Quinta-feira, 17.10.13

Fragmentário

Podem encontrar-nos AQUI.

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Domingo, 18.08.13

Navegações

Um excelente texto de Henrique Fialho, autor de um blogue cultural de grande qualidade chamado Antologia do Esquecimento. Apesar de ser um veterano na blogosfera, este autor é pouco citado e merecia mais atenção dos apressados. São os custos de não andar pelos círculos dos salamaleques.

Outro texto brilhante, de Sofia Loureiro dos Santos, em Defender o Quadrado.

Mais uma demonstração de que há autores de qualidade na blogosfera portuguesa: este post de Rui Bebiano, em A Terceira Noite, sobre um tema que me é caro e que testemunhei na Hungria.

E um link para o blogue Mesa Marcada, onde escreve o meu amigo Duarte Calvão.

publicado por Luís Naves às 18:49 | link do post | comentar
Quarta-feira, 10.07.13

O Patriota (segundo capítulo, segunda parte)

Só muitas horas depois teve tempo para pensar. Incapaz de suportar a tensão no escritório, meteu-se no carro oficial e deu ordens para irem até à praia de Glen Cove.
Dali via-se o mar, que um vento maldoso perturbava. A praia estendia-se, vazia, com o areal limpo, as orlas presas a uma vegetação débil. Os guardas tinham ficado junto aos carros. Severn estava sozinho, numa plataforma em madeira que dominava todo aquele cenário.
Percebia agora o que lera num livro antigo. O título era ‘A Queda do Império Romano’. Encontrara o volume nas ruínas da velha biblioteca da sua cidade natal e desde esse momento decorrera uma eternidade. A princípio, o livro despertara o seu interesse, por ser pesado e nobre. Esta era a única ideia que lhe ocorria para descrever a robusta lombada, o couro fino da capa, as letras num tipo compacto e denso. ‘A Queda’ estava numa pilha de livros abandonados que resultava do incêndio provocado pelo único ataque sofrido pela sua cidade. Sem outra razão aparente, escolheu aquele e levou-o para casa. Nesse tempo, viviam na penumbra. As comunidades fechavam-se, formando tribos selvagens. Isto foi quando a sociedade entrou em ruptura, antes da chegada dos senhores do espaço. E ele, que não podia aprender na escola, agarrou-se a um livro, aquele, tirado de uma montanha de obras que o mau tempo depressa devorou no meio da confusão de refugiados, dos protestos e dos incêndios, da insensata voragem do conflito civil entre gangues e milícias. A certo ponto, o seu livro era um dos poucos que restavam em todo o bairro. E lia algumas páginas em cada dia. Era uma espécie de ritual, que passou a ser o seu escape daquela situação cruel a que ninguém escapou, nem ricos nem pobres, nem inteligentes nem estúpidos, nem trabalhadores nem preguiçosos. Todos enfiados no mesmo barco a afundar.
E o mais curioso da ‘Queda’ era a circunstância de falar de Roma, mas na realidade mencionar sem alterações aquilo que o rodeava. Como caíam as civilizações? Era mais um apodrecimento interno do que um empurrão exterior. A ‘Queda’ era provocada pela desistência da vontade e pelo sufocar progressivo das forças sobreviventes. O colapso lembrava o cansaço de um homem a nadar contra a corrente, no meio do nevoeiro; por um lado a sentir-se arrastado, por outro sem referência que o pudesse alarmar. A chegada dos mestres tinha impedido o afogamento. E, embora muitos discordassem, era assim que pensava.
Lembrou-se de ter lido que provavelmente gerações de romanos viveram as suas vidas sabendo que o mundo estava em declínio, mas a maior parte nunca pensou nesses temas complexos. As pessoas presas em tempos difíceis pensam apenas em sobreviver e prosseguir as suas vidas. Perante as forças da História, o que pode fazer um homem sozinho?
Severn respirou com mais força a atmosfera límpida. Ao fundo, junto ao horizonte, as nuvens escuras alertavam para a aproximação de uma tempestade. E o mar agitava-se, caótico, largando sal e espuma. O turbilhão do vento e da água desfazia lentamente a terra firme. E assim era com o seu mundo, onde forças invisíveis demoliam cada pedaço sólido da realidade.

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Sexta-feira, 28.06.13

O Patriota (capítulo 2, primeira parte)

(Continuação da novela de Raoul Sevan)

 

II
Durante a noite bebera em excesso e tivera os pesadelos habitados por terrores, mas não recordava mais do que sombras angustiantes. A única impressão clara era aquela imagem, filas e filas de recém-nascidos, certamente num hospital, com a luz branca uniforme a iluminar cada recanto. Pairava o silêncio e as imóveis fileiras de berços, como se fossem uma guarda de honra, desenhavam o caminho estreito que um desconhecido percorria. Primeiro era uma figura indistinta, então reconheceu-se a si próprio, o senador Severn, vestido de negro, a avançar ao longo da inesgotável sala. E, sem olhar, com o conhecimento dos sonhos, soube que os berços estavam cheios de pequenos monstros e depois vazios. Teve a sensação de que todas as crianças (ou seriam preciosos horrores) tinham sido levadas e aquilo provocava-lhe uma angústia insuportável. Acordou, sufocado.
  

Com dificuldade em respirar, tentou perceber o que existia à sua volta. A cama estava vazia. Ruby desaparecera. Pela janela, através dos reposteiros, rebentava a luz intensa da manhã alta.
   Fez um esforço de memória. Gavain, Ruby, a noite a eternizar-se, uma bebida atrás da outra e o mundo a desabar demasiado depressa, a tornar-se desconexo. Recordou a música: dançara com Ruby, a orquestra do cabaret a tocar só para eles, e lembrou-se do calor do corpo dela colado ao seu, sentiu de novo as mãos húmidas da rapariga, ou pelo menos essa era a memória que lhe restava. Teria Ruby medo dele?
   Ainda mal acordado, questionou-se sobre o seu futuro. Sabia que o poder não passava de uma ilusão consentida. Severn considerava-se um homem feio e até, para certas mulheres, bastante repugnante, por causa das cicatrizes que lhe desfiguravam o lado direito da cara. Tinha ar de pugilista e carácter sem escrúpulos. Qual era o interesse dela?
   Não conseguia despertar. Sentia enorme cansaço, como se a ressaca o obrigasse a relaxar mais uma vez e a tentar o alívio do sono. A certo ponto, travou todos os esforços de resistir ao que pedia o corpo e adormeceu de novo:
  

Pilotava uma nave e o centro de comando era tão acanhado como o cockpit de um avião. Teve este pensamento com clareza, como se ele estivesse a ser escrito por outra pessoa. A nave deslizava numa órbita da Lua, aproximando-se do satélite. Era um movimento gracioso e rápido. Soube que estava no lado oculto, pois podia ver a Terra ao fundo, muito azul. E foi nesta altura, enquanto mexia em botões incompreensíveis (parecia estranho, mas era ele quem conduzia a nave), que viu a grande base lunar: gigantesca, em forma de estrela, com longos raios de estruturas iluminadas, uns mais longos, outros curtos. No interior do sonho, foi ficando com a percepção de que não estava sozinho. Sentava-se no lugar de co-piloto e a seu lado, ao comando da nave, viu Gavain, que apenas observava as suas acções. Era um Gavain diferente, apesar de tudo, com alterações subtis que não podia enunciar com exactidão. Dava instruções numa língua desconhecida e agreste. E Severn obedeceu, embora não compreendesse uma única palavra. Gavain apontava para a base: ali estavam os reactores de energia, as instalações que produziam água, hidrogénio e oxigénio, os grandes tanques, as fábricas, as bocas das minas, as estufas, as zonas habitacionais, as plataformas de aterragem. Tinham construído a base do lado oculto da lua, para que não se visse da Terra, e as naves em aproximação usavam mecanismos de invisibilidade, para não poderem ser detectadas pelos telescópios terrestres. A actividade frenética era invisível e a base constituía, na realidade, uma gigantesca cidade com mais de um milhão de habitantes. “E se nós somos Homo sapiens, qual é o nome que vos define?”, perguntou Severn, mas naquela língua que desconhecia e que de repente, com a loucura do sonho, já fazia sentido. Gavain riu-se e o esgar na cara não era humano, mas demoníaco. ‘Somos os anjos negros, Angelus niger, e sabemos voar, temos as estrelas na mão’, disse o mestre, e os seus olhos rodopiavam. Foi neste momento que Severn acordou, aflito.
  

Quando se levantou, percebeu que estava alguém na cozinha do apartamento.
   Aproximou-se da porta da cozinha sem fazer qualquer ruído e viu Ruby, em roupão de seda, a fazer o pequeno-almoço. A rapariga estava compenetrada, mas sentiu a sua proximidade. Sorriu-lhe, encantadora, e explicou que não quisera acordá-lo.
   “Precisas de dormir. Tens um ar tão cansado”, disse ela.
   E ele não lhe respondeu. Sentou-se à pequena mesa, olhou para o exterior, para as árvores em frente, para o ar tranquilo daquela manhã e o coração saltava-lhe dentro do peito, como se fosse uma locomotiva. Que lhe queria Ruby, se lhe queria alguma coisa? E qual o sentido dos sonhos brutais que tivera?

 

(Continua) 

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Sexta-feira, 21.06.13

O Patriota (capítulo I, segunda parte)

Continuamos a publicar a novela O Patriota, do escritor francês de ficção científica Raoul Sevan.

O texto foi condensado a um terço do original, segundo o método Reader's Digest.

 

(...)

Que mais querem? Severn pensou na palavra liberdade, mas conseguiu dominar a sua irritação. Ficou silencioso, mas sentiu um arrepio de pânico, como se Gavain percebesse tudo aquilo que ele pensava.
   Os mestres tinham chegado à Terra com palavras de paz e logo aboliram as democracias, embora permitissem a formação de pequenas entidades políticas que se reclamavam de grande legitimidade, como era o caso da República de Atlantic City. E sufocaram todas as tentativas de resistência militar dos humanos. No momento crucial, quando o confronto parecia iminente, as armas não dispararam, as frotas revelaram-se inúteis, paradas na água, e os aviões caíram do céu. Quem tentou lutar ficou sem energia, sem máquinas e sem saída, senão a rendição.
   “Dependemos dos mestres para quase tudo. Como é que disse? Como se fôssemos crianças grandes. E, no entanto, faria mais sentido, pelo menos sentido económico, se nos deixassem crescer um pouco e ter alguma iniciativa”.
   “A seu tempo, senador, cada coisa a seu tempo”.
   A frase ambígua não era de concordância ou negação; servia para acabar a conversa. A república podia ter a sua semi-independência, desde que não houvesse eleições; podia até traficar na droga a que chamavam ‘VOGA’, que dava enormes lucros a toda a gente; mas teria de viver sem ambições e obedecer aos poucos pedidos que o conselho fizesse. Essas instruções tinham sempre de ser ratificadas: as vacinações regulares e a educação das crianças, sobretudo, exigiam o total apoio do governo da república e de todos os governos (seis, no total) que se mantinham em territórios dos outrora Estados Unidos. Numa ocasião, Oklahoma recusara uma ordem do conselho, sobre um assunto menor, e o resultado fora imediato: ocupação e extinção das instituições, fim de conversa. Foram fuzilados o presidente, oito membros do governo e 32 senadores, dois terços do senado local.

 

Talvez para amenizar as palavras agrestes que não tinham sido proferidas, Gavain ordenou ao empregado que chamasse miss Ruby Rose à sua mesa. E, de facto, quando ela se juntou aos dois, já não era possível falar de teoria política. Vista de perto, Ruby era ainda mais divina.
   “Gostei especialmente da sua última canção, miss Rose”, disse Gavain.
   “Não sabia que apreciavam a nossa música”, respondeu Ruby, sem malícia, com genuíno encanto, mas mencionando obliquamente a lenda que atribuía aos mestres alta insensibilidade em relação à cultura humana.
   “Os terrestres desconhecem muitas das nossas características. Que podemos gostar da vossa música, por exemplo, como aliás apreciamos tudo aquilo que é complexo. Não somos bárbaros, sabe?”
   Ela sorriu, acenou com a cabeça, como se concordasse. Depois, falaram de outras banalidades, sobre canções sentimentais e recordações da infância, e Gavain quis saber o que cada um dos dois terrestres se lembrava dos tempos das grandes perturbações, a guerra civil mundial anterior aos mestres. A cantora disse que tinha apenas quatro anos quando o conflito começara e não se lembrava bem desses anos terríveis. Por instantes, Severn tinha pesadas memórias dos anos amargos, mas falou pouco sobre isso. A conversa de salão prolongou-se por dez minutos; depois, com aprumo, o mestre levantou-se e despediu-se, saindo do cabaré, acompanhado pela escolta.


   Severn e Ruby ficaram sozinhos na mesa. Ela podia ter inventado uma desculpa, podia ter regressado ao palco, mas ficou ali sentada. De propósito.
   Ele queria dizer-lhe que era a mulher mais bela que já vira na sua vida, que ocorrera um milagre, o facto de Ruby ter aparecido ali, só para o encontrar, mas foi incapaz de formular os rodeios habituais. Só conseguiu ser brutal e, por uma vez na vida, absolutamente honesto:
   “Esta noite, quero ficar consigo”.
   Ruby Rose limitou-se a olhar para o senador Severn com uma expressão enigmática. A resposta silenciosa não foi sim nem foi não.

 

Fim do primeiro capítulo

(continua)

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Quarta-feira, 19.06.13

O Patriota (capítulo I, primeira parte)


Ao ver pela primeira vez Ruby Rose, o senador Severn ficou muito impressionado. Quando ela começou a cantar, estava sentada, iluminada por uma das luzes de palco, mas percebia-se que era uma mulher magra e alta, de lábios grossos, cabelos ruivos e encantadores olhos orientais. Uma feiticeira de vestido negro, que inundava de tentações o pequeno palco do cabaret Wild Side.
   Severn já ouvira de outros senadores a informação de que Atlantic City tinha uma nova vedeta, mas não acreditara nas hipérboles dos seus companheiros de ofício. Nas altas esferas do regime instalara-se um clima de boataria oportunista. Os políticos mentiam uns aos outros com impunidade e acreditavam nos rumores que eles próprios inventavam.
   Tinha de manter a compostura, pois entrara na companhia de um mestre de alta patente. Sabia que eles não apreciavam música, que bebiam champanhe apenas por cortesia, que tinham até desprezo por simples senadores das repúblicas, mas era assim que se jogava o jogo: enquanto a elite humana fazia salamaleques, os mestres fingiam que respeitavam a elite humana.


O visitante chamava-se Gavain e era membro do comité militar, em Washington. Vestia um uniforme negro, sem adornos, à excepção de quatro barras discretas na lapela curta. Se na aparência era mais jovem do que Severn, que ia pelos seus quarenta anos, isso significava que teria pelo menos setenta. Assim se dizia: a idade dos mestres era igual à dos terrestres, a multiplicar por dois ou talvez por três.
   Ruby Rose cantava uma velha canção, I die a little, acompanhada por uma orquestra de sopros, um piano e um contrabaixo. Tinha uma voz sensual e dramática. Era difícil desviar o olhar daquela magia, mas o senador Severn aproveitou para observar Gavain com atenção e prudência, tentando ver na sua face alguma réstia de emoção. Era  gesto ousado para um humano, fixar o olhar num mestre, mas este parecia fascinado, atento ao que se passava no palco, distraído (se isso era possível). O olhar do senador durou segundos, mas Severn concluiu que vira apenas a pele pálida, quase humana, sem flutuação de pensamentos, sem revelação de emoções profundas, o vazio, mais despojado ainda do que a velha estátua de bronze que se erguia, sempre imóvel, no meio da praça central de Atlantic City.

  

A canção terminou, como tudo o que é belo termina, e o público aplaudiu. Gavain fitou Severn, ergueu o copo de champanhe e fez a sua crítica:
   “Interessante”.
   O senador não compreendeu se ele se interessara pela cantora ou pela canção. Um sentimento? Era impossível perceber, mas aproveitou a deixa para ir ao ponto que lhe era caro:
   “Interessante seria que o conselho dos mestres desse mais latitude política à nossa república”.
   Fora um desabafo perigoso, mas de novo não houve expressão emocional no rosto do mestre, nem sequer um sorriso cínico ou uma sobrancelha erguida, um piscar de olhos. Nenhum nervosismo, nenhum receio.
   “Por que razão faríamos isso?”
   Severn ficou surpreendido e deve ter mostrado a surpresa na sua expressão facial. Gavain parecia querer ouvir a opinião do senador e Severn aproveitou para explanar os argumentos que desenvolvera em reflexões íntimas. Explicou que a situação política recomendava o apoio aos regimes semi-independentes que restavam. Os mestres não tinham recursos para manter a segurança nas zonas ocupadas e as zonas livres deviam ser alargadas. Era a única forma de impedir revoltas.
    “Claro que o conselho domina a tecnologia das viagens interplanetárias”, argumentou, “mas em caso de rebelião, será difícil colocar na Terra, a tempo e horas, as tropas necessárias. Pelo contrário, regimes semi-independentes e desmilitarizados, como o nosso, dão garantias adicionais de estabilidade”.
    Gavain interrompeu-o com um gesto da mão. Pela primeira vez, sorriu. Falou em tom de voz suave, quase ameaçador, mas peremptório:
   “Os regimes que não estão sob ocupação podem revoltar-se ou podem ser derrubados pela população. São dois problemas em um. Nos territórios ocupados, existe uma única ameaça constante, a revolução armada das massas, que como sabe não pensam e têm de ser conduzidas como crianças. Já em territórios não ocupados, há duas ameaças, as massas infantis e a infantilidade dos regimes. Como vê, o primeiro cenário é superior ao segundo”.
   “É essa a sua opinião?”
   “A minha e a do conselho”.
   “Como é que querem conquistar os nossos corações se não confiam em nós?”
   Severn dissera aquilo de forma impensada. Estava a esticar-se, mas não mostrou receio. Gavain respondeu, sem emoção:
   “Segundo alguns, e o senador está incluído nesse grupo, nós já vos conquistámos”.
   Severn calou-se. Era uma opinião perigosa, que partilhara com poucos colegas do senado. E agora ouvia aquela sua citação, feita em tom ácido por um dos conquistadores. Pensando depressa, optou por não negar o óbvio:
   "Esse é, de facto, o meu ponto de vista, nunca o escondi”.
   O outro sorriu, como se vencesse o debate:
   “E a realidade não é muito mais do que um ponto de vista”, disse Gavain, com um movimento vago da mão direita. “Nós preferimos evitar a palavra conquistadores. Estamos apenas a tentar impedir a humanidade de cometer erros fatais. Queremos sinceramente ajudar. Quando chegámos à Terra, vocês estavam à beira da destruição e os vossos países eram governados de forma caótica. Agora, existe ordem, previsibilidade e harmonia. Que mais querem?”.

 

(...) continua

 

Primeira parte do primeiro capítulo da novela O Patriota, de Raoul Sevan

publicado por Luís Naves às 19:36 | link do post | comentar
Segunda-feira, 17.06.13

O museu do futuro

Raoul Sevan

Pseudónimo do escritor de ficção científica francês Jules Roger de Parsac (1911-1984), cuja avó de origem arménia poderá estar na origem do nome de pluma (o lago Sevan, na Arménia, serviu de inspiração). Roger de Parsac nasceu em Paris e ficou órfão aos seis anos de idade, quando o pai morreu na batalha de Verdun, em 1917. Na década de 30, por razões financeiras, não concluiu o curso de Física, mas apenas o bacharelato. Talvez por causa da tragédia do pai, tornou-se num furioso pacifista e escreveu em jornais de direita, antes de integrar o último governo da III República, como membro dos serviços de propaganda chefiados pelo poeta Giraudoux. Em Junho de 1940, o que restava do Governo francês fugiu para Bordéus e, depois do armistício, seguiu para Vichy. Sevan integrou durante mais de um ano a administração do marechal Pétain, embora num papel menor. No final de 1941, regressou a Paris e teve contactos com a resistência, tendo participado na libertação da capital francesa, embora sem disparar um único tiro e na qualidade de enfermeiro auxiliar. Roger de Parsac chegou a estar ligado aos governos do pós-guerra, mas os seus problemas de saúde comprometeram a carreira na administração. Durante três anos, foi tratado a uma depressão que o impedia de trabalhar e chegou a estar internado num hospício. Quando ficou melhor, teve empregos precários e viveu em grandes dificuldades financeiras, até casar, em 1954, com Denise Gavarini, que o tratou até ao final da vida. Nessa altura, estabeleceu-se na periferia de Paris e tornou-se professor num colégio privado. No final da década de 50, incentivado por Denise, começou a colaborar com editoras parisienses, mas sob o pseudónimo de Raoul Sevan. Após a publicação de três novelas literárias, sem sucesso, tentou o policial e depois a ficção científica (FC), dois géneros que estavam na moda em França. Raymond Chandler, John Wyndham e Clifford D. Simak foram as suas referências literárias. Após abandonar o ensino, Sevan assinou 42 novelas de FC, incluindo l’Impardonnable Defaite, La Rupture e D’une Guerre à l’Autre. O seu trabalho mais conhecido é este O Patriota, escrito em 1965 e cujo original francês se intitulou Les Maitres du Pouvoir. O autor começou a escrever o texto após ver um filme americano, The Master Race. Foi esta a novela de Sevan que escolhemos para condensar na forma de folhetim, reduzida a um terço da dimensão original e segundo o método Reader's Digest. Neste texto, o autor tenta explorar a questão da eugenia e, de forma subtil, justificar o seu próprio passado, através da personagem do senador Severn. Ruby Rose é claramente inspirada na actriz de Hollywood Hazel Brooks, por quem Sevan tinha uma fixação neurótica. A acção da novela situa-se numa América imaginária, como era aliás típico da FC clássica francesa da época. Destaque ainda para os episódios oníricos, que certamente retratam o inferno pessoal do autor.

publicado por Luís Naves às 11:04 | link do post | comentar
Domingo, 03.02.13

Kiss me and say goodbye, that's love

3

Certa sequência de acontecimentos podia ser definida com relativa precisão. Varga conversou com a senhora Matuska no pequeno café que esta mantém na estação de Kispest; parto do princípio de que foi apenas conversa de circunstância, sem cumplicidades, meio esquecida devido ao turbilhão de momentos banais que forma cada existência, esse confuso e fragmentado fio que devia ligar a ordem dos factos mas que, na realidade, transforma o filme da nossa vida numa catadupa de imagens em fuga. Varga podia até conhecer a proprietária do café, podiam conhecer-se de situações antigas. Quem sabe, uma fonte, uma reportagem? Mas acho mais provável que ele estivesse a pensar (é apenas uma hipótese, a minha especulação) no desgosto físico que lhe produziam todos os sinais de declínio à sua volta e que eram o testemunho do estilhaçar de uma época. A sujidade no chão, as pessoas nervosas, a linguagem caótica, os jornais imundos. Tudo isso representava o colapso dos sonhos, uma informe cacofonia de sons e uma mistura quase assustadora de queda e antecipação da morte. Era, apesar de tudo, uma cruel matéria de reflexão que devia ocupar os seus dias: o que sucedera à utopia e aos devaneios? Acredito que Varga tenha pisado aquele chão com mais amargura, que tenha descido as escadas com um peso na alma. Depois, ao tomar a linha número dois do metropolitano, penso que escolheu um lugar à janela e deve ter dormitado um pouco (o sol de inverno entrava na carruagem muito quente) embalado pelos solavancos da linha velha, até sair no centro da cidade, talvez na estação da praça Deák. Atrevo-me a dizer que saiu ali, porque ali voltaria mais tarde e porque é o coração de Budapeste e um centro de poder. É onde sai sempre mais gente, e Varga já só era mais um entre muitos.

 

publicado por Luís Naves às 16:16 | link do post | comentar
Segunda-feira, 31.12.12

O café da estação

2

A senhora Matuska olhou-me com o gesto dos míopes, num esforço da vista, medindo o meu aspecto como se dissesse, baixinho, que as minhas intenções eram suspeitas. Mostrei-lhe o meu cartão de visita, que tem umas decorações sugestivas, e depois um recorte de jornal onde constava uma grande fotografia de Joszef Varga. Ela perguntou-me se eu era jornalista e respondi-lhe que não: embora escrevesse em jornais, era na realidade escritor. Foi ainda pior do que confessar a um membro da máfia albanesa que era membro honorário da polícia judiciária.
   “Então, não estou a ver qual possa ser o seu interesse no caso”, disse ela.
   Tive de recorrer à mentira acrobática:
   “Conhecia pessoalmente o senhor Varga”, (e isso era verdade) “e vou escrever um livro sobre ele (mentira) e queria saber todos os pormenores daquele dia, com quem falou e o que disse na ocasião, (verdade) por causa do rigor que pretendo imprimir ao livro” (imprecisão, evasiva, mentira).
   Fui apenas meio credível. Sabendo do gosto de Varga por café pela manhã, era possível, até provável, que ele pudesse ter parado ali e conversado um pouco, antes de seguir no seu passeio de pensionista. Para mim, era fácil imaginar aquele idoso alto e curvado, de sobretudo e chapéu, a entrar no pequeno estabelecimento da senhora Matuska, uma mulher que já tivera sem dúvida os seus tempos de glória. Dizer uma graça ou simplesmente esperar que ela fizesse a despesa da conversa.
   A mulher observou atentamente a página do jornal. Recordava-se do caso.


  

publicado por Luís Naves às 18:18 | link do post | comentar
Sexta-feira, 28.12.12

O poeta morto pelos seus maus versos

O único poeta que consta ter morrido por razões de qualidade foi um tal Helvius Cinna, um romano do período final da república, assassinado em 44 a. C. Este episódio é contado por fontes históricas, dando o poeta como vítima da ira popular durante o funeral de Júlio César. Confundido com outro Cinna, esse sim conspirador,  o pobre foi degolado e a sua cabeça, espetada no alto de uma lança, passeou por toda a cidade. Na peça de Shakespeare, quando Helvius Cinna tenta dizer à multidão que não matou César, não passando de um inofensivo poeta, alguém sugere cinicamente que seja mesmo assim morto, mas pelos seus maus versos.


Vem isto a propósito de um texto de Cintra Torres a comentar a recente publicação pela Quetzal do livro “A Civilização do Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa, sobre o qual já escrevi neste blogue.
Cintra Torres faz uma comparação entre a nossa obsessão pelo entretenimento e o caso de Roma: “Um ou outro imperador romano podia não gostar dos espectáculos do Coliseu, mas dava-os e a eles assistia. Hoje, os imperadores da civilização do espectáculo apreciam verdadeiramente o show do Coliseu. E são parte dele”.
O livro e o comentário levantam problemas interessantes e actuais, mas o que me leva a escrever esta crónica é uma certa dificuldade em aceitar algumas das interpretações de Cintra Torres. Julgo que Vargas Llosa teve sobretudo a preocupação de reflectir sobre a arte contemporânea, que ele julga excessivamente superficial. O escritor peruano detecta a “paixão universal” da “fuga ao aborrecimento” e está, no fundo, a criticar o que pensa ser o “declínio dos intelectuais e da elite”.

 

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publicado por Luís Naves às 18:44 | link do post | comentar

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