Sexta-feira, 27.07.12

A fertilidade dos solos

Sempre gostei da elegância simples da ideia. O factor limitante é por definição a causa a impedir um qualquer crescimento. Aplica-se sobretudo à biologia, a populações, ecossistemas, etc. O conceito é intuitivo: se não houver água suficiente para abastecer mais de um milhão de pessoas, uma cidade terá aqui o factor limitante e não passará de um milhão de pessoas.
Estudei a ideia aplicada à fertilidade dos solos, onde é crucial a relativa abundância de fósforo, potássio e azoto, sem os quais as plantas não podem constituir a respectiva massa. A questão é um pouco mais complicada, há minerais secundários, como enxofre, cálcio, ferro ou magnésio, sendo necessária matéria orgânica, muita água, dióxido de carbono e sobretudo luz. Mas sem aqueles nutrientes em quantidades generosas, havendo ausência de apenas um deles, a colheita está ameaçada. A fertilização dos solos concentra-se, assim, na reposição dos minerais e, acima de tudo, na preocupação em identificar e eliminar o factor limitante de determinado solo.
Julgo que a ideia se aplica a muitas situações da nossa vida. Podemos ter tudo, saúde, amor, e faltar-nos o dinheiro. Penso que também serve de metáfora para o que somos, alguns de nós trabalhadores e honestos, mas sem ambição; outros, cultos e capazes, mas cheios de vaidade. Enfim, os nossos maiores defeitos são sempre o factor limitante do que poderíamos ser. E isto parece ser verdade no mundo que nos rodeia: uma economia capaz de crescer sempre, embora com pequenos soluços, foi transformada numa sociedade em crise, pelos efeitos perversos da ganância selvagem.

 

Gosto de aplicar esta ideia aos livros, tentando perceber as razões da fertilidade criativa. William Faulkner dizia que há três elementos principais na escrita: o poder de observação, a nitidez da memória e a força da imaginação. Nos grandes livros, há equilíbrio ou relativa abundância dos três elementos. O autor pode ser mais forte na sua capacidade de observar, ou na fantasia que coloca no texto, mas não se sente a ausência de nenhum dos três factores. Nas obras falhadas, falta sempre um dos três elementos, por o autor se basear em excesso na memória e não efabular, ou por ser demasiado descritivo ou, pelo contrário, por não reflectir sobre aquilo que observou.
Claro que, como no caso da agricultura, as questões artísticas são mais complicadas. Não bastam estes nutrientes. A fertilidade depende de outras coisas, como tempo e cultura, um estilo próprio e original, a coragem de experimentar, mas também da capacidade de criar unidade e fluxo, partindo de uma ideia forte.

O assunto parece quase trivial, mas da fertilidade dos solos dependeram todas as civilizações. E a nossa não é excepção. Aliás, houve colapsos devido a processos de erosão. Quando os solos perdem a camada superficial, extremamente fina, onde se encontram os nutrientes, a sua capacidade produtiva perde-se também. A redução da fertilidade implica fome, doença e conflito.
A fertilidade artística, hoje em nítida crise, também nos diz muito sobre as patologias da sociedade. Como explicar o que parece ser a degradação geral da arte nas duas últimas décadas? Julgo que o maior factor limitante está hoje na degradação da memória, que se tornou cada vez mais curta. Mas não é a única causa, pois a dispersão em que vivemos não nos deixa pensar. Esta crise tem sobretudo a ver com a voracidade do tempo, a urgência que sentimos em gastá-lo o mais depressa possível, como se o amanhã estivesse mais perto. A contracção temporal obriga-nos a pensar mais depressa e, de certa forma, degrada os nossos poderes de observação e infantiliza o que imaginamos. Sobretudo, faz-nos esquecer. 

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Sexta-feira, 20.07.12

Teoria da neutralidade

Instalou-se na blogosfera um peculiar mito, segundo o qual há dois tipos de jornalismo, o bom, que se caracteriza por uma pureza lava mais branco, e o mau, da pérfida manipulação conspirativa. Neste post de Nuno Lobo explodem algumas ilusões e preconceitos sobre o meio jornalístico que estão ligados a este mito.
Não me vou alongar, nem serei exaustivo na minha crítica ao post. Há de imediato um problema: o que é o "jornalismo interpretativo", em oposição a outra coisa qualquer? Por definição, o jornalismo é uma interpretação do real, envolve sempre um ponto de vista. Não há notícias neutras, nem reportagens, nem crónicas, nem entrevistas. Qualquer jornalista que afirme o inverso já perdeu a neutralidade. Esta parece-me uma negação da inteligência, pois trata-se de entender o que nos rodeia.
Também são estranhas as frases do autor "a política não incumbe ao jornalista" ou os "relatos meramente objectivos". Tudo isto me parece ser uma ilusão. Na realidade, o jornalismo sempre esteve ligado à política activa. Jornalismo e política são gémeos siameses, em democracia ou ditadura.
Não vale a pena adiantar muitos exemplos, mas basta a leitura dos jornais antigos. O jornalismo tentava retratar a pulsação da sociedade e quando hoje lemos o que foi escrito há cem anos deparamos constantemente com o ponto de vista do autor da prosa. Pode ser um tom irónico, uma visão elitista, o apoio subtil ou até declarado, mas o acontecimento histórico está sempre contaminado pela visão pessoal do jornalista. Isto é uma constante, não tem excepções. O próprio ritmo da prosa pode traduzir a emoção do repórter.
No caso da democracia, ninguém elege os jornalistas, mas estes estão (tal como os políticos) num  ramo que depende da credibilidade, o que explica a circunstância de tantas carreiras serem efémeras. Ao contrário do que afirma Nuno Lobo, o escrutínio faz-se em cada momento.
Levada ao extremo, a tese do jornalismo bacteriologicamente puro pode levar à limitação dos direitos cívicos e ao empobrecimento extremo da matéria jornalística, pois isto não comporta mais do que frases com sujeito, predicado e complemento directo.
O autor do post até podia ter levantado um problema bem mais interessante: a política activa disfarçada de comentário político. Portugal é um caso único no mundo, onde os políticos se apropriaram do comentário sobre a política e acham isso normal. Mas raramente sabemos se aquilo que estamos a ouvir é uma opinião sincera ou se visa obter um determinado efeito.


O repórter deve tentar distanciar-se dos factos, mas a neutralidade, essa, só existe nos cemitérios. Quando ouço argumentos sobre a separação entre jornalismo e política, a necessidade de criar severos mecanismos de escrutínio e regulação, sorrio sempre. Convém ao poder, a qualquer poder, dispor de uma imprensa dócil. A suposta 'neutralidade' significa apenas domesticar o ponto de vista e a interpretação dos factos, não é mais do que excluir todas as hipóteses de interpretação, menos uma, aquela que nos interessa.
A relatividade e a física quântica apontam para a incerteza naquilo que consideramos realidade. E, de facto, não há duas pessoas que olhem para um acontecimento da mesma forma. Tal como acontece com as partículas muito pequenas, a simples acção de observar condiciona a experiência. Traduzido para gente, basta colocar uma câmara de televisão na cena para o comportamento das pessoas mudar.

Ou seja, tentando simplificar, não é possível retirar a emoção de uma actividade humana que consiste em descrever os acontecimentos humanos.

 

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Quinta-feira, 12.07.12

Temas de grande literatura

Recomendo a leitura deste artigo de Michael Cunningham na revista New Yorker (em inglês), a propósito da polémica em torno do prémio Pulitzer para ficção deste ano, que não teve vencedor. O escritor explica os mecanismos da escolha, provavelmente numa tentativa de se justificar, mas sobretudo ficamos a perceber como pesam os gostos pessoais, a busca do mínimo denominador comuns e até os receios dos membros do júri de selecção, que leram a extraordinária quantidade de 300 livros para escolherem apenas três obras.
Parece inteligente a estrutura do prémio em duas fases, a primeira a seleccionar três obras e um júri final de 18 membros a analisar apenas esse lote de romances e colecções de contos. O processo parece transparente e ficamos a saber algo sobre a sua complexidade. Houve uma preferência pela temática americana, tendência confessada por grandes romances com visões amplas da sociedade. Esta última é uma questão apenas aflorada, mas o autor admite a certo ponto que a preferência pelo romance de género épico implica porventura perder-se o sentido da pequena observação significativa (surge o exemplo da pintura impressionista versus pintura clássica).


O artigo inclui uma lista de livros que não venceram o Pulitzer, mais ou menos parecida com a lista dos clássicos americanos do século XX. Os vencedores são estes. A leitura do artigo mostra como é falível um processo equilibrado de escolha de prémios literários. Na primeira fase, foram sacrificados livros que os membros do júri achavam óptimos; mesmo assim, foi concebida uma lista  de três obras de elevado mérito, pelo menos do ponto de vista do autor, para o segundo júri as recusar todas.
Julgo que Cunningham sublinha a dificuldade sentida por todos nós na compreensão da arte contemporânea. Na literatura, o que hoje os leitores percebem como genial foi no seu tempo quase inaceitável ou, pior ainda, totalmente ignorado. Por vezes, os livros que os críticos desvalorizaram ou atacaram reaparecem anos depois, reinterpretados por uma nova geração. Esses milagres são apesar de tudo raros, pois as grandes obras de arte são demasiado raras.
O processo de selecção tornou-se mais difícil, devido à forma como as artes evoluíram. A literatura contemporânea reflecte uma sociedade complexa e diversificada, também mais liberal, portanto aberta a discussões, paradoxalmente acelerada, logo sem tempo disponível para reflectir sobre os temas de maior fôlego. Daí que os romances contemporâneos (e não falo do número de páginas) sejam hoje curtos, pouco profundos, contrários à preocupação de Cunningham de descrever toda a sociedade em pinceladas fortes.
Os autores preocupam-se com pormenores que no passado teriam sido frívolos, como aliás fizeram os pintores na grande ruptura impressionista, ao tentarem captar a beleza do jogo de luz num jardim ao fim da tarde, a névoa invernal na estação ferroviária, reflexos num lago de nenúfares ou o campo de girassóis a sufocar ao sol violento do verão.

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Quarta-feira, 27.06.12

A poderosa selecção espanhola

Não imagino como seria há 50 anos. Os leitores portugueses conheciam certamente alguns autores espanhóis do seu tempo, mas estes não teriam a importância que os romancistas espanhóis vivos têm hoje.

Portugal entretanto ligou-se à Espanha: viajar é fácil, vemos os seus jogos do campeonato, o mercado é ibérico, os produtos de supermercado, a energia, a banca; e cada vez mais lemos os seus livros. As editoras espanholas dominam, trata-se de uma possível explicação para o fenómeno, mas não chega: em Espanha, surgiu nas últimas décadas um grupo de romancistas de alta qualidade e Portugal rendeu-se a esta literatura. A selecção espanhola é provavelmente a mais forte da Europa, hoje em dia. Alguns dos escritores são quase familiares em Portugal e a sua obra é um verdadeiro milagre.
É o caso do catalão Enrique Vila-Matas (na imagem). A leitura de Ar de Dylan, que levo a meio, confirma os pontos que julgo serem mais fortes neste autor: a imaginação frenética, os jogos mentais, a definição das personagens, as incursões filosóficas, a profundidade das ideias, a simplicidade do estilo associada a uma construção complexa, também as pequenas histórias dentro da história, que julgo ser uma das marcas dos grandes prosadores. Vila-Matas usa constantemente referências cinéfilas e literárias, pega em pequenas frases, em paisagens urbanas, truques dos policiais, e cria expectativa, levando o leitor a um universo original com a forma de labirinto.
É interessante perceber como se encontram elementos comuns em alguns dos grandes escritores espanhóis vivos. A obsessão pelo encantamento do cinema, por exemplo, que também encontramos em Juan Marsé ou Javier Marias; a ferida aberta da guerra civil, que todos abordam, mas estou a lembrar-me em particular do extraordinário livro de Javier Cercas, Soldados de Salamina, ou do mais recente de Antonio Munoz Molina, A Noite dos Tempos. Os autores exploram muito bem a inocência da infância e a memória, veja-se O Mundo, de Juan José Millás, que é um contista notável; ou a ideia do fracasso, sendo que este último tema percorre a obra de todos os mencionados. Há outra coincidência: à excepção de Marsé, escrevem regularmente no El Pais, no suplemento Babelia, na revista de domingo ou no próprio jornal. Os prosadores espanhóis são cosmopolitas, globais, ligados à tradição, cronistas com opiniões políticas.

A selecção espanhola de romancistas inclui vários nobelizáveis e não me admirava se Javier Marias ganhasse o prémio Nobel, após a publicação recente do ambicioso Tu Rostro Manaña. É também engraçado que este autor considerado difícil escreva regularmente sobre futebol. Uma última palavra para Molina, que tem prosa melancólica, menos fantasista do que a de Vila-Matas, mas com boas histórias e personagens bem construídas.

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Quinta-feira, 21.06.12

Da estupidez

Neste magnífico artigo fala-se de um fenómeno mal conhecido, a estupidez das pessoas inteligentes, que nos ajuda a compreender boa parte deste mundo. Trata-se aqui do estudo do que parece ser a preguiça mental de pessoas reconhecidamente espertas e que, perante um problema que julgam ser simples, respondem da forma fácil, como se os seus poderes de análise fossem temporariamente desligados. Gosto em particular da frase (tão estúpida) do filósofo citado: "Não estou interessado na psicologia da estupidez".
E, no entanto, a estupidez parece dominar a maioria das discussões. A frase pedante que cala a objecção, a banalidade dita com confiança, a falta de ideias na rotina, a imitação que papagueia noções alheias, a certeza teimosa. A ciência tenta estudar esta pressa que paralisa a mente, mas na literatura este é um tema muito explorado. Estou a lembrar-me do grande escritor checo Bohumil Hrabal (1914-1997), que pegou no assunto como poucos.


A obra de Hrabal vem na tradição de Franz Kafka, do soldado Svejk (personagem de Jaroslav Hasek), dos contos de Tchekov, mas também do humor centro-europeu que tão bem retrata os absurdos daquela sociedade. Hrabal é hoje um autor influente, pelo menos na Europa Central, por ter captado a essência estúpida dos regimes totalitários comunistas do leste. Ele não era um escritor político de forma expressa, limitou-se a inventar personagens embrulhadas em situações ambíguas, regras tontas, azares totais, falhanços incríveis.
Hrabal estava fora do sistema literário, pois nos textos que tentou publicar, a partir dos anos 50, não havia proletários generosos ou capitalistas perversos. Era realismo, mas sem o socialista. Tal como a vida, as suas histórias eram uma mistura de tragédia, comédia, tédio e exaltação, numa sequência de pequenos episódios de aparência autêntica e vivida. O autor escreveu numa época muito difícil, quando o conformismo era a única forma de publicar; época de repressão onde a mínima dissidência reduzia as melhores mentes do país a trabalhos braçais que condenavam ao esquecimento. Era uma espécie de enterro em vida.
Também forçado à marginalização intelectual, Hrabal publicou quase toda a sua obra em samizdat, em edições clandestinas e de baixo custo que circulavam apenas entre os conhecedores. Os textos eram curtos e incisivos, a clandestinidade assim o impunha. A prosa era desprovida de ornamentos ou complicações, sempre muito visual e repleta de associações de ideias. Hrabal tinha fama de alcoólico e passava dias numa cervejaria favorita. Diz-se que não falava muito, que passava o tempo a ouvir as histórias dos outros, afinal a matéria-prima dos escritores.
Infelizmente, este grande checo não é muito conhecido em Portugal. Estão publicados pelo menos Eu Servi o Rei de Inglaterra, Comboios Rigorosamente Vigiados e Uma Solidão Demasiado Ruidosa. Haverá outros títulos. Não sei se está traduzido A Pequena Cidade Onde o Tempo Parou.

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Quarta-feira, 06.06.12

Um raro original

De Ray Bradbury gosto sobretudo dos contos de ficção científica, género que forma apenas parte das suas coleções de contos. Segundo anunciou hoje a família, o escritor americano faleceu aos 91 anos. Ao longo da vida, escreveu numerosas histórias de fantasia, explorou outros territórios, a sua obra é vasta e diversificada. Farenheit 451 marcou-me e também gosto muito do filme de François Truffaut do mesmo título (na imagem), mas prefiro O Homem Ilustrado, embora o meu coração balance com As Crónicas Marcianas.
A imaginação delirante, o estilo poético, a concisão da prosa, estes são alguns dos aspectos mais poderosos de Ray Bradbury, mas é interessante notar que existe em pano de fundo uma crítica em relação ao mundo tecnológico em que vivemos. O autor não acreditava nos benefícios automáticos das inovações e, acima de tudo, não acreditava na desumanização que acompanha muito do progresso a que assistimos. Disse isso em várias entrevistas, que nos devíamos libertar da tirania das máquinas à nossa volta, o que não deixa de ser curioso num especialista em ficção científica.
Algumas histórias são sobre a alienação humana, tão visível no nosso moderno défice de atenção. Em Farenheit 451, os livros são destruídos devido ao perigo das ideias complicadas que contêm. A perda da memória não é lamentada nessa civilização distópica, pelo contrário, trata-se de uma consequência vantajosa, pois a complexidade implica conflito e deve ser combatida.
Bradbury não antecipou a realidade e hoje não há bombeiros em busca de livros subversivos, mas a cultura tornou-se num corpo estranho, pois o mundo em que vivemos anda baseado no efémero e no superficial. A complexidade dá indesejáveis dores de cabeça, por isso protegemos as nossas crianças de pensarem demasiado. É uma forma de mundo novo em que não se queimam livros, mas onde estes se tornaram vagamente obsoletos.
Num dos contos de O Homem Ilustrado, há uma máquina que fabrica um mundo virtual que acaba por se transformar em realidade. Antecipação dos jogos de computador onde tantos adolescentes passam horas a fio, as famílias transformadas em incómodo, na confusão entre os dois planos. A tecnologia infiltrou-se em toda a nossa vida, impedindo ou dificultando o pensamento profundo que determina a verdadeira originalidade. Num mundo caracterizado pela obsessão daquilo que é novo, Bradbury era um raro original.

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Quinta-feira, 24.05.12

A arte do conto

Ao ser anunciado o Prémio Camões, pensei que desconhecia totalmente o vencedor, o contista brasileiro Dalton Trevisan. Afinal, tinha dois dos seus contos numa antologia na minha biblioteca e lera um dos textos, O Vampiro de Curitiba, prosa cheia de humor e com linguagem atrevida, brilhante.
A antologia tem por título Os Cem Melhores Contos Brasileiros e li a maioria dos textos, mas aparentemente passei ao lado do segundo conto de Trevisan que consta da colecção, Uma Vela por Dario.

O conto é ainda superior ao outro, de uma crueldade de tirar a respiração. Um homem de aspecto rico e bem vestido chamado Dario, que caminha pela rua, tem uma sincope e fica prostrado, perante o interesse crescente dos transeuntes. Em frases curtas, incisivas, o escritor conta como a multidão se alimenta do moribundo e, depois, do cadáver, numa mistura de indiferença e curiosidade mórbida. O homem é roubado, abandonado à sua morte, perde a identidade e classe social. Termina como simples corpo anónimo, quase indigno de pena. O conto é brutal e bastavam estas quatro páginas para mostrar as enormes qualidades do escritor.
A literatura portuguesa, infelizmente, não tem a tradição do conto. Os leitores não gostam de comprar livros com histórias curtas e os novos autores têm de se afirmar no romance. Não há publicações especializadas, como acontece em outros países, e mesmo os autores mais experientes evitam o formato curto, concentrando a sua arte em obras de maior fôlego.
A escrita de contos é difícil, a começar pela necessidade de ter uma ideia forte, criar atmosfera em poucas linhas, definir personagens em pinceladas quase invisíveis, inventar diálogos económicos e ainda um remate eficaz. Não há espaço para digressões inúteis, para figuras secundárias ou reflexões complicadas. Mais difícil ainda é conseguir a originalidade, um estilo pessoal, a linguagem certa.
Uma Vela por Dario tem tudo isto e ainda aquele elemento de golpe de asa sem o qual o conto era apenas interessante. No caso, é a vela que um miúdo descalço coloca ao lado do corpo de Dario, e que o vento apaga. Sem a vela do título, o texto perderia a força. O truque dos mestres é mais fácil de ver na pintura: com um dedo tapamos a pequenina mancha de cor ou o detalhe na composição e a obra de génio afunda-se na banalidade. Tiramos o dedo, vemos de novo o conjunto, e brilha um esplendor tremendo.

 

E eis que, ao procurar na net, encontrei aqui o conto.

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publicado por Luís Naves às 16:07 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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