Um mundo novo

Quando o barulho do vaporetto se dissipou e ficou no ar uma espécie de inércia surda, pairou entre os passageiros um momento mágico de silêncio. Foi uma sensação breve, enfim, pois logo se ouviu o rumor da água, das pequenas ondas agitadas que batiam no cais e nas paredes do canal, que pareciam querer abraçar a terra e puxá-la para o fundo da lagoa. Veneza escondia-se atrás de um manto brumoso. No frio, percebiam-se as vagas manchas de cor dos telhados acima da neblina, as janelas recortadas na cinza húmida do nevoeiro pesado, os sons abafados do resto da vida. A velha cidade ocultara-se do sol, tapada por um véu nebuloso e triste.
Nessa primeira manhã em Veneza, fui colocar a mala num quarto sombrio que alugara num hotel decrépito, apesar de tudo caríssimo. Naquelas primeiras horas, percorri vielas e deambulei pelas ruas estreitas, subindo e descendo pontes, por duas vezes atravessando canais em pequenas embarcações instáveis.
À tarde, umas fímbrias solares atravessaram o nevoeiro e percebia-se melhor a altiva grandeza dos palácios meio submersos e a solenidade das igrejas e a imponência dos mais pequenos pátios. A cada esquina uma surpresa e não me cansei de as descobrir, num passeio a pé que me levou a uma fadiga repleta de contentamento. Quase não comi nesse dia, ia parando em sítios sem turistas, que havia poucos, e petiscava um doce ou algo salgado, para enganar a fome, pois estava com apetite de registar em imagens os edifícios assombrosos que me rodeavam.
Regressei ao hotel, ao quarto acanhado e acordei na manhã seguinte com os ruídos da pessoa que dormia no quarto ao lado. Calhou que saíssemos os dois ao mesmo tempo: era uma mulher jovem, sorrimos, ela cumprimentou-me em italiano, buongiorno, e procurámos ambos a sala do pequeno-almoço, que estava vazia. Era tão acanhada como o resto do idoso hotel. Sentámo-nos em mesas diferentes, mas eu podia observá-la. Uma mulher jovem, mas não demasiado; reparando melhor, parecia mais nova do que era; baixa, magra; tinha cabelo negro, comprido, a boca pequena, olhos expressivos e um sorriso enigmático. Reparei que era fumadora e que o nariz desproporcionado lhe dava um ar de nobreza mediterrânica, que ela assumia ainda mais usando o corpo de forma elegante, como uma bailarina, a enfrentar o mundo com a cabeça ligeiramente levantada. Ela saiu primeiro, cumprimentou-me, ciao, e reparei que levava na mão uma pequena máquina fotográfica. Pensei que era uma turista a tentar falar a língua dos nativos.

publicado por Luís Naves às 17:26 | link do post | comentar